Jogos digitais são aliados na popularização da ciência

Publicado originalmente em Jornal da Universidade por Tarzicio Macedo. Para acessar, clique aqui.

Divulgação científica | Instituições públicas são as que lideram a produção de jogos com esse objetivo, mas diminuição de recursos humanos e financeiros impede a sociedade de se beneficiar do potencial dos games

*Foto: Reprodução YouTube – A Fiocruz desenvolveu, entre outros, o Fiocraft, ambiente construído dentro da plataforma do popular game Minecraft.
No frame acima, imagem do Castelo Mourisco imaginado por Oswaldo Cruz, no câmpus da Fundação. Crédito: Reprodução YouTube/Fiocruz

Com a ampliação de canais e de mídias nas últimas décadas, em função dos avanços tecnológicos, reter o público em temas sobre a ciência se tornou um desafio ainda maior. Existem vários meios a partir dos quais o conhecimento científico pode ser compartilhado e discutido com um público mais amplo, mas a necessidade de construir canais de integração da ciência com os vários aspectos da vida cotidiana das pessoas em sociedade levou pesquisadores e divulgadores científicos a empreenderem importantes movimentos de inovação.

Ao lado dos tradicionais livros didáticos, textos e conteúdos para jornais, TV e rádio, novas mídias e formatos são hoje usados para despertar o interesse da opinião pública pelos assuntos da ciência, incluindo Histórias em Quadrinhos (HQs), animações, peças teatrais, vídeos, páginas em serviços de redes sociais, canais no YouTube e jogos digitais. Cada um deles representa uma estratégia prática de divulgação científica para a capacitação e educação dos cidadãos de modo geral, atuando em diferentes faixas etárias.

O campo da divulgação científica é reconhecido pela abertura às experimentações e pelo acolhimento de iniciativas com variadas mídias, descreve o pesquisador do Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde (CDTS) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Marcelo de Vasconcellos. “Por isso, por exemplo, tem tantas pessoas que lidam com a divulgação científica em plataformas como YouTube e outros pontos da internet. Existe toda uma ideia de que deve ser feito e nós podemos fazer, usando diferentes mídias”, comenta.

Para o professor e pesquisador do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa em Engenharia (COPPE) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenador do Laboratório de Ludologia, Engenharia e Simulação (LUDES), Geraldo Xexéo, a importância da divulgação científica vem crescendo no Brasil antes mesmo da pandemia de covid-19, mas foi ainda mais impulsionada por esse contexto. “A falta de informação científica ou o próprio desconhecimento do que é ciência levou muitos pesquisadores a se preocuparem em trazer uma mensagem sobre o que estão fazendo”, diz.

Por outro lado, a proliferação de movimentos anticiência e de redes de desinformação científicas mostram que as pessoas possuem distintas epistemologias de relacionamento com a ciência. Para os pesquisadores, esse cenário reforçou a preocupação com o papel social da pesquisa científica na sociedade. “Existe uma necessidade de defesa das instituições científicas brasileiras frente ao movimento de terraplanistas e o decaimento da vacinação, por exemplo”, argumenta Geraldo. O pesquisador e design da Fiocruz complementa: “não adianta você bombardear simplesmente as pessoas com conhecimento científico, como se fosse um buraco que você preenche de areia. Tem que haver estratégias para você lidar com certas questões, porque, em última instância, é uma questão de vontade humana”.

É nesse contexto que os jogos digitais aparecem como uma mídia muito atraente. “Surgiu aí uma vontade de usar essa linguagem atrativa como uma oportunidade em prol da divulgação científica, já que essa mídia possui um impacto muito grande principalmente entre os mais jovens”, destaca Geraldo.

De brincadeira para crianças aos jogos sérios, jogos digitais ganham espaço em outros ambientes sociais

Já há muitos anos os jogos fazem parte da vida de milhões de pessoas. Em casa, no shopping, no parque, na fila do banco e até mesmo no ônibus, pessoas jogam por horas a fio em diferentes aparelhos — smartphones, computadores e consoles. Dados da nona edição da Pesquisa Game Brasil (PGB) informam que 72,2% dos jogadores brasileiros afirmam ter jogado mais em 2022, por exemplo.

Para Geraldo, os jogos – especialmente aqueles disponíveis para dispositivos móveis – assumem uma presença diária na vida de um número crescente de pessoas. Números da PGB mostram que 25,5% do público brasileiro é formado por jogadores com idade entre 20 a 24 anos. Além disso, para 84,4% dos jogadores brasileiros ouvidos pela pesquisa os jogos digitais estão entre as suas principais formas de entretenimento.

Usados para o treinamento médico, militar, aprendizado em escolas e universidades, tratamentos hospitalares e até na publicidade, os jogos têm conquistado cada vez mais espaço em diferentes áreas, incluindo o jornalismo e a divulgação científica. A ciência é bastante presente em vários títulos de jogos comerciais, tanto para embasar um enredo quanto para fornecer um pano de fundo à narrativa introduzida ao jogador, explica Marcelo.

“Nós temos vários jogos que trabalham com ciência, que mexem, de alguma maneira, e até estão envolvidos com a temática. Alguns de ficção científica ou similares, outros que não apenas trazem a temática no conteúdo, mas nas próprias regras do jogo. Estão ali codificando algo que se assemelha ao método científico. Então, são formas de se poder, de alguma maneira, usar esse formato para ilustrar e para atrair a atenção dos jogadores. A ideia, inclusive, é criar jogos que possam estabelecer esse tipo de relação”

Marcelo de Vasconcellos

Com o hábito de jogar jogos digitais, que crescem na cultura brasileira e assumem destaque entre as principais formas de diversão, pesquisadores passaram a aproximá-los da divulgação científica no país. Esses produtos integram os chamados “jogos sérios” – termo usado para agregar títulos desenvolvidos com objetivo de promover o aprendizado de alguma habilidade ou conhecimento específico e produzir um efeito fora do jogo.

Pioneiro no Brasil, Marcelo comenta ter-se surpreendido com a baixa quantidade de trabalhos sobre essa interface. “Temos vários pesquisadores, internacionais inclusive, que trabalham com a análise da divulgação científica feita através do cinema, principalmente, mas essa abordagem trabalha em especial com filmes e com os seus conteúdos”, relata.

Para ele, a ciência ainda não se beneficia de todo esse potencial, mas acredita que os jogos podem assumir um papel preponderante dentro da divulgação científica, uma vez que oferecerem às pessoas uma riqueza de mídia que combina imagens, animações, vídeo, texto e as próprias regras do jogo na condução de um conhecimento. “Na medida em que é uma mídia na qual as pessoas interagem, você está dando ao jogador, portanto ao cidadão, a capacidade de também experimentar aquilo, dele explorar aquele ambiente, aquela questão, aquele assunto de uma maneira mais ativa do que se meramente estivesse assistindo a um vídeo, por exemplo”, defende.

O coordenador do LUDES e professor do COPPE/UFRJ comenta a baixa quantidade de jogos de divulgação científica. “Não achamos muitos exemplos. Têm jogos baseados em ciência, jogos educacionais, mas jogo de divulgação científica é difícil encontrar”, destaca. Marcelo também acredita que há uma carência de jogos feitos com esse intuito. “Temos alguns jogos, mas eles ainda são poucos. É difícil se dizer que há uma grande onda de jogos de divulgação científica hoje”, afirma.

Universidades e institutos de pesquisa públicos assumem protagonismo, mas faltam recursos

Segundo a Associação Brasileira de Desenvolvimento de Jogos Eletrônicos (Abragames), não existe ainda um mapeamento nacional de jogos desenvolvidos no ambiente acadêmico, embora a associação esteja começando este ano uma pesquisa sobre o cenário. De acordo com Geraldo e Marcelo, contudo, a maioria dos projetos de jogos de divulgação científica acaba surgindo do campo da pesquisa dentro das instituições públicas. “Nós não temos um modelo de negócios privado que funcione para fazer jogos de divulgação científica, pelo menos até agora não”, argumenta o pesquisador da Fiocruz.

O produtor típico ainda é um aluno de doutorado, mestrado ou de graduação que está construindo um jogo no contexto de uma tese, dissertação ou da iniciação científica em um laboratório, comenta o professor da UFRJ.

“No meio de um projeto acontecem coisas comuns: pessoas saem do laboratório, quem está envolvido vai mudando de emprego e aí projetos se perdem ou são descontinuados. Esse é um problema da pesquisa brasileira. Basicamente um professor ou dois compartilham ou têm um laboratório, e os alunos vão entrando e saindo em vários ritmos. Junto com esses alunos de mestrado e doutorado, principalmente, nós vamos criando assuntos que têm um ciclo. Então, é difícil você ter um projeto de longo prazo. Você tem um guia de projetos de longo prazo, mas muitas vezes um assunto se encerra totalmente, o que é triste, às vezes. […] É difícil para a pesquisa brasileira, porque ela basicamente é feita de laboratórios com bolsas de vários tipos”

Geraldo Xexéo

“O investimento no videogame é sempre difícil”, comenta Geraldo. Para ele, qualquer jogo, até mesmo de tabuleiro, implica muitos custos. Produzir, finalizar e lançar um projeto, ainda que seja apenas um arquivo para as pessoas imprimirem, demanda uma quantidade considerável de profissionais dedicados de diferentes áreas. “Às vezes as pessoas têm uma expectativa de que alguns alunos vão se juntar, mas na verdade você tem que fazer um investimento até com os alunos, tem que ter um compromisso e uma gestão de projeto para o jogo ficar pronto. Seria ótimo poder contratar um profissional CLT, com mais tempo dedicado, mas essa não é uma realidade ainda”, diz.

“Muitos alunos fazem jogos que ensinam algo de computação, e aí geralmente acontece que o jogo fica legal, mas com poucas fases. Porque para lançar um jogo são necessárias 64 fases no mínimo. Então o estudante precisa fazer, no tempo do projeto, cinco, 12 ou 15 fases. Não consegue construir o volume necessário de um jogo completo. Então, aquela ideia de continuar o produto, ter um jogo que vai evoluindo, melhorando, morre. Essa dinâmica da pesquisa faz com que haja um desinteresse no produto”

Geraldo Xexéo

Além dos problemas com recursos humanos na produção de jogos dentro dos institutos públicos de ensino e pesquisa, os pesquisadores destacam a falta de aportes financeiros como um problema permanente. “Nos últimos anos nós tivemos uma redução enorme na verba de pesquisa. Isso causa também um problema, porque os jogos não são simples de serem feitos. São bem complexos”, reforça Marcelo.

Conciliando entretenimento e informação em prol da ciência

Recentemente Marcelo de Vasconcellos ajudou a fundar na Fiocruz o núcleo de Tecnologias e Artes Digitais para a Saúde (TARDIS), vinculado ao CDTS. O objetivo é usar jogos para comunicar à sociedade sobre temáticas diversas, como saúde, divulgação científica e tecnológica e ciência nacional. A equipe possui em seu portfólio três jogos desenvolvidos, sendo o primeiro deles o Jogo do Acesso Aberto, cuja temática trata do acesso aberto aos resultados de pesquisas científicas, um dos importantes aspectos da ciência.

Frame do jogo Acesso Aberto, cuja origem está na epidemia de ebola que ocorreu na Libéria e a importância das publicações de acesso aberto para o desenvolvimento de ações a partir de pesquisas científicas. (Foto: Reprodução YouTube/Fiocruz)

Lançado em 2015, o jogo é inspirado na epidemia de ebola na Libéria e em um artigo assinado por Mike Masnick para o site Techdirt. Nele o autor descreve como o acesso aberto universal poderia ter evitado o surto no país e salvo milhares de vidas. O jogador é um pesquisador inserido no contexto de uma epidemia se espalhando, onde a propagação do vírus determina o tempo que possui para vencer ou perder.

Ao longo do jogo, é preciso andar e buscar instituições que forneçam artigos para que o jogador possa fazer sua pesquisa e encontrar uma cura (montando um quebra-cabeça de quatro partes). “Têm instituições em que os artigos são privados, ou seja, você não consegue acessar, e têm aquelas com acesso aberto onde você consegue montar seu quebra-cabeça e resolver. A ideia do jogo é ser uma experiência curtinha, mas que a pessoa, no final, caso ela ganhe ou perca, veja uma informação no ‘saiba mais’. Esse é o momento que nós a fisgamos para entender a importância do acesso aberto”, explica Marcelo, game designer do projeto.

Lançado em 2016, o segundo jogo criado pela equipe da Fiocruz é o Quem Deixou Isso Aqui?, cujo intuito é conscientizar pais e responsáveis sobre os perigos de intoxicação doméstica por produtos de limpeza, remédios e outras substâncias. “Nós fizemos um jogo não para as crianças jogarem […], mas para os pais entenderem que é preciso olhar o ambiente de forma estratégica. É um jogo feito para criar essa sensação de urgência. Pelo que conseguimos aferir, fomos bem-sucedidos nesse processo”, esclarece o pesquisador da Fiocruz.

O título foi aprovado pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) como um jogo recomendado para os pais. “Nós ficamos bem felizes, porque sabemos o quanto eles são estritos nesse tipo de aprovação”, comemora Marcelo. Uma segunda versão está sendo criada, dessa vez voltada para os perigos de intoxicação e de acidentes com animais peçonhentos domésticos, cuja previsão de publicação é o final de 2022.

O terceiro lançamento ocorreu em 2019 com o Fiocraft, que consiste na criação de uma versão do câmpus da Fiocruz-Manguinhos no popular jogo Minecraft. “Nós criamos o campus inteiro dentro do jogo, o castelo, todos os prédios e com as exposições científicas lá dentro para que os jogadores pudessem se encontrar, participar de exposições e eventos. Esse espaço digital veio bem a calhar durante a pandemia”, observa Marcelo. Além desses três títulos, há outros jogos menores produzidos por pesquisadores da Fiocruz, como Hiji SushiCaminhos de Oswaldo e Imune e Contato – um jogo sobre depressão.

Já o LUDES/UFRJ possui vários jogos lançados e alguns deles estão disponíveis em seu site. Entre eles está o Mapa do Tesouro: ensinando algoritmos, um jogo voltado para o ensino de algoritmos e pensamento computacional concorrente para crianças entre 4 e 10 anos, disponível para computador e dispositivos móveis. “Nós entendemos a necessidade de fazer divulgação científica a partir da nossa busca por jogos educativos. O grande diferencial é que algumas fases do Mapa do Tesouro exploram conceitos de computação paralela”, salienta Geraldo.

Os jogos estão cada vez mais presentes e influentes na sociedade e na cultura, afetando a maneira como nos relacionamos uns com os outros. Dentro das possibilidades contemporâneas de se pensar a divulgação científica neste século da internet, da conexão, do compartilhamento e dos serviços de redes sociais, os jogos digitais aparecem hoje como um recurso estratégico importante para a difusão do conhecimento científico e de assuntos e processos relacionados à ciência. Para Marcelo, “esse aspecto social é valioso para a divulgação científica também. Se conseguimos colocar pessoas, grupos sociais, seja de que idade for, conversando sobre temas científicos, discutindo, debatendo, isso é muito rico e importante para nós”, finaliza.

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