Questão de pele: educação antirracista e representatividade

Publicado originalmente em Jornal da Universidade. Para acessar, clique aqui.

Artigo | Aluno de Artes Visuais, Ário Pereira Gonçalves discute o racismo estrutural no campo da Arte e defende a educação para as relações étnico-raciais como forma de resistência

*Retrato de Maria Felipa, escravizada liberta que participou da luta pela independência da Bahia. A obra, de autoria de Ana Lira, integra a exposição “Atos de revolta: outros imaginários sobre independência”, do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (Foto: Ana Terra Firmino)

O presente artigo é decorrente de meu Trabalho de Conclusão de Curso e versa sobre a minha experiência enquanto homem negro no curso de Licenciatura em Artes Visuais da UFRGS e cuja escrita marca o início do meu letramento racial.

Discorrendo sobre racismo estrutural e representatividade negra no ensino de arte e em suas práticas pedagógicas, seu objetivo geral é alertar para a importância da educação antirracista como forma de resistência. Apresento atividades pedagógicas que promovem debates sobre racismo, educação antirracista, branquitude e negritude, bem como a construção de um site que, dentre outras possibilidades, traz um mapeamento de artistas visuais negros, negras e negres.

Primeiro, o medo. Medo de não poder errar, pois sei que, apesar de ser uma fala pessoal, carrega consigo as vozes de um grupo de pessoas, homens pretos e mulheres pretas, invisibilizadas e silenciadas pela classe hegemônica, predominantemente branca.

Fui criado em um contexto no qual as referências, principalmente vindas pela televisão, promoviam pessoas brancas como heróis ou como pessoas socialmente bem-sucedidas. Pessoas negras eram sempre estereotipadas: as mulheres sempre como empregadas domésticas e os homens como bandidos. Nesse contexto, a escravidão era romantizada a ponto de a mulher escravizada, heroína de uma novela, não ser negra.

Nesse sentido, Chimamanda Ngozi Adichie afirma o quão impressionáveis e vulneráveis somos diante de uma história, particularmente durante a infância, que contada muitas vezes se torna uma verdade. Referências construídas com a negritude, com muito esforço, vão sumindo, conforme o padrão de vida vai melhorando. Assim como as pessoas negras da minha volta. No meu local de trabalho, quanto maior a exigência de escolaridade, menor era a presença de corpos negros.

Esse histórico muito sucinto serve para introduzir os conceitos que direcionaram a minha pesquisa “O racismo estrutural/institucional e a representatividade negra”, apoiados nos estudos de Sílvio Luiz de Almeida, no epistemicídio em Boaventura de Sousa Santos e na educação antirracista ou nas relações étnico-raciais em Nilma Lino Gomes e Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva.

O racismo estrutural, conforme Sílvio Luiz de Almeida, não se trata de um caso patológico individual, mas de uma construção histórica e sistemática de discriminações que têm a raça como fundamento. Essas discriminações podem ser conscientes ou inconscientes e resultam em privilégios ou desvantagens para o indivíduo, dependendo do grupo racial a que ele pertence.

Infelizmente, ainda que as políticas e atividades das Ações Afirmativas estejam em amplo trabalho de esforço e resistência, por estar inserida em um contexto racista, nossa universidade ainda reproduz nas suas práticas esse sistema. Para Silvio Almeida, as instituições são racistas porque a sociedade é racista.

Durante a minha graduação, de 56 disciplinas, ministradas por 42 professores(as), apenas 5 eram negros(as). É importante ressaltar que nenhum(a) desses(as) profissionais fazia parte do corpo docente do Departamento de Artes Visuais do Instituto de Artes (IA/DAV).

O resultado disso é que poucos, ou quase nenhum, artista negro ou negra é apresentado(a) como referência nas práticas artísticas ou pedagógicas do curso de Licenciatura em Artes Visuais. Além disso, há certo desconforto quando um(a) estudante negro(a) quer tratar do assunto racismo com um corpo docente que, racialmente, não o(a) representa.

Sueli Carneiro vai além de Boaventura de Sousa Santos no que diz respeito ao epistemicídio ou ao genocídio do conhecimento e da cultura do povo negro. Ela visualiza uma projeção do epistemicídio até o ambiente educacional, quando afirma que a falta de acesso à educação provoca um rebaixamento da autoestima dos povos dominados pela deslegitimação ou inferiorização da sua capacidade intelectual e cognitiva.

Na intenção de reverter o quadro de desvalorização da autoestima e da identidade negra, iniciativas como o Teatro Experimental do Negro (TEN), idealizado por Abdias do Nascimento, são de suma importância. Dentre outras atividades, o TEN recrutava moradores das favelas, operários e empregadas domésticas para alfabetizá-los.

Se considerarmos que só em 1985 foi concedido ao analfabeto o direito a voto, essa iniciativa foi fundamental para a emancipação do povo negro, reforçando o pensamento de Nilma Lino Gomes no que diz respeito à educação ser o alicerce para a ascensão social do povo negro.

Dentre outras conquistas, no que diz respeito à educação, as Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, que incluem no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”, impõem a quebra de paradigmas e promovem a troca de aprendizagens e conhecimentos entre brancos e negros.

Na tentativa de contribuir para a valorização e o reconhecimento da produção de artistas negros e negras, foi criado um site com o objetivo de dar visibilidade a esses(as) artistas e cuja maior fonte de pesquisa foi a exposição Presença Negra no MARGS (2022). Nela artistas expositores reforçam que a luta para dar visibilidade a artistas negros, negras e negres é conjunta e que as histórias são coletivas.

É necessária a conscientização da presença do racismo estrutural no sistema da arte, a fim de evitar, por meio de ações concretas, o apagamento das nossas imagens, do nosso conhecimento e o silenciamento das nossas vozes.

A prática da educação antirracista pode fazer com que casos como o meu diminuam ou desapareçam. Essa foi a motivação maior desse trabalho, ainda mais porque foi somente na saída, no final da minha graduação que eu percebi – ou que ficou clara – a falta de representatividade negra nas referências bibliográficas e imagéticas apresentadas em sala de aula. Representatividade importa!

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