Publicado originalmente em ObjETHOS. Para acessar, clique aqui.
Rogério Christofoletti
Professor da UFSC e pesquisador do objETHOS
Comissões Parlamentares de Inquérito costumam funcionar como espelhos da sociedade. Não só porque permitem enxergar melhor o que está bem diante da nossa cara, mas também porque, a depender do ângulo em que seguramos o espelho, podemos ver o que está bem pertinho, embora nem sempre ao alcance dos olhos. A CPI da Covid não é muito diferente das comissões anteriores e vem mostrando alguns subterrâneos da vida nacional na forma de contratos suspeitos, negociações fajutas, personagens abjetos, e um débil combate à doença pelo governo federal. Um pouco antes do recesso vieram à tona alguns detalhes que não comprometem apenas políticos, gestores e intermediários, mas também parte da grande imprensa.
Em fevereiro passado, pelo menos oito dos maiores jornais brasileiros publicaram anúncios de meia página defendendo o tratamento da Covid com medicamentos sem eficácia comprovada. Assinados pelo coletivo Médicos pela Vida, os anúncios recomendavam o uso de cloroquina, ivermectina, vitamina D e zinco para atenuar sintomas da doença. A publicação dos anúncios gerou um rápido debate sobre a responsabilidade dos jornais no espalhamento de desinformação. Os anúncios circularam nos principais mercados nacionais – São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia, Rio Grande do Sul, Pernambuco, Ceará e Distrito Federal – e em jornais que têm alardeado compromisso de combate às fake news, como O Globo, Estado de Minas, Zero Hora, Jornal Correio e Correio Braziliense. Outros três jornais que publicaram os anúncios fazem parte do capítulo brasileiro do Trust Project, que zela por transparência e credibilidade: Folha de S.Paulo, Jornal do Commercio e O Povo.
O que a CPI revelou antes do recesso é que os anúncios foram bancados pela Vitamedic, farmacêutica que é uma das principais produtoras de ivermectina no país. Dados fornecidos pela empresa mostram que, de 2019 para 2020, as vendas do vermífugo cresceram 1230%, fazendo os negócios saltarem de 5,7 milhões de caixas para 75,8 milhões. Se o leitor acha escandaloso que um coletivo de médicos prescreva medicamentos ineficazes numa pandemia, imagine o mesmo coletivo endossar uma campanha publicitária patrocinada por uma fabricante da substância recomendada. Do ponto de vista da ética médica, há evidentes embaraços e deslizes no caso. Mas do ponto de vista da ética jornalística também há, afinal, os oito jornais que aceitaram publicar os anúncios sabiam de onde estava vindo o dinheiro, e isso só veio à tona agora. Foi graças a um conjunto de requerimentos do senador Humberto Costa (PT-PE), aprovados pela CPI e endereçados às empresas jornalísticas, que os valores pagos pela publicação e os nomes dos pagantes foram fornecidos pelos jornais.
Alguém poderá argumentar que, nos jornais, funciona a lógica da Igreja-Estado, separação dos departamentos comercial e editorial que garante autonomia a cada um deles operar. E que os jornalistas que atuam na redação podem ter sido surpreendidos com a publicação da peça publicitária – juntamente com os leitores. Neste sentido, não houve uma falha ética dos jornalistas. Superficialmente, tais argumentos podem parecer válidos, mas uma análise um pouco mais detida mostra a fragilidade das ideias.
Esquizofrenia
A ideia do esquema Igreja-Estado dos jornais remete a dois polos de poder que devem funcionar sem interferência mútua, garantindo um equilíbrio idealizado e propiciando, de um lado, sustentação financeira e, de outro, autonomia para noticiar. O raciocínio linear é que, se os polos forem mantidos distantes, tudo funcionará bem. Acontece que não é assim que funciona. Igreja e Estado não vivem em dimensões diferentes, pelo contrário. Eles habitam o mesmo espaço, dividem seus “públicos” (o devoto também é cidadão) e compartilham a mesma realidade. Precisam admitir suas naturezas e funcionamentos, mas também devem dialogar. Não podem fingir ou ignorar a existência um do outro. Por isso, o reconhecimento da autonomia é um gesto que vai além da separação geográfica, pois o que interessa mesmo é o respeito pelo papel específico que cada um deles tem na vida social. Cabem à Igreja funções que não devem ser confundidas com as do Estado, e vice-versa. Isso se ainda insistirmos na separação desses poderes e não capitularmos para teocracias, claro.
Na organização jornalística, a metáfora da Igreja-Estado não surgiu para garantir autonomia ao departamento comercial. O jornalismo é uma atividade marcadamente capitalista e os funcionários daquele setor nunca precisaram assegurar sua liberdade de onde captar receitas. A vocação desse departamento é arrecadar recursos, e quase nunca irá importar de onde eles venham. É preciso que se tenha claro que a metáfora da Igreja-Estado vai ser invocada justamente para proteger o trabalho da redação. Numa organização jornalística, é o departamento editorial quem precisa dessa blindagem para que interesses comerciais, por exemplo, não desviem facilmente os rumos da informação, não contaminem completamente os relatos, não corrompam totalmente as notícias. A separação do comercial visa a reduzir ou neutralizar pressões econômicas sobre repórteres e editores que precisam se orientar por critérios jornalísticos que não sejam exclusivamente mercantis.
Por isso que não dá pra engolir a justificativa dada por alguns jornais de que publicar os anúncios de ivermectina fazem parte da liberdade de expressão ou liberdade comercial. A ombudsman da Folha de S.Paulo à época, Flavia Lima, aponta o caminho: “O departamento comercial, contudo, pode dizer não”, afinal “é desanimador combater desinformação na página par e disseminá-la na ímpar”.
Se é questionável para quem é profissional do ramo, o que dizer do leitor comum, que não tem qualquer obrigação de conhecer o funcionamento das empresas de notícia? Para quem não está nas redações, a sensação é de esquizofrenia, pois o mesmo jornal que faz escarcéu pela credibilidade, dá tiros no próprio pé publicando conteúdos desinformantes. É como um time de futebol que precisa mobilizar sua zaga para marcar os próprios atacantes…
Cinismo
Para justificar a publicação dos polêmicos anúncios, alguém pode argumentar que os jornais são produtos plurais, que reproduzem a cacofonia da sociedade e, portanto, estampam suas contradições. Bonita a construção, mas o raciocínio não resiste cinco segundos se lembrarmos que anúncios ocupam espaços publicitários que foram vendidos. Logo, a empresa lucrou com aquela operação e não a fez tão só para garantir a dialogia e a diversidade de pensamento. No caso da Folha de S.Paulo, segundo informações repassadas à CPI, a publicação custou R$ 78.080,62, e nos concorrentes O Globo e Zero Hora, R$ 217.295,05, cada um. Parece muito dinheiro mesmo para uma associação de médicos, profissionais geralmente bem remunerados. E é muito dinheiro, tanto que a campanha foi bancada por uma poderosa empresa farmacêutica, com claros interesses no assunto.
Não podendo esconder o sol com a peneira, em meados de julho, a Folha de S.Paulo trouxe reportagem com a revelação da CPI, repercutindo possíveis deslizes de conduta previstos no Código de Ética Médica. Afinal, os Médicos pela Vida talvez estivessem se guiando pelos interesses da indústria farmacêutica e não pela saúde e bem-estar de seus pacientes. Nenhuma linha da reportagem fala sobre possíveis deslizes éticos do próprio jornal que publicou o anúncio em fevereiro. A ausência naturaliza a prática de publicação de conteúdos desinformantes nas páginas do jornal, e ignora a responsabilidade que as organizações jornalísticas devem ter mesmo com a disseminação de materiais de terceiros, afinal é de credibilidade também que estamos tratando.
O cinismo da Folha não foi exclusivo da reportagem. No mesmo dia em que fez circular o fatídico anúncio, o jornal trouxe reportagem repercutindo a publicação da campanha. A matéria reproduz diversas fontes e uma delas, a presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) Gulnar Azevedo, critica a publicação do anúncio, que “confunde a população, passa uma informação que não é verdadeira e induz respostas indesejadas” em meio à pandemia. A reportagem tenta ouvir a Associação Nacional dos Jornais (ANJ), mas a entidade patronal se esquiva de comentar. A reportagem da Folha de S.Paulo não entrevista ninguém da própria Folha de S.Paulo para explicar porque o jornal publicou o anúncio. Parece que nem é com eles…
A CPI da Covid retomou seus trabalhos nesta semana, e é importante para cidadãos, leitores e assinantes acompanharem desdobramentos dessa revelação que ajuda a despir um pouco o manto de soberba ética que ainda veste certos setores do jornalismo nacional.