Diversidade sexual e de gênero, pesquisa e cidadania: a atualidade do manifesto queer caboclo

Publicado originalmente em Jornal Beira do Rio. Para acessar, clique aqui.

Por Fabiano Gontijo e Estêvão R. Fernandes Ilustração CMP

Em meados do século XX, a filósofa francesa Simone de Beauvoir afirmava que não se nascia mulher, tornava-se mulher. Com isso, a filósofa propunha que se desse atenção ao caráter culturalmente arbitrário da determinação de sexo/gênero. Ser mulher não se reduz a certos atributos biológicos e a suas funções vitais, mas teria a ver com a posição socialmente definida que as pessoas ocupam nas relações de poder vigentes. Desde então, gênero, como categoria analítica, vem sendo usado, como propôs a historiadora estadunidense Joan Scott, para designar um elemento constitutivo das relações sociais (baseadas nas diferenças percebidas entre os corpos) que dá significado às relações de poder em vigor em nossas sociedades ocidentais. Mas vale ressaltar, segundo a socióloga nigeriana Oyèrónké Oyěwùmí, que gênero é, de fato, uma categoria analítica produzida em contextos acadêmicos ocidentais para dar conta de realidades também ocidentais e, portanto, deve ser usado com cautela quando se trata de caracterizar realidades não ocidentais, sobretudo aquelas oriundas dos processos de colonização.

Na década de 1980, era a vez de Michael Pollak, um sociólogo francês, afirmar que não se nascia homossexual, tornava-se homossexual. Aqui também se pretende dar ênfase aos aspectos socialmente elaborados e culturalmente arbitrários das representações acerca das práticas sexuais e das eventuais identidades correlatas, quaisquer que sejam as características biológicos das pessoas envolvidas. O filósofo, também francês, Michel Foucault já vinha sugerindo que se atentasse para a maneira como tinha se dado, na Europa moderna, a invenção da “identidade homossexual” como anormal e, por conseguinte, a invenção também da própria “identidade heterossexual” como normal.

No século XIX, essas invenções eram parte de um projeto político novo, vinculado aos Estados nacionais, o qual se sustentava nas proposições instituídas pelas ciências biomédicas, pelas disciplinas jurídico-morais e, em grande medida, pelas moralidades religiosas, sobretudo cristãs. Era preciso, no novo modelo de sociedade burguesa e industrial que se impunha, forjar o corpo dos/as trabalhadores/as, os homens como produtores e as mulheres como reprodutoras. Nesse contexto, os corpos, as identidades, as subjetividades e também as práticas que divergiam das necessidades produtivas e reprodutivas seriam enquadrados como anormais e abjetos – patologizados pelas ciências biomédicas, criminalizados pelas disciplinas jurídico-morais e/ou condenados pelas moralidades religiosas –, tais como as pessoas e as atividades que começam a ser designadas, desde então, como homossexuais, bissexuais, transexuais, intersexuais etc. Esse projeto foi denominado heteronormatividade, associado à heterossexualidade compulsória.

Desse modo, institucionalizavam-se: 1) a ideia de que a nossa identidade social é determinada “naturalmente” pelo dimorfismo sexual; 2) o binarismo de gênero e a relação teleológica entre homem/macho/masculino e mulher/fêmea/feminino objetivando a essencialização da heterossexualidade compulsória; e, enfim, 3) a heteronormatividade como um poderoso dispositivo de disciplinarização dos corpos e controle das populações composto por um conjunto de tecnologias de poder direcionadores dos desejos e dos afetos. Percebe-se, servindo-se dos trabalhos da filósofa estadunidense Judith Butler, que o gênero compõe esse dispositivo e essas tecnologias na construção social das nossas percepções dos corpos, naturalizando o dimorfismo sexual como legitimador das relações sociais e de suas prerrogativas normativas. A heteronormatividade e seus instrumentos coercitivos de disciplinarização dos corpos e de controle das populações – tais como o sexismo e a homofobia –, intrinsecamente associados ao racismo e a outras formas elaboradas de hierarquias de opressão, tornaram-se, desse modo, algumas das estratégias ideológicas usadas pelos Estados nacionais modernos em seu afã expansionista, em detrimento da riqueza da diversidade cultural e da multiplicidade das formas humanas de produção de afetos, como foi sugerido pelas pesquisadoras indianas Jyoti Puri e Jasbir Puar.

Pesquisas arqueológicas e antropológicas realizadas nos mais diversos contextos históricos, geográficos e culturais têm trazido inúmeras evidências de que as práticas sexuais entre pessoas do mesmo sexo/gênero ocorreram e ocorrem com muita frequência nas sociedades humanas, para além do que é proposto como “normal” pela lógica heteronormativa, sexista e racista que estrutura os Estados nacionais, como vem mostrando Fabiano Gontijo. Em outras épocas e em sociedades distintas, não há necessariamente opressões naturalizadas em razão dos desejos e afetos entre as pessoas, mas, ao contrário, nota-se a valorização (deferência ou a indiferença) em relação à diversidade sexual e de gênero. Essas pesquisas vêm contribuindo para questionar a naturalidade e a universalidade da heteronormatividade, desestabilizando, dessa maneira, aquelas categorias binárias e hierarquizadas tidas arbitrariamente como “naturais” e “universalizadas” pelas discursividades médico-científicas e jurídico-morais modernas ocidentais, com o auxílio das moralidades religiosas (principalmente de origem judaico-cristã e islâmica).

O estabelecimento da heteronormatividade e a sua imposição às mais distantes sociedades do planeta nos últimos séculos, com base no sexismo e no racismo, na esteira da colonização, do imperialismo, da expansão capitalista e do processo de globalização, são um fenômeno recente na história humana. Uma das consequências drásticas disso é a tentativa de universalização, não somente da pseudonormalidade do binarismo de gênero e da falsa naturalidade da heterossexualidade compulsória, mas também do apagamento ou silenciamento da diversidade sexual e de gênero que sempre havia marcado a humanidade. A outra consequência nefasta é a imposição, também universalizada, do ódio e da violência contra as pessoas em razão dos seus desejos e afetos considerados pelos parâmetros ocidentais como anormais ou abjetos.

É nesse contexto que se realizam pesquisas no âmbito acadêmico para compreender as configurações históricas das sexualidades não normativas e os arbitrários culturais sobre os quais se assentam a heteronormatividade (e também o sexismo e o racismo) e as opressões relacionadas que se abatem sobre as sexualidades não normativas. E paralelamente, desenvolvem-se, no âmbito da sociedade civil, formas de ativismo político contra a imposição da heteronormatividade, o desrespeito à diversidade sexual e de gênero e às opressões relacionadas. Onde há opressão, cabe à pesquisa e ao ativismo buscarem suas origens, compreender seu funcionamento e elaborar ações para a sua eliminação definitiva. O mês de junho tem sido internacionalmente um momento para se refletir sobre essas opressões, sem deixar de relacioná-las a diversos outros eixos de opressão, como aquelas ligadas à classe, à raça, à pertença étnica, às gerações, ao gênero etc., todas elas imbricadas e alimentando-se, umas às outras.

Nesse sentido, propusemos, a partir da Amazônia, uma perspectiva crítica, reflexiva e engajada ou queer cabocla como uma maneira de instabilizar/desestabilizar as categorias de pensamento sustentadoras das desigualdades, de descentrar os olhares “comportados” para permitir que se percebam as realidades ocultadas e silenciadas, de transgredir a lógica da produção científica para expor e subverter as estruturas ideológicas de poder heteronormadas, virifocadas e racializadas, e, enfim, de radicalizar, ou seja, de ir à raiz dos sistemas de dominação para mostrar o quão arbitrários são. Ao fazê-lo, busca-se também instabilizar, descentrar, transgredir, subverter e/ou radicalizar os próprios modos de produção de conhecimentos “legítimos” (e de enquadramento de saberes considerados, por conseguinte, como “ilegítimos”) impostos a partir do colonialismo/imperialismo (e instituidores da colonialidade do saber/ser). A perspectiva queer cabocla pode ser vista nos textos publicados em dossiês que organizamos em 2016, juntamente com outros colegas, na ACENO: Revista de Antropologia do Centro-Oeste, da Universidade Federal do Mato Grosso, e, no mesmo ano, na Amazônica: Revista de Antropologia, da Universidade Federal do Pará, ou no dossiê organizado em 2020 por Larissa Pelúcio, na Revista Contemporânea, da Universidade Federal de São Carlos, assim como em livros, como Gay Indians in Brazil, de autoria de Estêvão Fernandes e Barbara Arisi, publicado em 2017 pela Editora Springer, e Queer Natives in Latin America, de autoria de Fabiano Gontijo, Barbara Arisi e Estêvão Fernandes, publicado em 2021 pela mesma editora, além de dissertações e teses concluídas ou em andamento, como a de Igor Erick da Silva, do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFPA.

Se toda pesquisa, em qualquer área do conhecimento, tem por objetivo a produção de conhecimentos que contribuam para solucionar determinados problemas (embora as definições de “solução” e “problema” variem em função das áreas), toda pesquisa deve, por conseguinte, ser reflexiva, pois é alicerçada no engajamento (político), na responsabilidade (social) e na ética (cidadã). Não existe pesquisa eficiente sem um engajamento real, por parte das pessoas envolvidas, em prol da melhoria das condições de vida da coletividade, assim como não deve haver pesquisa irresponsável ou descompromissada e, menos ainda, pesquisa antiética. Com pesquisas engajadas, responsáveis e éticas, estaremos habilitados para compartilhar informações rigorosas contra as opressões e, assim, reivindicar um mundo melhor.

No que diz respeito à diversidade sexual e de gênero, faz-se necessário investigar os rigorosos padrões hegemônicos de normalidade e de assujeitamento, as persistentes estruturas de dominação e de produção de verdades sobre os corpos, as sutis tecnologias de poder e de invisibilização e, enfim, as opressoras relações entre Estado, projeto nacional e sexualidade (e gênero, classe e raça) para que se possam instrumentalizar políticas que viabilizem um mundo melhor. Pesquisas engajadas, responsáveis e éticas apontarão, dessa forma, para as modalidades da resistência à hegemonia da heteronormatividade, da homofobia, do sexismo, do racismo e do classismo ao considerar outres sujeites, outras moralidades, outras legalidades, outras discursividades, outras ontologias, outras epistemologias… Será possível, então, promover uma experiência de cidadania – uma experiência queer cabocla – , capaz de dar conta da justiça social por meio do respeito à diversidade e, assim, combater as opressões baseadas em arbitrários culturais. Que esse mês de junho nos ajude a perceber o quanto temos a ganhar com um mundo mais reflexivo, mais diverso, mais colorido.

Fabiano Gontijo é professor titular de Antropologia na Faculdade de Ciências Sociais (FACS) e no Programa de Pós-Graduação em  Antropologia (PPGA), do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH/UFPA). E-mail: fgontijo2@hotmail.com

Estêvão R. Fernandes é professor adjunto de Antropologia no Departamento de Ciências Sociais (DCS) e no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Desenvolvimento da Justiça (DHJUS) da Universidade Federal de Rondônia (UNIR). E-mail: estevaofernandes@gmail.com

 Beira do Rio edição 158

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