Publicado originalmente em Brasil de Fato por Flávia Rolim e Júlia Lima. Para acessar, clique aqui.
Políticas públicas só são efetivas quando formuladas a partir do engajamento dos atores que compõem a problemática
A Câmara Municipal de São Paulo aprovou a toque caixa no penúltimo dia de trabalho antes do recesso legislativo, projeto de lei que dispõe sobre segurança alimentar, cria um Fundo de Abastecimento Alimentar, institui auxílio financeiro destinado ao acolhimento de pessoas em situação de rua, cria uma Vila para abrigamento desse público e ainda o chamado “Programa Armazém Solidário”.
Não obstante a prática, recorrente, do Executivo municipal enviar propostas de lei e contar com a anuência do Legislativo em manobras que burlam os princípios democráticos e pressupõem discussões amplas com a participação de movimentos e colegiados, a proposta, já transformada em Lei, incita inúmeros questionamentos.
A criação de armazéns destinados à venda de produtos subsidiados destinados a consumidores de baixo poder aquisitivo, carece de detalhamento. Não se sabe como e por quem serão administrados, em que locais funcionarão, se a distribuição geográfica se dará de acordo com a concentração regional revelada pelo Censo da população em situação de rua, tampouco de onde virá o fornecimento dos alimentos. Não foi considerada a robusta legislação já existente no município sobre políticas de segurança alimentar e nutricional como a Lei 15.920/2013, que estabelece componentes do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) e versa sobre respeito, proteção, promoção e provimento do direito humano à alimentação adequada. Também deixou de dialogar com o Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional (COMUSAN), órgão que possui regras de funcionamento interno e composição colegiada que inclui representantes do governo, da sociedade civil organizada, de áreas afins do setor de alimentos, de entidades sindicais, de secretarias do estado e de secretarias municipais. A ausência de participação desses órgãos na formulação da política coloca em risco os objetivos de combate à fome, além da iminência de restringir seus propósitos apenas ao campo da propaganda.
Vale lembrar que, em 2016, a prefeitura de São Paulo ganhou um prêmio de 5 milhões de dólares do braço filantrópico da Agência Bloomberg pela gestão inovadora do Programa Ligue os Pontos. Voltado para o fortalecimento da produção agrícola e articulado para segurança alimentar na cidade, valoriza a conexão com a zona rural, que corresponde a 30% do território, mas sequer foi mencionado na proposta da atual gestão. O acesso ao alimento é condição base para qualquer atividade humana. O chamado custo da fome impacta no sistema de Segurança Social, no Orçamento, na Saúde, na Educação —com atraso de aprendizagem das crianças—, e no mercado de trabalho, com redução da mão de obra e da produtividade.
Um segundo ponto que merece comentário é a proposta de uma Vila, local de abrigamento provisório para pessoas em situação de rua e capacitação profissional. Segundo o prefeito, a ideia é diminuir a população em situação de rua na capital paulista, mas desrespeita princípios fundamentais como o direito à moradia permanente e à segurança da posse, elementos comprovadamente eficazes para o enfrentamento dessas vulnerabilidades. Fere o princípio da “moradia primeiro”, que tem como vetor o acesso imediato à moradia permanente e segura, dispersa no território do município e integrada à comunidade, destinada a pessoas em situação crônica de rua.
Um último ponto, do recebimento de auxílio para cidadãos que abrigarem pessoas em situação de rua é multiplamente problemático, reforça preconceitos e estigmas contra esse segmento da população e a considera incapaz de gerir seu benefício questionando a sua própria autonomia. Almeja que as famílias possam acolher esses indivíduos, mas ignora dados revelados pelo mesmo Censo realizado pela prefeitura em que 34,7% das 31.884 pessoas entrevistadas revelaram conflitos familiares como o principal motivo de estarem nas ruas.
A prefeitura da maior cidade da América Latina se mostra insensível à multiplicidade das faces de cada cidadão de rua, considera esses indivíduos como não completamente humanos, negligencia a sua própria responsabilidade reforçando a ideia, preconceituosa, que identifica o problema da população em situação de rua como responsabilidade dela própria e não do sistema social excludente. Políticas públicas só são efetivas quando formuladas a partir do engajamento dos múltiplos atores que compõem a problemática, requerem monitoramento e avaliação permanente para que possam ser aperfeiçoadas. Como isso se dará no caso do auxílio para acolhida, por exemplo?
O recado que fica é o pretenso intuito de resolver questões complexas com soluções impositivas, sem diálogo com quem vive a situação ou com quem trabalha há anos com o tema, além da ideia de uma cidade que tem como ambiente ideal a profilaxia do meio urbano, escondendo multidões de pobres e degenerados em sistemas de controle com pouca ou nenhuma transparência.
Flávia Rolim é Cientista Social pela Unicamp e mestre em Gestão e Políticas Públicas pela FGV.
Júlia Lima é Engenheira Civil pela Poli/USP e especialista em Gestão Pública pelo INSPER.
Ambas são do Fórum da Cidade de Defesa da População em Situação de Rua de São Paulo
Edição: Glauco Faria