Carlos Rocha – Vacina sim para o caixa também!

Publicado originalmente em Observatório da Comunicação Pública – OBCOMP por Carlos Rocha. Para acessar, clique aqui.

Em texto para o Observatório da Comunicação Pública, o  jornalista Carlos Rocha analisa o Consórcio dos Veículos de Mídia, a iniciativa de  grupos empresariais de comunicação do Brasil para oferecer informações confiáveis sobre a pandemia no país. Rocha chama a atenção para a contradição protagonizada pelos veículos quando jornais impressos do Consórcio publicaram um anúncio em defesa da adoção do suposto “tratamento precoce” para a doença. Na visão do autor, o consórcio acabou “traído pelo caixa” e o discurso feito dia após dia pelos veículos foi quebrado.

Comunicação pública, por muitas vezes, é equivocadamente relacionada à comunicação de entes públicos como governos. Contudo, a pandemia de covid-19 é um ponto importante para a comunicação pública por entes privados. Um exemplo bastante relevante é a comunicação dos dados relacionados a infectadose mortos pela doença que, diante da omissão de falas públicas e até possível da sonegação de dados, exige umaação para manter estes dados públicos. Contudo, mesmo estas iniciativas não passam pela crise sem questionamentos ou arranhões em sua credibilidade por escolhas equivocadas de seus atores.

A proposta deste texto é abordar, como iniciativa em comunicação pública, o desenvolvimento do Consórcio dos Veículos de Mídia, composto pelos grupos Estado, Folha e Globo, bem como a contradição que se verificou quando esses veículos veicularam um anúncio conclamando a adoção de “tratamento precoce”. Ao situar essa quebra de normatividade, a busca é por demonstrar que, por mais bem intencionadas que sejam as iniciativas, é preciso zelar para não criar e defender contradições.

Em junho de 2020, com mais de 30 mil mortos por covid-19 no Brasil, o governo Jair Bolsonaro adota uma estratégia de enfrentamento heterodoxa em relação à pandemia: começa a alterar os horários de divulgação do boletim diário da doença no País. Após 3 dias, sem explicações detalhadas sobre motivos, o presidente indicou que a mudança era proposital, com a declaração “acabou matéria do Jornal Nacional”. O escândalo na comunicação pública governamental ficou explícito, com uma suspeita clara: que os dados eram maquiados e os números divulgados pelo Ministério da Saúde não eram mais confiáveis.

O governo perde o protagonismo na divulgação de dados, que passa a ser diretamente assumido por parte de duas iniciativas de comunicação pública fundamentais: o Painel Covid, do Conselho Nacional dos Secretários de Saúde (Conass) e o Consórcio dos Veículos de Mídia, dos grupos Globo, Folha e Estado. Como a origem dos dados é a mesma, não há diferenças substanciais entre as informações coletadas pelos veículos midiáticos e as secretarias estaduais de saúde. A partir da capilaridade do grupo Globo, com presença de afiliadas em todos os estados através da Rede Globo e portal G1, a iniciativa do consórcio consolida-se para a divulgação diária dos dados sobre casos e mortes.

Dia após dia, o consórcio registra a evolução da pandemia para 100 mil mortes, em Agosto, 200 mil mortes em janeiro e 300 mil mortes em março, com dados em profundidade sobre a situação dos estados em particular. A situação de colapso das unidades da federação, ao longo desse tempo e o quadro geral também ficam evidenciadas a partir do levantamento promovido pelo Consórcio. A marcha da vacinação também está presente na contagem das empresas privadas.

Mas essas empresas não se limitam a apenas fazer a contagem e consolidação de dados. Diante de outra falha clara da comunicação governamental, a falta de ações de estímulo à vacina, o consórcio dá um passo além, encampando uma campanha de vacinação com a exposição de seus profissionais conclamando a população para a imunização. A campanha “Vacina Sim”, primeiramente através dos veículos noticiosos e posteriormente recorrendo a artistas, é um exemplo de comunicação pública em prol do combate à covid-19 encampada pelas empresas privadas.

Contudo, o consórcio acabou “traído pelo caixa” das empresas participantes em fevereiro de 2021, com um anúncio publicado na Folha de S. Paulo e O Globo em que há a defesa de um falso “tratamento precoce” contra a covid-19. A normatividade pregada desde a constituição do Consórcio dos Veículos de Mídia pela transparência nos dados, defesa da vacina e esclarecimento sobre tudo relacionado à doença, medicações inclusive, acaba por ser rompido pelas próprias empresas. O discurso feito dia após dia pelos veículos, de que únicas formas de prevenção contra o vírus são o uso de máscaras, a higienização constante das mãos e o distanciamento social, é quebrado por um anúncio que fala em “intervenção precoce” e “combinação de medicamentos”.

Exposta à contradição, Globo e Folha tentaram reduzir a situação a uma separação entre departamento de publicidade e redação, em que cada lado mantém a sua independência adotando a postura que considerar adequada. Enquanto O Globo publicou matéria jornalística contrapondo o manifesto, mas sem comentários a respeito dele próprio ter publicado o anúncio; Folha tem uma matéria contra o manifesto, mas uma defesa do anúncio, através da coluna da ombudsman, em nome de “liberdade de expressão comercial”.

O rompimento da normatividade proposta pelas próprias empresas jornalísticas ao constituir o Consórcio dos Veículos de Mídia é perceptível pelas palavras da ombudsman da Folha, Flávia Lima. Após a publicação do anúncio, os números não deixam de ser divulgados e a campanha pró vacina continua a ser veiculada, mas não sem ficar uma frustração expressa pela jornalista em sua coluna: “É desanimador combater a desinformação na página par e disseminá-la na página ímpar”.

Carlos Rocha
Jornalista, mestre em Comunicação pela UFPI, professor Substituto pela UFMT, 
integrante do grupo de pesquisa Núcleo de Comunicação Pública e Política (NUCOP) e do Observatório da Comunicação Pública.

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