Sociedade INCIVIL

Artigo de Ana Regina Rêgo.

Também disponível em Portal Acesse Piauí e Jornal O Dia.

No momento em que escrevo este texto, manhã de quarta-feira, 23 de março, me preparo para às 17h, ouvir e dialogar com o Prof. Muniz Sodré da UFRJ sobre as temáticas de seu último livro, lançado em 2021, Sociedade incivil: mídia, iliberalismo e finanças.

Publicação mais que necessária em um momento de revolvimento dos valores políticos, sociais e culturais que estiveram pautando as sociedades nos últimos séculos, durante a vigência da modernidade. O livro aborda inúmeras variáveis que permeiam o fenômeno do que Muniz Sodré e Raquel Paiva estão chamando de incivilismo, assim como, aponta suas causas e efeitos.

Em Sociedade incivil, Muniz Sodré não somente apresenta o conceito como procura desvelar os fenômenos interagentes e constituintes do fenômeno do incivilismo e aborda desde o crescente sequestro da fala nas e pelas redes sociais digitais, comparando esse fato ao pistacismo, a fala do papagaio, completamente desprovida de sentido, logo sem possibilidade de estabelecimento de diálogo, ou de uma simples, interação cognitiva, que nem de longe intenta uma interpretação hermenêutica. O antigo monopólio da fala operacionalizado pelos meios eletrônicos e sobre o qual Sodré falava há mais de quarenta anos, se transformou, no novo ambiente midiático, em oligopólio que termina por sequestrar completamente a fala dos usuários, fechando-as em linhas de atuação pautadas nas normas regidas pela economia dos algorítmicos, que regulam dentre outras coisas, a possibilidade de visibilidade e a imposição ao silenciamento.

Sociedade incivil seria, nas palavras de Muniz Sodré, não é “ um jogo de palavras, mas um conceito atinente à deterioração econômica, política e publicista das agendas estipuladas pelo liberalismo clássico, entre as quais se incluía a própria democracia, suscetível de declínio moral. A sociedade de vigilância total, cada vez mais tornada possível pela inteligência artificial conjugada ao mercado, é apenas um dos efeitos antidemocráticos da sociedade incivil”, nesse contexto, a sociedade incivil é para o autor, “um ordenamento humano regido globalmente por tecnologias de comunicação, solidárias à transformação no modo de acumulação do capital, à desestabilização das formas clássicas de representação do mundo, mas também ambiguamente atravessadas pela incitação generalizada à reinvenção institucional”.

Sinteticamente, Muniz Sodré, afirma que a sociedade incivil é a sociedade civil de ponta cabeça em que os valores de uma democracia liberal do passado estão sendo atacados e substituídos, o que nos leva imediatamente a pensar o iliberalismo cujo modo de atuação tem invadido governos que pregam uma democracia sem direitos, e, em alguns casos, direitos limitados sem democracia. Tal prática foi comum nos Estados Unidos na época de Trump, e ainda encontramos em vários pontos do planeta, tais como na Rússia de Putin, no Brasil de Bolsonaro, na Hungria de Viktor Orbán que já declarou sua preferência por um Estado iliberal, ou seja, não sujeito às normas elementares de organização do Estado de Direito.

O iliberalismo constituinte e potencializador do incivilismo tem como prática atacar as instituições pilares da democracia e que constituem os poderes essenciais tais como, no caso brasileiro, o legislativo, o judiciário, como também, o jornalismo que deve atuar na transparência do poder ao corpo social. No Brasil as práticas de ataque aos poderes, às instituições e ao jornalismo, tem proliferado com grande potência nos últimos anos. O mercado da desinformação que mantém a base de apoio ao atual governo, trabalha diuturnamente no ataque diário ao Congresso, ao STF, ao STJ e ao TSE, além de se mover sempre à margem das empresas de jornalismo e da prática de um jornalismo sério e responsável, quando não, atacando diretamente o jornalismo e o jornalistas, inclusive, em muitos casos com violência física também. As narrativas fraudulentas tratam sempre de desqualificar as instituições e seus representantes. A intenção final é suprimir não só a influência das instituições na gestão democrática da nação, como se possível, extirpar tais instituições da convivência pública, instaurando um novo tipo de Estado totalitário.

Contudo, não há como não perceber que tanto a incitação do iliberalismo, como a potencialização do incivilismo, interligadas entre si, acontecem e ganham força em um cenário de capitalismo de plataformas em que a ação, a vigilância, o controle, a atenção, o julgamento e a recompensa se alinham para manter a sociedade que se transformou em usuária das redes sociais mantidas pelas big Techs  e o onde a desinformação encontrou um largo campo fértil para florescer e obter retorno financeiro, político e ideológico em grande escala.

Muniz Sodré nos fala da exploração da idiotia, para o autor, a “ língua computacional por outro lado é um monopólio numérico ( capaz de trocar a subjetivação pelos dígitos) previsível e auto corrigível, com valores fechados, em que a fala está sempre prestes a descambar na idiotia tecnonascísica, na vertigem do ego incensado pela própria imagem no espelho técnico, ao modo de um dopamento coletivo, análogo à drogadicção. Essa analogia ganha cores fortes quando se percebe que, na rede, o grau de confiança mútua (necessária ao pacto fiduciário que lastreia a sociedade) é tão baixo quanto a confiança interpessoal demonstrada por drogadictos. Em círculo vicioso, por mais tecnicamente sofisticada que se mostre, a informação é apenas intoxicação, doença precipitada pelo excesso de droga”. E nós (eu e Marialva Barbosa) e Peter Burke em outro contexto, falamos, as primeiras sobre construção intencional da ignorância, enquanto Burke se refere à manutenção de um ignorância já latente no seio da sociedade.

A desinformação é nesse contexto de exploração da idiotia e construção e manutenção da ignorância, talvez, um efeito colateral, visto que as plataformas, negam tal intencionalidade, mas é um efeito extremamente lucrativo e pouco combatido pelas plataformas. O lucro em suas dimensões financeira, política, ideológica e cultural vão para os criadores e promotores dos canais de desinformação, que por sua vez, atraem a atenção de milhões de seguidores com suas narrativas pautadas na emoção e no acesso aos afetos. Esses seguidores terminam doando sua atenção e se colocando de bom grado para a extração e mineração de dados das plataformas, que terminam por colher o que se denomina de capital de predição comportamental, o verdadeiro lucro das plataformas.

Já esta semana o YouTube anunciou a remoção de vídeos com desinformação que estão na rede desde a eleição de 2018. Alguns vídeos do canal do próprio Presidente Jair Bolsonaro ainda no ar desde então, já tiveram milhões de visualizações, mas nem essa medida, nem a de outras plataformas como Facebook e Instagram da Meta, são suficientes para coibir  o grande e crescente mercado que investe diuturnamente em desinformação em todas as suas dimensões.

A Sociedade incivil, a sociedade civil de “cabeça para baixo” tem ainda em contexto a crise da representatividade política e todas as tensionalidades que a cercam. Muniz Sodré se coloca como esperançoso em que a humanidade reencontre o sentido do político e  reverta o fenômeno.

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