Colunistas, parem de falar dos nossos corpos!

Publicado originalmente em objETHOS por Vanessa da Rocha. Para acessar, clique aqui.

O colunista da Folha de São Paulo Gustavo Alonso é historiador e tem carreira voltada para a área da música. No dia do acidente de avião que tirou a vida da cantora sertaneja Marília Mendonça, de 26 anos, ele foi acionado para escrever sobre a artista. No texto, o colunista foi além da análise da carreira e comentou sobre o corpo dela. Foi amplamente criticado na internet. No último sábado (13) ele voltou a escrever sobre o assunto. No novo texto, disse que foi acusado de ser gordofóbico e se defendeu enfatizando que a coluna anterior buscava retratar “a disputa entre o corpo e o mercado na vida da artista”. 

A objetificação do corpo da mulher atravessa os séculos. A filósofa francesa Simone de Beauvoir entrega vários exemplos em seu livro ʽO segundo sexoʼ ao citar a passagem biblíca de Gênesis em que Eva aparece como extraída de um “osso supranumerário” de Adão; e Aristóteles que disse que “a fêmea é fêmea em virtude de certa carência de qualidades”; ou então o teólogo italiano da Idade Média Tomás de Aquino que definiu a mulher como um “homem incompleto”. Já Freud foi ainda mais específico na teoria da sexualidade ao dizer que a mulher tem essa condição pela ausência do “falo”, ou seja, falta pênis à mulher. O que não faltam são exemplos de episódios na História em que a mulher é colocada como secundária, incompleta e limitada. 

Beauvoir vai além do conceito existencialista de Jean Paul Sartre em que o outro é o elemento principal para a formação de uma subjetividade. Conforme Sartre, o outro sempre é visto como um objeto e há uma luta permanente na formação da individualidade de cada sujeito para que o indivíduo não se dissolva pelo olhar do outro – que julga e cria objetificação. No caso da mulher esse processo assume uma dinâmica diferente. Para Beauvoir, o patriarcado limita as condições de afirmação da mulher enquanto sujeito em condições de igualdade. As relações de poder funcionam pelo reforço da objetificação feminina.

Se na sociedade é comum a objetificação do corpo da mulher, os colunistas, que são fruto da sociedade, também refletem esse comportamento. Por isso que para Alonso foi tão natural falar do corpo de Mendonça. É como se o corpo feminino estivesse ali sedento pela análise. É como se o olhar e o julgamento sobre o corpo da mulher fizessem parte de uma propriedade intelectual coletiva. O segundo texto de Alonso sobre o assunto demonstrou que na visão dele ficaria incompleto traçar a trajetória da cantora sem falar do corpo. Ele se demonstrou alheio ao fato de que a objetificação do corpo da mulher é um assunto que dói para as mulheres que lutam pelo seu espaço na sociedade. 

Na relação de colunistas da Folha de São Paulo, os homens são maioria. Ao analisar todas as colunas que levam o nome do autor, contabilizei 91 homens e 38 mulheres. Conforme dados do Perfil do Jornalista Brasileiro de Mick e Lima (2013), 64% dos profissionais são mulheres e 36% são homens. No entanto, basta circular pelas redações e ver que a presença feminina é menor entre os cargos de liderança estratégica e entre os repórteres especiais, o que impacta nas relações de poder e na cobertura midiática. Sempre foi assim e sempre será – até que isso mude. 

A objetificação da mulher se reflete nos produtos midiáticos e na opinião pública. São inúmeros os casos em que a imprensa reforça esse comportamento, especialmente na televisão. No caso dos jornais, o espaço dos colunistas que é mais aberto para opinião costuma ostentar trapalhadas textuais que machucam. Há quem se aproveite dessa liberdade de expressão comum a todos de forma maliciosa. Em todos os estados há figuras que angariaram fama nesse caminho. Aqui em Santa Catarina, há o exemplo clássico de Cacau Menezes que é respeitado por não respeitar as mulheres. Quando é criticado pelo comportamento machista chama a situação de mimimi e não se retrata. Não muda. O machista é machista porque não percebe que é machista e porque o ambiente que ele está inserido permite. 

Todos nós vivenciamos ambientes opressores para as mulheres e possivelmente todos nós, inclusive mulheres, já tivemos comportamentos machistas estimulados pelo ambiente que vivemos e pelos produtos midiáticos que consumimos. 

Vou dar um exemplo que vem da música: quando eu era criança eu difundia o machismo por ignorância. Gaúcha, criada em Porto Alegre, eu cantava inúmeros sucessos tradicionalistas que me lembro até hoje. Um deles do Grupo Tchê Barbaridade dizia: “não chora, minha china véia, não chora. Me desculpa se eu te esfolei com as minhas esporas”. Em outro trecho o cantor tentava justificar o comportamento. “Fui criado meio xucro e não sei fazer carinho”. Depois segue: “eu já fiz chover três dias só pra apagar o teu rastro e se a china for embora, eu faço voltar à laço!” A pérola final fica com o refrão “sou bagaceiro, meio louco e bebo um pouco ninguém vai me segurar. Não quero trago de graça se bobear eu quebro a taça e faço o chinaredo chorar”. 

Sim, me julguem. Que tipo de criança ouve uma música dessas! Mas esse era o meio que eu vivia e nós somos fruto do nosso meio. Foram anos até eu avançar na educação e na formação crítica para entender que aquilo era um produto que desqualificava a mulher. Em 2017, a cantora gaúcha Shana Müller criou um movimento criticando o machismo nas letras tradicionalistas e parece ter havido melhora (confesso que não ouvi mais para saber).

Foi o jovem colunista que errou, mas poderia ser eu, poderia ser você, poderia ser alguém da sua família. Ele é fruto de uma criação da sociedade. Somos parte dele. Quando ele erra ele mostra que nós também erramos. E se nós criamos essa realidade, também podemos mudá-la. 

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