O que é ser uma mulher fantástica?

Publicado originalmente em Jornal da Universidade. Para acessar, clique aqui.

Artigo | Giovanna Parise apresenta reflexões provocadas por seu Trabalho de Conclusão de Curso sobre o papel do Jornalismo na discussão sobre as relações de gênero

*Por: Giovanna Parise
*Foto: Reprodução Youtube/ Cena de “Carolina de Jesus”, do quadro “Mulheres Fantásticas”, do programa Fantástico, da Rede Globo

Historicamente, os papéis sociais de gênero elegeram certas características que determinam o que é esperado de uma mulher. Somos ensinadas a usar rosa, a brincar de boneca, a gostar de princesas, a sentarmos de pernas fechadas e falarmos baixo. As cobranças são grandes e, por isso, também somos ensinadas a buscar sempre a perfeição – quem sabe, assim, sejamos fantásticas. Essa lógica é tão enraizada que perceber como ela é construída, no dia a dia, não é uma tarefa fácil.

Contribuir para ampliar o conhecimento nesse sentido foi o objetivo do meu Trabalho de Conclusão de curso de Jornalismo, escrito sob orientação de Laura Wottrich e Carolina Bonoto. Com o título “As representações do feminino no quadro Mulheres Fantásticas”, o trabalho provoca a pensar a função do jornalismo na construção de papéis desiguais de gênero nas representações sociais.

Em diálogo com autores como Stuart Hall, Serge Moscovisci e Ângela Arruda, o estudo entende as representações como um conjunto de significados que guia nossa interpretação da realidade, mas também orienta nosso comportamento. Essas representações são, antes de tudo, um processo que envolve diferentes linguagens. Ou seja, somos guiados pelas representações sociais ao definirmos o que é ser uma mulher, o que é ser fantástica, e assim por diante.

Visto que esse processo envolve linguagens, a mídia – mais especificamente o jornalismo, por suas especificidades – é um fator relevante na construção das representações do feminino. As vivências que temos como mulheres na sociedade são permeadas e, de certa forma, construídas também pelo discurso jornalístico.

Quando mais relevante for o canal responsável por veicular tal discurso, maior também sua relevância nessa construção: é o caso do quadro Mulheres Fantásticas, uma série especial do Fantástico da Rede Globo, com 19 episódios que mesclam uma história animada de uma mulher reconhecida por algum feito importante e uma reportagem conduzida por Polianna Abritta sobre a protagonista – a “mulher fantástica”–, entrevistada pela repórter. 

Para começar, o estudo analisou quem são as mulheres fantásticas para o quadro. Elas são majoritariamente negras, têm entre 25 e 40 anos, são do Sul e Sudeste do Brasil e são de classe baixa. Notou-se uma quase ausência de mulheres com deficiência: há apenas uma protagonista nessa condição. Todas elas são cisgênero e, entre aquelas que abordam sua sexualidade, todas são heterossexuais.  

Ao olhar para as representações que circulam na sociedade e para o quadro Mulheres Fantásticas, o trabalho observou algumas imagens frequentes do feminino na mídia, como a das mulheres submissas e a das mulheres maternais.

Ou seja, a todo momento é reiterada a ideia da mulher como frágil, humilde, discreta, doce, delicada, emotiva, mãe ou cuidadora da família ou do próximo. Ambas representações foram reforçadas ora pela narração, ora pela escolha das protagonistas, ora pela escolha das passagens, ou seja, isso aconteceu muitas vezes pelo enquadramento jornalístico.

Junto a tais discursos, existem aqueles que nos colocam no papel de dar conta de tudo, superar o que for preciso (sem discutir o que, de fato, é preciso em uma sociedade tão desigual). Esse discurso simplista pode ser provocado pelo foco nas trajetórias pessoais, um recurso do jornalismo. O quadro, ao buscar aproximar o telejornalismo das pessoas a partir do entretenimento, fica, muitas vezes, limitado a tais estereótipos. 

Mas, se o jornalismo contribui para reforçar os ensinamentos desiguais e naturalizá-los, não poderia ele contribuir para questioná-los? Sim, e o jornalismo pode fazer parte da transformação, assim como Mulheres Fantásticas faz em certos momentos. 

Wangari Maathai, na animação produzida pelo Fantástico sobre a ativista queniana que recebeu o prêmio Nobel da Paz

O avanço dos movimentos sociais feministas trouxe à tona pautas como direitos civis, interseccionalidade, transfeminismo, maternidade, divisão sexual do trabalho, violência contra a mulher e outras, de forma que o jornalismo sério não pôde abster-se de abordá-las. Ao mesmo tempo, o próprio jornalismo instigou – e instiga, já que esse processo é contínuo – certas discussões importantes sobre as relações de gênero. Foi assim que se tornou possível a existência de um quadro como Mulheres Fantásticas.

A série especial, portanto, aborda assuntos importantes e colabora para o que Stuart Hall chama de transcodificação: a mudança do que é culturalmente hegemônico. Para o autor, isso pode ser feito com a presença das representações negociadas, alternativas às dominantes. No quadro, esse movimento ocorre na ampliação da voz de mulheres historicamente silenciadas, como em casos de violência doméstica, de desigualdade de gênero no mercado de trabalho, na vida acadêmica, no mundo esportivo, entre outros espaços, e na problematização das diferentes opressões sofridas por cada uma das mulheres, demonstrando suas particularidades.

É claro que a tensão e a reiteração dos padrões ocorrem simultaneamente na sociedade – bem como em um mesmo episódio da série. Isso exemplifica a dificuldade de perceber como a lógica desigual de gênero é construída justamente pela forma como ela opera: naturalizando. Mas é necessário e possível subvertê-la.

Faz parte da responsabilidade social do jornalismo buscar contribuir para essa missão e, ainda mais, do papel da Comunicação como campo de estudos em perceber onde o jornalismo está nessa busca. 

O que é ser, então, uma mulher fantástica? A pesquisa mostrou que o melhor é, em vez de estabelecer uma resposta para essa questão,  manter o olhar atento para como instâncias importantes da nossa sociedade, como o jornalismo, reproduzem sentidos sobre quem somos e o que é esperado de nós e como há espaço, também, para subvertê-las. Fantástico mesmo é – quem sabe um dia, com o avanço de pesquisas e debates como esse – ter a liberdade de sermos quem somos: diferentes, e não desiguais.


Giovanna Parise é formanda do curso de Jornalismo da Fabico/UFRGS e, no trabalho de conclusão de curso, foi orientada por Laura Wottrich e Carolina Bonoto.

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