Educação Social oferece múltiplas perspectivas para egressos da licenciatura

Publicado originalmente em Jornal da Universidade. Para acessar, clique aqui.

Assistência | Licenciadas com trajetória trilhada em contextos não escolares relatam os desafios de atuar em ambientes de vulnerabilidade e desigualdade social e defendem maior presença dessa possibilidade de carreira nos currículos de graduação

*Foto: Flávio Dutra/ Arquivo JU 22 abr. 2015

A escola é considerada social e historicamente como principal local onde se organizam as situações de ensino. No entanto, a amplitude do processo educativo permite que se desenvolvam outras formas de aprendizagem que não sejam dentro do ambiente escolar. A educação social entra nesse contexto.

Ela consiste em uma área com direcionamento de práticas pedagógicas e educativas a sujeitos de determinados grupos sociais que, historicamente, estão à margem da sociedade, não têm acesso a direitos e estão em situação de vulnerabilidade, explica Karine dos Santos, professora da área de Educação Social na Faculdade de Educação (Faced) da UFRGS. E as licenciaturas têm um papel fundamental nessa ocupação. “Estamos falando de uma educação – e todas são sociais, mas essa tem um recorte fundamental focado na desigualdade social. É uma educação que acontece fora do espaço escolar e que contribui muito para o processo formativo da escola.”

De ONGs e projetos sociais a associações, a atuação no campo é focada de forma geral na defesa dos direitos humanos dos sujeitos envolvidos. Dentro da educação social está inserida a socioeducação, estabelecida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e direcionada para jovens que cumprem medida socioeducativa por cometerem algum ato infracional e que foram responsabilizados pelo conflito com a lei.

Apesar de as licenciaturas serem mais voltadas ao âmbito escolar, segundo Karine, é necessário pensar a educação também fora desse espaço.

“A escola é um espaço privilegiado de aprendizagem, nas não é só na escola que se aprende. Nós aprendemos em todos os ciclos da nossa vida e em todos os espaços em que circulamos”

Karine dos Santos

Segundo ela, o aprendizado na educação social revela informações que não estão sempre na pauta de visibilidade, por ser uma educação que se ocupa do social e do olhar pro sujeito, entendendo a singularidade a partir dos efeitos da desigualdade.

A UFRGS possui uma trajetória pioneira na educação social no Brasil: é a primeira universidade a ter essa área instituída dentro de uma faculdade de Educação. Na Licenciatura em Pedagogia, além de ser opção no estágio intermediário, há no currículo, dentre as disciplinas obrigatórias, a cadeira “Educação Social: fundamentos e práticas”. Para Karine, essas são oportunidades para que pedagogas(os) conheçam os espaços da educação social como educação múltipla.

A professora é reconhecida por abrir novamente as portas da educação social dentro da Pedagogia. Ao ingressar na Universidade em 2015, teve a responsabilidade de desenvolver a área, construindo espaços dentro do tripé ensino, pesquisa e extensão. Apesar de não ser uma área nova, “as questões do social e a possibilidade de um trabalho docente além da escola passaram a ser vislumbradas a partir dali de maneira mais concreta”, diz Karine, que também é vice-presidente do Centro Interdisciplinar de Educação Social e Socioeducação (Ciess).

O Centro iniciou com o trabalho no Programa de Prestação de Serviços à Comunidade – PPSC, idealizado há mais de duas décadas pela professora Carmem Maria Craidy como uma unidade de execução de medida socioeducativa, atuando como serviço na rede socioassistencial vinculado ao Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) com o papel de executar, em setores da Universidade, os princípios do ECA. E o Ciess é hoje a iniciativa que garante as atividades do PPSC em caráter contínuo.

Na capa e acima, ambientes do Centro de Convivência e Profissionalização da FASE/RS, onde internos têm experiências de educação em oficinas de costura e cozinha, entre outras (Fotos: Flávio Dutra/Arquivo JU 22 abr. 2015)
Vivências

Thais Goulart entrou para a licenciatura em Pedagogia sem conhecer a educação social. Quando estava se matriculando no segundo semestre do curso, uma disciplina eletiva que tratava sobre crianças e adolescentes excluídos da escola chamou sua atenção. Nela conheceu a professora Karine e os fundamentos da área com que, a partir dali, não se desvinculou mais. Atuou como bolsista de extensão no PPSC nos quatro anos seguintes, realizando acolhimento individual e coletivo de jovens e adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa. A experiência tornou-se tema do seu Trabalho de Conclusão de Curso.

No ano seguinte ao término da graduação, Thaís começou a trabalhar no Movimento pelos Direitos da Criança e do Adolescente (MDCA), uma organização da sociedade civil. Por dois anos e meio, foi educadora social no serviço de convivência, passando pelo trabalho educativo e apoio pedagógico com crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade. Também passou pelo Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos de Porto Alegre. Recentemente, começou a trabalhar no Centro de Juventude de Alvorada, e suas atividades são voltadas a pensar as diretrizes pedagógicas do espaço, fazer acompanhamento e controle das aprendizagens.

Thais Goulart atua no Centro de Juventude de Alvorada, instituição ligada ao governo do Estado e que, sem prédio próprio para o desenvolvimento de suas atividades, utiliza as dependências de uma associação comunitária (Foto: Flávio Dutra/JU)

Jenny Skalee atuou no mesmo campo, mas percorreu uma trajetória bem diferente. Após ingressar em 2012 na licenciatura em Matemática, deparou-se com a oportunidade para concurso de educador social, e a ocupação pedia o magistério, que já havia concluído. Fez o concurso e logo foi chamada para o Abrigo Institucional de Campo Bom. Percebeu que teria conflito de horários com as aulas da UFRGS, pois seu turno de trabalho seria das 7h às 19h, mas decidiu continuar estudando e trabalhando. Por precisar pegar menos disciplinas na faculdade, concluiu a licenciatura em 2021/2. 

A professora de Matemática também trabalhou como educadora social em um Centro de Referência de Assistência Social (CRAS). Somando oito anos de experiência na área, seu trabalho foi mais focado na assistência. Jenny trabalha mais com o grupo de adultos – que estão na idade de recolocação no mercado de trabalho. Dessa forma, volta-se para atividades de organização financeira e geração de renda.

Denegrir a educação

Egressa da licenciatura em Teatro, Manuela Miranda sempre gostou da ideia de dar aula, então escolheu a formação com facilidade. Já conhecia um pouco da educação social por ter cursado alguns semestres de Pedagogia antes de trocar de área. Antes do diploma, começou a atuar no Instituto Pobres Servos da Divina Providência da infância e da juventude na Restinga Velha e Nova, onde ficou oito meses. Depois dali, trabalhou na Afaso – Associação de Famílias em Solidariedade. Lá realizava oficinas de dança, teatro e expressões artísticas. O trabalho foi, também, campo de pesquisa da sua dissertação de mestrado, focada na discussão sobre ‘denegrir a educação’.

Para Manuela, a base da educação sempre foi muito branca. No processo de se encontrar na sua negritude, percebeu que foi uma descoberta através da dor e, muitas vezes, da negação de ser uma pessoa preta. Além disso, teve poucos professores pretos na vida. Queria transformar esse autoconhecimento em algo bom – trazendo um caráter denegridor para a educação.

Ela recorda de uma ação que realizou na Afaso, quando trabalhou com o lápis cor de pele e o autorretrato com os pequenos. Para ela, foi emocionante realizar o movimento performático da mão, de olhar os lápis e comparar com a pele – a pessoa preta, por muito tempo, não encontrava o tom correspondente. Outra experiência que a marcou como mulher preta foi quando fez uma atividade sobre cabelos, em que as alunas encontravam o tipo de cabelo delas conforme o grau de curvatura dos fios. “Nesses momentos, me lembrei de como era ser uma criança preta”, diz. Para Manuela, é importante “afrocentrar” todas as áreas do conhecimento.

Manuela também deu aulas de teatro no Centro de Promoção da Criança e do Adolescente (CPCA), atuando em Viamão e na Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre. Para ela, foi uma das melhores experiências, pois sentia que o grupo adolescente era o que mais gostava das suas aulas. Durante esses anos, passando por vários trabalhos, entrou em dilema sobre querer seguir a carreira artística ou a assistência. Por questões de estabilidade financeira, acabou, no entanto, migrando para outra área e hoje é professora da rede municipal em Sapucaia do Sul.

Discutir a formação

Algumas egressas relatam que encontraram descompassos entre a formação e a realidade que enfrentaram na prática da educação social. Segundo elas, o currículo das licenciaturas, apesar de amplo, acabava não dando uma maior visibilidade a esse campo. “Eu sabia que existiam várias áreas de possibilidades de atuação, mas a educação social em si não me foi apresentada, e quando fui ver o currículo também pouco se falava”, conta Thais. À época, o currículo do seu curso ainda não havia sido reformulado.

Quando fazia seu TCC, Thaís teve dificuldades na formulação do embasamento teórico, já que o currículo da Pedagogia estava majoritariamente voltado ao âmbito escolar. O arcabouço teórico para o seu trabalho se deu de forma autônoma pelas formações que o programa possibilitou e pelas indicações de professores. “Tive muita dificuldade de conseguir colocar na minha prática o que aprendi na sala de aula”, acrescenta. 

Para Manuela, quando estava na graduação, o Teatro não voltava o olhar para a educação social. No momento da prática, diz que precisou aprender “do zero”, mesmo acreditando ser um dos setores que mais abre portas em qualquer licenciatura.

“Me formei e me senti sem ferramentas, sem uma metodologia que tivesse aprendido, ou [que havia aprendido] uma que não fazia muito sentido para a área em que eu estava trabalhando. Uma realidade para a qual a faculdade não me preparou”

Manuela Miranda

A professora de Teatro defende que haja mais oportunidades de estágio nessa área durante a graduação.

À frente da Coordenadoria das Licenciaturas (Coorlicen) da UFRGS, Gláucia Grohs explica que, dentre os currículos dos cursos de licenciatura da UFRGS, principalmente na Faculdade de Educação, há possibilidades de ações em conjunto com o Ciess, além de diferentes disciplinas e projetos direcionados no âmbito da estrutura curricular. “Nós temos premissas de formação de professores que passam por essas dimensões que são transversais nos currículos, como a educação étnico-racial.” Segundo ela, essa ação da Universidade é para dar conta de políticas que regem as diretrizes curriculares, possibilitando aos alunos agir em diferentes campos na profissão.

Dentro da Coorlicen, há o Grupo de Trabalho Dimensões, que, segundo Gláucia, é oriundo exatamente da formação de professores nas suas diretrizes da inclusão de temas transversais à formação de professor em qualquer licenciatura. A comissão de avaliação verifica se existem dentro dos currículos essas dimensões, e as mudanças curriculares são sempre pautadas pelas legislações. Para ela, a educação social está em diferentes âmbitos. “É mais do que ser colocado do ponto de vista de uma disciplina, é um princípio de formação.”

Reconhecimento e mudança de vida

Jenny lembra que, em alguns municípios, a ocupação de educador social exige apenas o Ensino Médio completo, e defende que ela deveria ser direcionada especificamente a profissionais da educação, seja de qual área for. Para a educadora, é uma assistência fundamental.

“Não estamos ali só para ensinar alguém a fazer cálculo, para ensinar história, estamos na forma mais pura para recolocar essa pessoa na sociedade, dar apoio. A gente vai ser só um facilitador, o ‘degrauzinho’ para ela se recolocar na sociedade. Essa é a principal ponte do educador social”

Jenny Skalee
Jenny Skalee trabalha com pessoas idosas no Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), em Campo Bom (Foto: Flávio Dutra/JU)

Manuela reforça que não se trata de um trabalho menos justo e menos digno do que dar aula. Apesar de ainda não ser uma profissão regulamentada, é preciso lutar por isso.

Os aprendizados são ainda maiores na convivência com seus alunos. Mesmo tendo uma origem pobre, no momento em que estava em contato com as crianças, Manuela percebia que a sua realidade ainda era completamente diferente. Ela lembra até hoje do dia em que, no trabalho, reclamou que precisava chegar em casa e ainda colocar roupas na máquina de lavar. “Sora, tu tem máquina de lavar?”, ouviu um de seus alunos perguntar, surpreso. “Naquele momento, me deu um choque: óbvio, a máquina de lavar é um luxo para muita gente”, conta.

Mesmo trabalhando com a educação formal atualmente, a professora sempre acaba voltando os pensamentos para a educação social, que acredita ser muito mais humana e progressista. “Todo mundo que conheço que trabalha com educação social diz que, mesmo que seja só durante um mês, é aquele mês revolucionário na tua vida”, diz.

Para Thaís, seu trabalho é uma satisfação pessoal e profissional. “De fato, me encontrei. É muito mais meu ‘chão’, tem muito mais [espaço para] criatividade para trabalhar, me sinto mais apta e consigo desenvolver diálogos e trocas. Não me vejo trabalhando em outra área da educação.” Para a educadora, ter contato com a educação social enquanto se faz licenciatura é entender o mundo como ele realmente é. “Se eu não tivesse tido a oportunidade de me aproximar da educação social da forma como me aproximei, não teria a visão de mundo que tenho hoje”, reconhece. Jenny concorda que a educação social é um “abrir de olhos” para outro mundo. “É uma prática que vai muito além do ensinar.”

Compartilhe:

Share on whatsapp
Share on twitter
Share on facebook
Share on email
Share on linkedin
Share on telegram
Share on google

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Language »
Fonte
Contraste