Inclusão da licença-maternidade no currículo Lattes chama atenção para o desafio de ser mãe e manter a carreira científica

Publicado originalmente em Jornal da Universidade por Mirian Barradas e Gregorie Garighan. Para acessar, clique aqui.

Ciência I Como a concessão de fomentos se dá pela avaliação da produtividade de quem trabalha em pesquisa, o período de afastamento para cuidar de bebê pode gerar uma lacuna que leva até quatro anos para ser recuperada

*Foto de capa: Flávio Dutra/Arquivo JU 23 nov. 2017

São poucas linhas na Plataforma Lattes, mas que representam o reconhecimento de uma das maiores agências de fomento do país – o CNPq – a respeito do impacto da maternidade na carreira científica. Desde 15 de abril, as pesquisadoras podem, em um campo específico dos seus currículos, incluir informações sobre licença-maternidade e registrar o período de afastamento para cuidar dos filhos. Essa era uma demanda antiga do Parent in Science, grupo de mães e pais pesquisadores de diversas universidades que traz à tona como a parentalidade impacta – principalmente para as mulheres – na produção científica e na carreira dos pesquisadores.

Se cada vez mais mulheres ingressam no Ensino Superior – e ocupam, por exemplo, 55% das bolsas de iniciação científica –, à medida que a carreira científica avança, o predomínio passa a ser masculino. É o chamado “efeito tesoura”: as mulheres se iniciam na carreira científica, mas chegam menos aos cargos mais altos do que seus pares do sexo masculino. Adriana Tonini, diretora de Engenharias, Ciências Exatas, Humanas e Sociais do CNPq, confirma a existência do efeito tesoura e admite que as estatísticas precisam ser mudadas. “Dentro do CNPq, se olharmos para as bolsas de iniciação científica, mestrado e doutorado, as mulheres já estão em maioria. Mas quando analisamos as bolsas de produtividade [concedidas a pesquisadores que estão no topo da carreira], a gente vê a pouca participação das mulheres”, revela Adriana.https://e.infogram.com/dabb1c6d-c54e-4a57-a36e-3cf0549637af?parent_url=https%3A%2F%2Fwww.ufrgs.br%2Fjornal%2Finclusao-da-licenca-maternidade-no-curriculo-lattes-chama-atencao-para-o-desafio-de-ser-mae-e-manter-a-carreira-cientifica%2F&src=embed#async_embedSistema de Ciência e Tecnologia do Brasil – posições ocupadas por gênero
Infogram

Para os pesquisadores do Parent in Science, um dos motivos para esse declínio é o impacto da maternidade na produtividade e, consequentemente, na carreira científica. De modo geral, o primeiro impacto ocorre quando a pesquisadora tira a licença-maternidade e se afasta das atividades de pesquisa por quatro ou seis meses (o período varia conforme o vínculo empregatício). “Quando retorna da licença, ela não volta ao mesmo ritmo de produtividade de antes, como se nada tivesse acontecido. Ela ainda tem um bebê em casa totalmente dependente dela, muitas vezes em amamentação”, explica Fernanda Reichert, professora da Escola de Administração da UFRGS e integrante do Parent in Science. No retorno da licença, acrescenta, a pesquisadora recebe a mesma carga de trabalho de antes, muitas vezes incompatível com a nova rotina com o bebê. 

O problema é que, no Brasil, a carreira científica é avaliada principalmente pela produtividade, isto é, pelo número de publicações. Para conseguir fomento, o pesquisador precisa apresentar um número de publicações maior ou compatível ao de seus pares. Os avaliadores de um edital de financiamento, quando analisam os currículos, não costumam levar em conta o período de licença da pesquisadora que também é mãe, e que, portanto, não está publicando tanto quanto outros cientistas da mesma área.

“Há uma espécie de lacuna no currículo da pesquisadora. Sem receber esse financiamento, ela não consegue iniciar uma pesquisa nova, tem menos orientandos e publica menos. Com menos publicações, na próxima rodada de editais de financiamento ela tem menos chance de competir com os demais”

Fernanda Reichert

Os pesquisadores do Parent estimam que esse impacto na produtividade dure cerca de quatro anos após o nascimento do primeiro filho da pesquisadora, e o caso de Fernanda é um exemplo dessa lacuna. Ela cursava o doutorado em Administração na UFRGS quando engravidou. Durante a gestação, terminou o doutorado e passou no concurso para docente da Escola de Administração. Em janeiro de 2016, quando nasceu a filha, Melissa, foi convocada a assumir o cargo de professora. “Eu vinha de um doutorado, período no qual se publica bastante em função dos frutos da pesquisa feita para a tese. Eu vinha em um bom ritmo de publicações e, após o nascimento, de fato fiquei quatro anos com poucas publicações”, relata. Em 2020, conseguiu retomar o ritmo de publicações anterior à maternidade, pois estava sob risco de ser descredenciada do PPG em Administração.

A pandemia adicionou ainda mais dificuldades a esse cenário. Um levantamento divulgado em julho de 2020 pelo Parent in Science revelou como a pandemia acentuou a desigualdade de gênero. Ao analisar respostas de 15 mil pesquisadores, os autores do estudo concluíram que homens brancos sem filhos estavam sofrendo menor impacto na produtividade científica durante o período de distanciamento social. Por outro lado, a produção de mulheres negras – com ou sem filhos – e brancas com filhos estava sendo mais afetada. Com a suspensão das aulas e demais atividades presenciais, os pesquisadores do Parent perceberam que os homens viam aquele período como uma oportunidade de colocar a pesquisa em dia, enquanto as mulheres estavam sobrecarregadas com o cuidado da casa e das crianças em tempo integral, além do trabalho. Fernanda observa que, com o desmantelamento da rede de apoio, toda a carga de trabalho doméstico e de cuidado recaiu sobre as mulheres. 

Nesse sentido, um estudo publicado por pesquisadores europeus observou a queda do número de submissões de artigos científicos por mulheres durante a primeira onda da pandemia, no começo de 2020 – especialmente em áreas como saúde e medicina, que tiveram a produção acadêmica aumentada durante esse período. Essa queda nos índices de submissão de artigos por mulheres, afirmam os autores, pode ser explicada por uma grande mudança nas rotinas familiares causada pela pandemia, pelo ensino domiciliar adotado como medida de contenção à covid-19 e pela sobrecarga de trabalho doméstico sobre as mulheres. 

Fernanda Reichert, docente da Escola de Administração da UFRGS e integrante do Parent in Science, com a camiseta da campanha #maternidadenolattes, promovida pelo grupo (Foto: Fernanda Reichert/Arquivo Pessoal)
Maternidade, filhos com deficiência e carreira científica

Giulia Wiggers, pesquisadora da Universidade Federal do Pampa (Unipampa), aponta que as dificuldades na conciliação entre carreira científica e maternidade são ainda maiores para quem tem filhos com deficiência. Mãe de Enzo, de 10 anos, que tem nível 3 de Transtorno do Espectro Autista (TEA), Giulia ressalta que a realidade da pessoa com deficiência e da família é completamente distinta da realidade de quem tem filho sem deficiência: “Os desafios vão se sobrepondo em camadas, já que a assistência do Estado à pessoa com deficiência é praticamente nula”.

“É um outro nível de preocupação em termos de saúde e de cuidado. Essas diferenças vão se modificando ao longo do tempo, como ocorre com qualquer mãe ou pai, mas também de forma diferente, porque há inúmeras terapias, consultas, medicações, exames, além do cuidado da criança em si”, explica. As variáveis envolvidas são muitas: o tipo de deficiência, o grau de dependência, o contexto socioeconômico da família e a presença (ou não) de rede de apoio. 

Segundo a pesquisadora, a carga de trabalho, inclusive mental, é enorme. “Incluir na escola é um trabalho colossal. Eu preciso basicamente brigar com a escola para que aceitem meu filho e eu possa acompanhar tudo de perto para ter certeza de que ele está sendo incluído”, exemplifica. Ela aponta o desgaste emocional desse processo: “Você vê seu filho sendo colocado de lado, vê a escola não se empenhando na inclusão, precisa brigar ou recorrer ao Ministério Público – além da necessidade de cuidados 24 horas”.

Giulia também percebe o impacto da pandemia na sua produtividade acadêmica: “No começo da pandemia, não senti tanto, porque eu já estava com vários trabalhos em andamento. No momento em que essa realidade virou a nossa ‘nova vida’, porém, percebo, sim, uma grande redução, pois estou com vários trabalhos parados sem conseguir dar andamento”.

Ela aponta que o único apoio institucional aos cientistas com filhos com deficiência veio com a Lei n.º 13.370, de 2016, que concede aos servidores públicos federais o direito ao horário especial (ou seja, redução de carga horária) quando há cônjuges, filhos ou dependentes com deficiência. Giulia e o marido (também servidor federal) têm, cada um, 25% de redução na carga horária. Esse ganho é muito importante, ela ressalta, mas não suficiente: apesar de as atividades docentes serem desenvolvidas no tripé ensino, pesquisa e extensão, a redução da carga horária não é proporcional. Como ela leciona o mesmo número de aulas que seus colegas de departamento, a atuação na pesquisa e extensão ficam prejudicadas. Além disso, pesquisadores que não são servidores públicos federais – como mestrandos e doutorandos – não possuem esse direito. 

“Talvez estejamos perdendo muita gente [na ciência] com isso, porque quem não chegou a um cargo de professor, com certa estabilidade, nem chega”

Giulia Wiggers

Adriana concorda que a dificuldade imposta à chamada “maternidade atípica” acaba sendo maior e que, nesses casos, o impacto na produtividade não dura apenas os quatro primeiros anos apontados na pesquisa do Parent in Science, mas toda a carreira científica. A diretora de Engenharias, Ciências Exatas, Humanas e Sociais do CNPq conta que ainda não há uma ação voltada especificamente para essa situação, mas que a entidade pretende estudar melhor a questão e fazer o necessário para que essas mães tenham um tratamento justo.

Professora da Unipampa e mãe de Enzo, de 10 anos, Giulia Wiggers destaca que as barreiras na ciência para as mães que têm filhos com deficiência são ainda maiores (Foto: Giulia Wiggers/Arquivo Pessoal)
Conquistas e desafios

Resultado do trabalho de muitas pesquisadoras que desenvolvem projetos para buscar diminuir a desigualdade de gênero nas pesquisas científicas, a trajetória de reivindicações do Parent in Science para a inclusão da licença-maternidade no currículo Lattes surgiu em 2017. O coletivo é fruto, justamente, dessas reivindicações e teve seu pontapé inicial quando a fundadora e também professora da UFRGS, Fernanda Stanisçuaski, se inscreveu em um edital de financiamento e recebeu um parecer que mencionava sua “produção aquém do esperado para a fase da carreira”.

“A produção ‘aquém do esperado’ me perseguiu por anos, me tirou oportunidades e por muito pouco não me tirou da ciência”

Fernanda Stanisçuaski

Após o ocorrido, o grupo foi formalizado em 2018 e realizou seu primeiro simpósio, que, desde aquela época, tinha o reconhecimento da maternidade no currículo Lattes como principal demanda. Segundo Fernanda Reichert, uma carta foi endereçada ao CNPq, o qual, um ano mais tarde, anunciou que haveria a inclusão desse campo no currículo.

“Depois desse anúncio, houve um silêncio de mais de ano. Em 2020, começamos a tentar novamente. Publicamos uma carta nos Anais da Academia Brasileira de Ciências para alertar novamente sobre essa questão.” Por fim, o CNPq anunciou que no dia 15 de abril de 2021 o campo estaria disponível. “Foi uma caminhada longa, com várias intervenções de diferentes formas”, acrescenta.

Adriana, que foi a responsável por apresentar o projeto à diretoria executiva do CNPq, conta que a proposta foi aprovada com unanimidade e que tal decisão é uma validação para a comunidade científica da participação das mulheres e da importância de visibilizar a maternidade. Ela relata que recebeu a demanda em fevereiro, e em março já estava aprovada, mas, devido a problemas operacionais e de mudanças na plataforma, a atualização demorou um pouco. 

A pressão feita pelas pesquisadoras do Parent in Science foi, segundo ela, fundamental para que houvesse maior sensibilização e, enfim, a inclusão da licença-maternidade no Lattes. Fernanda Reichert ressalta, entretanto, que o grupo continuará trabalhando e que ainda há muitos desafios pela frente. A pesquisadora revela que a inclusão da maternidade na Plataforma Sucupira, responsável pela avaliação dos Programas de Pós-graduação na Capes, será um dos próximos focos do grupo. “Enquanto a Capes está avaliando os programas e dando notas com base nessa produtividade, muitos programas, por exemplo, convidam uma mãe que retornou da licença-maternidade a se retirar para não prejudicar a sua avaliação”, acrescenta. 

Outra frente por que os pesquisadores do Parent pretendem seguir trabalhando é em relação às mães com filhos com deficiência. Giulia relata a falta de pesquisadores (docentes e discentes) nessa condição. “Precisamos fazer essa busca ativa para descobrir quantos somos e em que condições estamos”, defende. “Mas eu diria que talvez não sejamos tantos quanto pensamos, porque, se você tem filho antes de chegar até certo posto, é muito difícil”, complementa.

Ela ressalta a importância de criar e fortalecer redes de apoio à pessoa com deficiência e ter mais sensibilidade em relação a realidades diversas. “Temos que olhar para a pessoa e perguntar: qual a tua realidade?, do que tu precisas?, vamos fazer uma rede de auxílio dentro do laboratório?”, exemplifica. Ela também destaca a necessidade de novos critérios de avaliação e que considerem a realidade na qual o pesquisador esteja inserido. “A minha capacidade mental não reduz porque eu tenho um filho com deficiência, a questão é que a minha capacidade de trabalho não tem como ser a mesma. Geralmente a gente começa a se desdobrar para sobrepor essa lacuna, mas às custas de quê? De saúde? De bem-estar? Até quando isso se sustenta?”, desabafa. 

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