‘Desinformação sobre Marielle busca desacreditar outras parlamentares negras’, diz pesquisadora

Publicado originalmente em Agência Lupa por Catiane Pereira. Para acessar, clique aqui.

Ataques racistas e sexistas têm como alvo frequente parlamentares negras, com o objetivo de tirar a credibilidade da sua atuação política e excluí-las do espaço público. O problema vem sendo analisado há quatro anos pela pesquisadora Monique Paulla, doutoranda e mestre em Mídia e Cotidiano pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Ela estuda como as mulheres negras na política utilizam as redes sociais como ferramenta de luta e empoderamento e também como os usuários reagem a essas publicações.

As estratégias para atingir essas mulheres são múltiplas e incluem a disseminação de informações falsas e discurso de ódio. Posts desinformativos sobre a ex-vereadora Marielle Franco, assassinada em 2018, por exemplo, tentam associá-la à criminalidade – o que é falso – e circulam até hoje nas redes sociais. Com isso, buscam interditar a ação de outras parlamentares negras. “A partir dela, querem atingir diretamente todas essas outras mulheres que estão ocupando esse espaço político”, diz. 

Confira os principais trechos da entrevista concedida por Monique Paulla à Lupa.

Ameaças e xingamentos racistas expressam um risco de adoecimento psicológico para mulheres negras na política. Como essa lógica ocorre?

A psicóloga Grada Kilomba analisa o racismo pela lógica da psicanálise e traz a noção de trauma, que é aquele choque que recebemos e que não conseguimos reagir. Episódios de racismo cotidiano são recorrentes em discursos e imagens que as parlamentares recebem. São xingamentos racistas, como “volta para a senzala” e “que cabelo é esse?”, além dos termos sexistas, como “vagabunda” e “vadia”. A gente percebe o quanto isso é violento e está interconectado, feito para impedir a atuação política dessas mulheres. Essas violências estão baseadas no racismo e sexismo. O adoecimento vem a reboque. Porque é diariamente. É racismo cotidiano.

Como você nota que esse tipo de ataque racista interfere na atuação política de uma parlamentar negra?

A principal razão da violência racista é impedir que estejamos nesse lugar desafiando a ordem da hegemonia branca. E a reboque disso percebemos que essas violências funcionam também para descredibilizar a atuação política dessas parlamentares. Essas violências têm um objetivo muito nítido. E uma vez que já estamos nesse lugar, eles pensam: “A gente precisa descredibilizar a fala dessas mulheres. A gente precisa dizer que o que elas fazem não é importante. A gente precisa reafirmar que os direitos sobre a população que elas estão reivindicando não são relevantes”. E qual é essa população? A população negra. E percebemos o quanto isso é eficaz, porque a representação das mulheres negras no parlamento, tanto municipal, quanto estadual e federal é ainda muito baixa. Estamos chegando, mas ainda somos pouquíssimas. E, para além disso, querem manter na memória coletiva que essas mulheres não estão aptas para esse lugar. E a gente já sabe como funciona o racismo no Brasil. É manter as pessoas fora desse conhecimento do que é racismo e de como ele opera na nossa vida. E isso vai muito além do uso de um termo como “macaco”.

Mulheres negras na política institucional tendem a sofrer mais ataques?

Sabemos que o caráter misógino da política brasileira está posto. Essa hegemonia branca e de homens. Que é, inclusive, uma herança das famílias escravistas brasileiras. O processo político brasileiro foi mudando, saímos do Império e adentramos na República, mas essas famílias permaneceram na estrutura política do país. A misoginia e essa inspiração patriarcal que impera na sociedade brasileira já está posta.

Se olhamos interseccionalmente para gênero e raça, percebemos a misoginia e essa inspiração patriarcal vinculada ao racismo. Por isso que a Talíria Petrone está em primeiro lugar, em termos proporcionais, no ranking de mais atacadas nas redes sociais, de acordo com o estudo produzido pelo Laboratório de Combate à Desinformação e ao Discurso de Ódio em Sistemas de Comunicação em Rede (DDoS Lab), da Universidade Federal Fluminense (UFF). A gente tem outras mulheres, inclusive da esquerda, naquela lista, mas ela é encabeçada por uma mulher negra.

Não dá para olhar, quando falamos sobre violência política de gênero, as mulheres sendo um grupo homogêneo.

Mulheres são mulheres múltiplas. Precisamos olhar interseccionalmente para essas mulheres. Precisamos entender que parlamentares como Erika Hilton e Benny Briolly são vitimadas pela violência que inclui gênero, raça e identidade de gênero. Quando falamos sobre mulheres que são candomblecistas, por exemplo, precisamos olhar para gênero, raça, sexualidade e religião. 

Quando olhamos interseccionalmente, precisamos ampliar essa lupa para entender essas violências, para descortinar o que está por trás dessas violências. E descortinar isso é trazer ferramentas para que a gente, de fato, tenha uma democracia.

Então olhar interseccionalmente é uma ferramenta para descortinar e encontrar soluções para proteger a vida dessas mulheres, para que a violência que foi expressa no corpo de Marielle não volte a acontecer. 

Publicações com falsas narrativas sobre Marielle Franco seguem sendo compartilhadas ainda hoje nas redes sociais, principalmente associando a vereadora com criminosos. Por que você acha que desinformação relacionada à Marielle ainda tem força nas redes sociais? 

Marielle representa todas essas mulheres negras que estão hoje no parlamento. Elas assumem esse compromisso de dar continuidade ao movimento político que Marielle iniciou na vereança do Rio de Janeiro em 2017. O trabalho de Marielle foi um trabalho coletivo, feito a partir das demandas da população, desse conjunto que são pretos, mulheres, trabalhadores. Ela assumiu um lugar de representação.

Manter informações falsas [sobre Marielle Franco] faz com que se reproduza isso para outras parlamentares que reivindicam o lugar de sementes dela.

Talíria Petrone diz que trabalhou junto com ela, Renata Souza diz isso também, todas essas parlamentares se comprometem com a agenda Marielle Franco. 

Nós temos uma população que é muito iniciante no uso da informação na rede social e nisso a gente tem um arcabouço para além da estrutura racista. Existe também uma interconexão por outros engendramentos sociais, como o não letramento midiático.

Diante disso, querem manter uma memória de Marielle que seria uma mulher que não deveria estar na política, uma mulher que não estaria apta para exercer um cargo público porque, supostamente, estava associada ao crime organizado. Então, quando querem vincular Marielle a isso, estão dizendo que ela não estava apta para administrar o dinheiro público. 

Como um impacto, a gente vai descredibilizando também as outras mulheres que se reivindicam representadas por Marielle. A partir dela, querem atingir diretamente todas essas outras mulheres que estão ocupando esse espaço político para defender os direitos da população.

Olhando para o contexto de ameaças e xingamentos racistas, o que considera que precisa ser feito para assegurar a presença e permanência dessas mulheres negras na política?

O estado precisa garantir a segurança dessas mulheres. E garantir a segurança dessas mulheres é saber quem mandou matar Marielle Franco e porquê. Partindo daí a gente consegue mapear e entender quais foram as motivações desse crime e proteger as vidas de outras parlamentares.

Vale ressaltar que, quando eu digo “Estado”, não estou falando de uma governança, e sim do Estado brasileiro. Quando Marielle Franco foi assassinada, o Rio de Janeiro estava sob intervenção federal, ou seja, a força máxima de segurança estava no Rio de Janeiro. E, mesmo assim, uma mulher negra representante do Estado foi executada.

O Estado precisa garantir a segurança quando essas mulheres acionam o poder público. A própria Talíria Petrone já relatou diversas vezes que negaram escolta policial para ela voltar ao Rio de Janeiro. Uma representante do Rio de Janeiro no Congresso Nacional que não pode residir no seu próprio estado.

Entendo que garantir a segurança dessas mulheres é tanto no campo físico como no campo digital. O Estado precisa cobrar que as plataformas tenham ferramentas efetivas para impedir que essas informações falsas continuem circulando. As plataformas digitais precisam ter ações e ferramentas para identificar mais rapidamente os agressores. E para que, dessa forma, a gente tenha uma estrutura efetiva para garantir o direito dessas mulheres de fazer política. 

Editado por

Maurício Moraes e Leandro Becker

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