Carandiru: 30 anos do massacre que ainda não acabou

Publicado originalmente em Brasil de Fato por Ariadne Natal, Marcos César Alvarez e Maria Gorete Marques de Jesus. Para acessar, clique aqui.

Massacre do Carandiru permanece como um acontecimento emblemático dos impasses civilizatórios no Brasil

Na tarde do dia 2 de outubro de 1992, durante uma operação da Polícia Militar para conter um tumulto na Casa de Detenção do Carandiru, em São Paulo, 111 presos do Pavilhão 9 foram mortos e muitos outros foram feridos.

O episódio aconteceu numa sexta-feira de forte efervescência política. Naquele mesmo dia, o então presidente Fernando Collor de Mello fora afastado por um processo que posteriormente culminaria no seu impeachment. No plano municipal, era véspera do primeiro turno de uma eleição que, ao final, elegeu Paulo Maluf prefeito.   

As primeiras notícias a respeito do que ocorreu no Carandiru mencionavam a rebelião e a ação policial, mas sem informações claras acerca da dimensão do que se passara ali. Apesar dos rumores e a despeito da pressão dos familiares e da sociedade civil, o número de vítimas e a verdadeira extensão dos fatos foram silenciados por mais de 24 horas e apenas foram revelados no sábado, dia 3, após o fechamento das urnas.

Desde o primeiro momento, o caso gerou grande controvérsia e foi marcado por uma disputa de narrativas a respeito de seu enquadramento. De um lado, agentes políticos e as polícias buscavam legitimar as mortes, qualificando o evento como motim e justificando a ação dos policiais como estrito cumprimento do dever legal. De outro lado, denúncias de sobreviventes, familiares, sociedade civil e imprensa apontavam para a ilegitimidade das execuções sumárias, nominando a ação como um massacre.

Relembre: TERRA DAS CHACINAS: 25 ANOS DO MASSACRE DO CARANDIRU


Imagens da grande rebelião de 2001 na Casa de Detenção no Carandiru / Foto: MAURICIO LIMA / AFP

A disputa em torno do sentido daquele episódio ecoava um debate já premente na sociedade brasileira àquela altura e que ainda ressoa fortemente hoje, três décadas depois, novamente em novo momento eleitoral.  Por um lado, defensores dos Direitos Humanos continuam pleiteando medidas de controle da violência policial, com uso moderado e progressivo da força, tendo em vista evitar ao máximo o emprego da força letal. Por outro lado, diversos atores políticos permanecem afirmando a impossibilidade de conciliar segurança pública e Direitos Humanos, e preferem respaldar o exercício arbitrário do poder repressivo, baseado em uma lógica de guerra e enfrentamento, a partir da qual seria necessário escolher entre matar ou morrer. Prevalece nessa visão a conhecida afirmação: ‘bandido bom é bandido morto’.

Neste sentido, o Massacre do Carandiru permanece como um acontecimento emblemático dos impasses civilizatórios enfrentados pela sociedade brasileira. Emblemático não só em razão do superlativo número de vítimas, mas igualmente em face de seus desdobramentos, que apontam para as insuficientes respostas do Estado e do judiciário no que diz respeito a promover qualquer tipo de justiça pelos mortos, a reparar as famílias envolvidas e estabelecer a verdade dos acontecimentos. 

Neste domingo, novas eleições serão realizadas, justamente no mesmo dia em que o massacre ocorreu, trinta anos atrás. Infelizmente, inúmeros candidatos parecem ter a agressividade e a morte como verdadeira plataforma política.

A repulsa aos Direitos Humanos, os projetos armamentistas, as constantes narrativas de guerra e de estímulo ao uso da violência aparecem agora como repertórios normalizados no preocupante horizonte da Democracia brasileira.

Em termos civilizatórios, o caminho a ser trilhado deveria ser justamente o oposto. Deveria ser exigência de todo discurso político, de toda ação no espaço público que massacres de nenhum tipo nunca mais ocorressem no país.

A lembrança do Massacre do Carandiru continua sendo extremamente perturbadora, tendo em vista a defesa da Democracia, a afirmação dos Direitos Humanos e a definição clara do papel do Estado brasileiro no âmbito da ordem pública.


Cena do filme “Carandiru”, de Hector Babenco / Foto: Divulgação

É inquestionável que o Estado deve ser responsável por promover, garantir e defender os Direitos Humanos. Em grande medida, a ação estatal baliza o que será permitido ou não, o que será ou não tolerado, sobretudo no que diz respeito às ações de seus próprios agentes.

A violência extrema, ocorrida naquele 2 de outubro de 1992, significou uma espécie de ruptura no processo de redemocratização do sistema político e social brasileiro. O massacre vitimou não apenas os encarcerados, resultando na morte de muitas delas, mas também os familiares e a própria sociedade como um todo. Manifestou a arbitrariedade estatal e maculou a transição democrática, marcada por quatro anos de Constituição Federal formulada a partir de intensa participação social.

Os caminhos tortuosos percorridos desde então indicam que a sociedade brasileira não foi capaz de efetivamente apaziguar seus inúmeros conflitos. Rememorar o Massacre do Carandiru significa interpelar mais uma vez os valores da sociedade brasileira, com a expectativa de que no futuro massacres não sejam mais nem desejáveis, nem possíveis.

*Marcos César Alvarez é professor do Departamento de Sociologia da USP e coordenador do Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV-USP).

**Maria Gorete Marques de Jesus é doutora em Sociologia (USP) e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV-USP).

***Ariadne Natal é Doutora em Sociologia (USP) e pesquisadora de Pós-Doutorado do Peace Research Institute de Frankfurt (PRIF).

****Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo

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