Período carnavalesco revive o debate público ao redor de políticas de prevenção e redução de danos

Publicado originalmente em Jornal da Universidade por Ana Plá. Para acessar, clique aqui.

Saúde pública | Discussão de políticas públicas de prevenção de infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) e de redução de danos precisa ser feita ao longo de todo o ano, sem moralismos

*Foto: Flávio Dutra/Arquivo JU 12 fev. 2021

“É a festa da carne.” Essas são as palavras que Ulisses Correa Duarte, doutor em Antropologia Social pela UFRGS, usa para descrever o evento de origem europeia, popularizado ao redor do mundo, mas com um destaque inegável no coração brasileiro: o Carnaval. Sendo parte do calendário cristão, o período carnavalesco se apresenta como um paradoxo delicioso, que é explicado em sua origem histórica. “O Carnaval é uma festa que marca o início da Quaresma, os 40 dias antes da Páscoa. Uma festa de concessões e da carne, justamente porque marca o período no qual as pessoas deveriam se voltar ao seu mundo espiritual, religioso. Essa é a raiz do Carnaval: fazer uma celebração das coisas terrenas, dos excessos.” 

Trazida pelos colonizadores em seus navios, a celebração ganhou novos tons em nosso território. Esse panorama é apresentado por Duarte, especialista no estudo dessa festa centenária: “No Brasil, com a grande miscigenação, um país multicultural e multiétnico, o Carnaval passa por diversas linguagens e apropriações ao longo dos séculos”. Adotado no seio das classes populares brasileiras, não demorou para o evento cristão cair nos maus olhos de classes mais abastadas e do Estado, especialmente, em tempos de governos mais moralizantes. Duarte comenta que campanhas de discriminação e tentativas de censura acompanham o Carnaval durante toda a sua história.

“Isso aconteceu em basicamente todas as grandes capitais do Brasil, especialmente em Porto Alegre. Com a apropriação pelas classes populares, o Carnaval passou a ser ainda mais vigiado para que não saísse do controle do serviço público. Uma tentativa de interpretar o Carnaval como uma força motriz que nos levasse ao descontrole e a práticas libidinais” 

Ulisses Correa Duarte

Para o especialista, entretanto, não podemos afirmar que o Carnaval brasileiro é, de fato, um momento dedicado somente aos excessos terrenos. De acordo com ele, é necessário entender a multitude de manifestações e expressões artísticas compreendidas nesse evento. “Existem tantas variações que é difícil falar que o Carnaval é plenamente ligado a tantas efervescências libidinais, concessões, etc. Acho que isso tem que ser medido de acordo com a manifestação que a gente colocar em pauta, já que há diferenças entre todos esses tipos de carnavais”, diz.  

Ainda assim, o período carnavalesco permanece enquanto um dos principais momentos do ano, e pautas como redução de danos no uso de drogas e prevenção ao HIV/Aids ganham destaque no debate público. Presidente do Grupo de Apoio e Prevenção à Aids, Carla Almeida afirma que o grupo só é procurado pela imprensa para falar sobre suas pautas em três datas: no Dia dos Namorados, no Dia Mundial de Prevenção à AIDS (1.º de dezembro) e no Carnaval. Para ela que é voluntária no espaço desde 1998, o fato de o tema ser tratado apenas nessas datas específicas é problemático. “Sempre me causa um incômodo que esse tema seja tratado quase sempre vinculado a datas específicas, porque isso reforça que são só algumas situações que colocam elas (as pessoas) em risco. Isso reforça que pessoas em relações estáveis não têm risco de HIV”, afirma. 

De acordo com o último Boletim Epidemiológico HIV/Aids do Ministério da Saúde, Porto Alegre é a capital brasileira com o maior coeficiente de mortalidade por Aids no país e a segunda capital em taxa de detecção da doença. Os dados são assustadores e, segundo Carla, representam uma realidade ainda mais preocupante. “O que a gente vem percebendo e vendo nos últimos anos é que a resposta local à Aids é muito frágil. Isso não é só quando pensamos em redução de danos, mas quando pensamos na prevenção ao HIV/Aids também.” 

Profilaxia Pós-exposição de Risco (PEP) e a Profilaxia Pré-exposição (PrEP) são medidas de prevenção disponíveis na rede pública que reduzem a possibilidade de infecção pelo HIV. Os medicamentos são indicados, respectivamente, para o uso antes e depois da exposição sexual ao vírus. A PEP está disponível pelo Sistema Único de Saúde para qualquer pessoa em situação de risco, como após uma relação sexual desprotegida, por exemplo. Já a PrEP pode ser acessada por mulheres trans e travestis, trabalhadores e trabalhadoras do sexo, casais em situação sorodiferente e homens homossexuais.

A realidade demonstrada no Relatório de Monitoramento de Profilaxias do HIV do Ministério da Saúde, entretanto, é de que os maiores consumidores desse serviço são homens, homossexuais, brancos e geralmente com ensino superior completo. Diante desses dados, Carla questiona:  

“As mulheres trans são uma população que tem perspectiva de vida de 35 anos. O Brasil é o país que mais mata mulheres trans no mundo pelo décimo ano consecutivo. Se isso não for algo incluído na tua agenda, tu não avanças no campo do HIV e da Aids. A pandemia da Aids é uma pandemia político-cultural, transcende o campo biomédico. Só tem como a gente avançar numa resposta realmente efetiva no avanço do HIV e da Aids se a gente tiver uma política realmente comprometida com o combate ao sexismo, à homofobia, à transfobia. Se não, não vai pra frente.”

Carla Almeida

Com um tratamento preventivo baseado especialmente no uso do preservativo e em soluções medicamentosas, a atual política de combate ao HIV parece fraca aos olhos de Carla. Por falhar em atender e acolher as populações em situação de maior risco e vulnerabilidade para a doença, assim como em falar para um público mais amplo, as medidas preventivas caem no campo do individual e dificultam mudanças palpáveis. “Quando tu individualizas a decisão, que não está ancorada em políticas públicas robustas, tu passas para a área da culpa. Porque daí tu culpabilizas os indivíduos. Não importa se tu não tens acesso à informação, se a informação que chegou a ti não é compreensível, se no momento tu não tinhas condições de acesso.” De acordo com ela, é preciso mais do que nunca falar abertamente sobre HIV e Aids, com campanhas governamentais bem estruturadas que trabalhem com a comunidade e suas demandas. 

O estigma moral criado ao redor de infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), impedindo sua discussão de forma ampla, não é exclusivo delas. Para Moises Romanini, professor adjunto do Departamento de Psicologia Social e Institucional da UFRGS, a visão social ao redor de estratégias de redução de danos em relação ao uso de drogas é baseada no tabu. “No Brasil, e ao redor do mundo, políticas de redução de danos foram vistas enquanto uma apologia ao uso das drogas. Não se trata de uma apologia, porque a pessoa não vai parar. Ela não consegue ou não pode. Mas a gente está preocupado com outras coisas que possam causar danos à saúde além das drogas. Vem de um lugar de cuidado.” 

Romanini afirma que, para falarmos propriamente sobre o consumo de drogas, sejam elas lícitas ou ilícitas, precisamos primeiro entender a construção sociopolítica ao redor dessas substâncias. O professor aponta que é necessário se terem em vista os diversos recortes de classe, gênero e raça que se intercalam na construção de quais drogas (e quais usuários) são “aceitáveis” e quais não são. Esse debate, para ele, é cerceado por visões moralistas que podem diminuir a conversa ao campo jurídico, em relação à legalidade de uma droga e, ao campo biomédico, de usuários enquanto dependentes químicos incapazes de decidirem por si. “Na história, as drogas sempre existiram e sempre fizeram parte de nossa sociedade e de ritos sociais. As pessoas, independentemente de as drogas serem lícitas ou ilícitas, vão fazer uso”, afirma. 

 “A droga que mais mata no Brasil, de forma direta e indireta, é o álcool, e ela é legal. Meu argumento não é de que proibamos o álcool, mas que repensemos nossa política proibicionista. A importância é, primeiro, rever, enquanto sociedade, enquanto universidade, o lugar que a gente atribui à droga: de um objeto inanimado, sem vida, a que declaramos guerra, quando, na verdade, a guerra é contra as pessoas que fazem o uso, especialmente em lugares mais vulnerabilizados” 

Moises Romanini

Para o pesquisador, políticas de redução de danos são essenciais para reformular esse estigma coletivo e sermos, enquanto sociedade, mais capazes de realmente acolher usuários e usuárias. Moisés aponta que no Brasil, ao falar de redução de danos, não mais falamos de políticas estruturadas e governamentais, pois, desde 2019, foi retirada a redução de danos enquanto política oficial, permanecendo, como única opção, a abstinência. “O paradigma da abstinência acaba excluindo do sistema de saúde pessoas que não querem, ou não podem, por qual motivo seja, parar. A política de redução de danos acolhe essas pessoas. Por exemplo, a história que eu ouvi de um rapaz, morador de rua, que dizia: ‘Eu preciso fazer o uso de crack pra me manter acordado e não passar fome. Na luz do dia, eu posso dormir sem medo de ser espancado até a morte’. O crack, nessa situação, age enquanto um favor protetivo, por mais que faça mal à saúde do usuário”. 

“A gente não pode falar em drogas sem falar em direito e segurança básicos às pessoas: direito ao lazer, à segurança, à educação. Falar da política de redução de danos na universidade é falar disso também, senão é perda de tempo.” 

Moisés Romanini
Nas imagens acima, voluntários do GAPA-RS e do Fórum ONG – AIDS reunidos para distribuição de leques com informações para prevenção de DST no carnaval de 2017, em Porto Alegre. A arte do leque foi produzida pelo cartunista Iotti; na imagem de capa, parte da alegoria de carnavalesco no galpão de Unidos da Unidos da Vila Mapa, no Porto Seco, local dos desfiles das escolas de samba na capital (Fotos: Flávio Dutra)
Recomendações de prevenção e redução de danos para quem for curtir a folia carnavalesca 

Romanini ressalta a necessidade de entender o efeito das substâncias utilizadas e do processo de autoconhecimento. “O momento que a gente mais se coloca em risco é quando a gente não tem muita clareza do objetivo daquele consumo e do que aquele consumo vai de fato produzir em mim.” Além de a atenção a possíveis resultados do uso concomitante de drogas, compreender o porquê do uso, qual o resultado esperado e como seu corpo reage à substância são processos individuais essenciais para um uso que leve em questão táticas de redução de danos. É necessário entender as substâncias, saber o que elas produzem pra ter autonomia na escolha de fazer uso delas ou não. 

“A gente tem um novo fator que é a pandemia. Eu quero viajar, eu quero ir pra praia. Quais estratégias eu vou adotar para cuidar de mim e dos outros? Porque eu posso voltar da praia e espalhar pra muita gente. A gente também pode pensar isso a partir da redução de danos”, compara.

Em relação ao HIV, Carla Almeida também compartilha algumas estratégias que podem ser tomadas. Caso não vá ser feito o uso do preservativo (seja ele interno ou externo), ela recomenda o uso de lubrificantes. “Um insumo de prevenção de que não se fala muito é o gel lubrificante. Não tem mais gel lubrificante nos serviços públicos de saúde. Então a sociedade civil tem que dialogar com os serviços municipais e governamentais pra negociar. O gel lubrificante é extremamente importante para o sexo anal, o sexo vaginal. Você diminui o atrito e, assim, o risco de uma fissura.”  

A presidente do Gapa também lembra a última campanha de Carnaval do grupo, realizada em 2018: “Tu também tens que falar isso de ‘se beber não dirija’, de se for beber tomar bastante água, de estar atento para não compartilhar nada (canudo, cachimbo). Tem uma série de estratégias que podem ser incorporadas ao dia a dia das pessoas”.

Compartilhe:

Share on whatsapp
Share on twitter
Share on facebook
Share on email
Share on linkedin
Share on telegram
Share on google

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Language »
Fonte
Contraste