A ciência contra o negacionismo: pesquisadores/as piauienses no combate às pandemias do século

Publicado originalmente em Ocorre Diário. Para acessar, clique aqui.

Os últimos 18 meses provocaram mudanças profundas nas sociedades do mundo inteiro. A pandemia da Covid-19 trouxe muitas incertezas e medos à população mundial; os desafios de compreender um vírus nunca antes visto, decifrá-lo e criar estratégias de prevenção e combate, moveram pesquisadores e pesquisadoras de todo o mundo. No Piauí não foi diferente. Se é verdade que o ano de 2020 foi, literalmente, o ano em que a terra parou, também é verdade que nesse período cientistas das mais diversas áreas precisaram correr mais do que nunca, experimentar com maior rigor e testar em alta velocidade, mas com os mesmo métodos de segurança e confiabilidade.

A pandemia da Covid-19, entretanto, não foi a única pandemia que enfrentamos nos últimos meses. Outras pandemias, já presentes entre nós, foram acentuadas e potencializadas em meio à crise do Novo Coronavírus. O negacionismo (ato de recusar e negar uma realidade cientificamente comprovada), o obscurantismo (a negação do conhecimento à população) e a desinformação (propagação de informações falsas, equivocadas ou descontextualizadas para provocar um cenário de crise) emergiram nesse contexto como pandemias paralelas à Pandemia da Covid-19. Tão grave quanto, essas pandemias também ceifaram as vidas de milhares de brasileiros que, tomadas por informações falseadas e fortes cargas ideológicas, aceitaram medicamentos sem eficácia, negaram a vacinação e saíram às ruas sem medidas de proteção e distanciamento.  

Movimentos contrários ao uso de máscara, ao distanciamento e isolamento social ganharam força nos meses iniciais da pandemia. Os discursos de que a crise econômica seria mais letal que a crise sanitária se acentuaram e ganharam força contra as medidas restritivas decretadas pelos governos estaduais e municipais. Mais recentemente, movimentos antivacina também se espalharam pelo país, levando muitas pessoas a duvidarem da eficácia e da segurança das vacinas. No meio de tudo, notícias falsas se espalharam em grandes proporções incentivando medicamentos sem comprovação científica, tratamento alternativo controversos e promovendo dúvidas sobre medidas sanitárias. 

Nesse contexto, diversas iniciativas e projetos científicos passaram a ser desenvolvidos por pesquisadores de todo o mundo, muitos deles piauienses, tanto com produções de materiais médicos, equipamentos e medicamentos inibidores, quanto para produção de dados, análises e ações para combater as notícias falsas e as ideias negacionistas.  

Para o professor Emídio Matos, professor da Universidade Federal do Piauí – UFPI e doutor em saúde pública, a pandemia deixou mais evidente as iniciativas científicas e o trabalho de pesquisa. Isso, por um lado trouxe à tona a importância do investimento em ciência e educação, mas por outro também ampliou a proliferação das ideias negacionistas. 

“Hoje, as pessoas sabem o que é uma UBS (Unidade Básica de Saúde), todo mundo sabe, antes, ninguém sabia o que era. A não ser algumas poucas pessoas que faziam uso constante e, ainda assim, usavam o termo de Postinho, que parece algo menor. Hoje, a população sabe o processo de pesquisa, discute a vacina e seus tipos diferentes, discute a testagem. Tudo isso é um caminho pela ciência, o que é ótimo, Mas tudo vai depender de como vamos aproveitar isso; da gente saber usar esse capital que acumulamos para que ele traga retornos para a educação e saúde”, afirma.  

Vacinação em Teresina (Foto: Ascom/FMS)

De álcool em gel à respiradores; da pesquisa à ação

O mês de março de 2020 foi um marco para o Piauí. Nessa data foram confirmados os primeiros casos da Covid-19 no estado e a partir disso as primeiras medidas restritivas começaram a ser adotadas. Logo em seguida, as universidades suspenderam as aulas, as escolas fecharam as portas e as incertezas rodavam as ruas, na época, vazias. Ao invés de esperar o que poderia acontecer, o professor Emídio Matos explica que o corpo docente e de gestão da UFPI passou a elaborar um Plano de Ação Institucional, criando soluções para enfrentar essa crise através da ciência. 

Professor Emídio Matos (Arquivo Pessoal)

“Nesse momento, começamos a nos incomodar e pensar como a Universidade poderia dar um retorno à comunidade. Fomos dialogando com outros pesquisadores, de outras formações, criando eixos de trabalho. Naquele momento faltava álcool em gel e máscaras. Criamos um eixo de ação para organizar a produção de álcool. O curso de farmácia produziu muito álcool, distribuímos para a universidade e UBS’s; o curso de moda produziu máscaras, que também foram distribuídas; treinamos nosso pessoal com o suporte do Hospital Universitário por telemedicina”, afirma Emídio Matos.

]Das universidades públicas e institutos federais nascem os embriões de projetos que são soluções para diversos problemas nesse contexto de crise. Um trabalho feito a muitas mãos e parcerias, uma delas, foi com a TRON Ensino de Robótica Educativa, por onde foi possível desenvolver, com suporte de pesquisadores da Universidade Federal do Delta do Parnaíba (UFDPar) e da Universidade Federal do Piauí (UFPI), equipamentos e suportes médicos durante a pandemia. 

Entre eles, um  ventilador mecânico de baixo custo, robusto e produzido com materiais acessíveis, construído segundo normas da Associação Médica Brasileira (AMB); máscaras de bioplástico PLA, um material biodegradável, reciclável e eco friendly, de uso comum em impressoras 3D; e agora, mais recentemente, conectores para cilindros de oxigênio e aparelhos de Unidades de Terapia Intensiva. “Todo o projeto foi feito por nós. Desde a parte de acolher a demanda, o desenho, os testes, a fabricação e, por fim, a doação desses produtos”, afirma o Professor Gildário Lima, que coordena os trabalhos. 

Prof. Dr. Gildário Lima (UFDPar) apresenta respirador ao vivo pelas redes sociais. Foto: Gelson Catatau

Da Universidade Federal do Piauí também nasceu o projeto de um ventilador mecânico para a assistência simultânea de múltiplos pacientes infectados com a Covid-19, coordenado pelo professor-doutor do curso de Engenharia Elétrica da UFPI, Otacílio da Mota Almeida. “Em um cenário de calamidade e emergência, com menos de 2 mil reais, será possível atender até a 4 pacientes usando o mesmo respirador”, afirmou Caio Damasceno, pesquisador integrante do projeto. 

São iniciativas que mostram, não apenas a capacidade de produção e elaboração dos pesquisadores e universidades piauienses, mas também a necessidade de se investir em ciência e educação, como forma de possibilitar a criação de novas soluções para problemas sociais diversos.

O combate às pandemias paralelas a crise do Novo Coronavírus

Observar, analisar, identificar, testar, pesquisar, elaborar métodos, produzir, aplicar, reavaliar, observar de novo, analisar de novo, produzir de novo. Esse caminho cíclico é também um caminho das descobertas e comprovações científicas. Não bastasse todo o trabalho das etapas de pesquisa, nos últimos também foi necessário enfrentar as dúvidas, as desinformações e suspeitas sobre a eficácia desses trabalhos. O negacionismo, o obscurantismo e a desinformação se espalharam com força, sobretudo no Brasil, onde essas ideias foram, de certa forma, institucionalizadas por meio do Governo Federal. 

Do Piauí nasceu uma iniciativa que aglutina parceiros do país inteiro dedicados ao combate às notícias falsas e ao negacionismo. Idealizada pela Professora Doutora Ana Regina Rego, do curso de jornalismo da Universidade Federal do Piauí, a Rede Nacional de Combate à Desinformação completou um ano dia 23 de Setembro. Reunindo em um primeiro momento, 33 parceiros, hoje a RNDC é formada por 123 iniciativas que atuam para, de diferentes formas, minimizar os malefícios da desinformação no Brasil. 

De acordo com a professora Ana Regina, esse trabalho nasce da necessidade de uma articulação nacional capaz de barrar o avanço destas pandemias paralelas, a fim de que a proliferação dessas ideias não comprometesse ainda mais os esforços no combate à crise sanitária já instalada. A desinformação como fenômeno é algo que há um bom tempo é objeto de estudos de pesquisadores da comunicação e que, embora não seja um fenômeno recente, ganhou na pandemia da Covid-19 outras dimensões, afetando e mobilizando outros públicos e agentes sociais. 

“A primeira coisa que a Rede nos deu foi uma quebra de paradigma em relação ao ambiente jornalístico. A preocupação com a desinformação tem extrapolado os muros do jornalismo. Quando pensamos na rede pensamos em atuar focado no jornalismo e checagem de fatos, mas percebes que todas áreas da ciência estão preocupadas com a desinformação. Há inúmeros projetos, dentro e fora da rede, preocupados com isso e tentando combater esse processo. A gente percebeu que o jornalismo sozinho não dá conta do processo. Essa é uma missão de toda a comunidade cientifica”, afirma a professora. 

Ana Regina Rêgo (Arquivo Pessoal)

Para ela, é necessário compreender o contexto para traçar estratégias de saídas dessas pandemias e, ainda, que a desinformação é uma estratégia, planejada e arquitetada para se chegar às bases negacionistas. “E essas pandemias paralelas não são separadas, elas mergulharam na pandemia da Covid. A desinformação como pandemia não é nova, no Brasil em 2018 um marco, em 2020 ela consegue superar 2018 e a expectativa é que 2022 tenhamos grandes desafios que, esperamos não sejam intransponíveis”, afirma.

As ações políticas para a cidade baseadas em evidências científicas

Medidas restritivas, planejamentos de ação hospitalares, ampliação e redução de leitos, planos de retomada da economia. Esses são termos que ficaram comuns durante a pandemia, mas o que pouca gente sabe é que por trás das decisões políticas dos gestores, existe ciência. “A secretaria de saúde tem os dados. Mas os dados sozinhos não fazem nada. Os dados precisam virar informação e conhecimento. Esse é nosso trabalho. Nesses últimos meses fizemos várias reuniões com a prefeitura e governo do estado, mostrando como o mundo estava fazendo, para nos antecipar e minimizar os efeitos da pandemia”, explica o Professor Emídio Matos.

De acordo com o professor, que é um dos coordenadores da Sala de Situação da UFPI, criada para realizar um acompanhamento epidemiológico da pandemia no Estado, diversas decisões tomadas pelos gestores públicos tiveram como referência os estudos científicos realizados na universidade. 

Reunião do COE – Comitê de Operações Emergenciais (Foto: ASCOM/SESAPI)

“A abertura da economia fomos nós que planejamos, com os professores das ciências econômicas. Fizemos um planejamento considerando 70% prioritário para a saúde e 30% para a economia. Classificamos todos os serviços e a cadeia econômica, um trabalho junto com o estado para planejar essa reabertura. Hoje, continuamos fazendo isso, com realização de evento teste para analisar e conhecer; na educação, levamos a preocupação social do deslocamento dos estudantes, em ônibus sem controle sanitário, o que levou o estado a repensar a forma dessa retomada”, explica o professor. 

A professora Ana Regina Rêgo destaca que esse trabalho sempre foi realizado pela ciência como um todo, seja as ciências médicas ou as sociais, entretanto, antes isso não era comunicado e hoje houve a necessidade de comunicar. “É preciso dizer quem faz, também como forma de combater essa onde negacionista”, afirma. 

Na contramão dos medicamentos sem eficácia, pesquisadores identificaram potenciais inibidores da Covid-19 no Piauí

Enquanto o Governo Federal, encabeçado pelo Presidente da Repúblico Jair Bolsonaro, incentivou, sem nenhuma evidência, o uso de medicamentos como Cloroquina e Ivermectina, chegando a articular um Kit Covid e sugeri-lo como protocolo hospitalar para tratamento do Novo Coronavírus, pesquisadores piauienses se dedicaram em estudar e identificar medicamentos verdadeiramente capazes de tratar o vírus da Covid-19. 

Em junho, mostramos aqui no Ocorre Diário as potencialidades do Buriti com inibidor da covid-19. . A possibilidade do remédio é estudada por uma equipe de cinco pesquisadores no Piauí. A equipe é coordenada pelo professor Prof. Dr. Francisco das Chagas Alves Lima, vinculado ao Doutorado de Química da Universidade Federal do Piauí (UFPI) e, também, professor da Universidade Estadual do Piauí (UESPI).

Prof. Dr. Francisco das Chagas Alves Lima (Arquivo Pessoal)

A pesquisa se estendeu e hoje também analisa as propriedades do Jaborandi, árvore também pertencente à flora regional. O seguimento da pesquisa foi possibilitado graças a dois financiamentos, um da FAPEPI – Fundação de Amparo à Pesquisa do Piauí e de uma empresa da iniciativa privada, do estado de São Paulo. 

“Agora eu estou esperando chegar as moléculas do Buriti, que está sendo processada nos Estados Unidos. Tivemos umas dificuldades, porque o preço do dólar está muito alto. Quando ao Jaborandi, houve uma pequena complicação no Instituto Butantã, com relação às moléculas, mas a expectativa é que, no mais tardar daqui a 20 dias, as moléculas do jaborandi já tenham rodado e já poderemos saber o potencial delas”, explica o professor Francisco das Chagas. 

A equipe de pesquisadores descobriu que o óleo extraído do fruto do Buriti apresenta substâncias com um efeito inibidor junto ao Complexo 2GTB-Peptidase, um dos principais componentes do envelope viral do vírus SARS-Cov2. De acordo com o Prof. Francisco, o estudo realizado foi na modalidade in silico, quer dizer, em âmbito computacional. Este tipo de estudo, primeira etapa, tem a vantagem, segundo o pesquisador, de diminuir em pelo menos 40% o uso de animais em laboratórios. A partir deste estudo, Francisco aponta que já iniciou articulações para a segunda etapa de estudos, que são os testes in vitro. 

Francisco destaca a bravura dos pesquisadores do Norte e Nordeste envolvidos na pesquisa, sendo as regiões com maiores dificuldades em investimento em ciência e tecnologia. Os outros participantes da pesquisa, além de Francisco e Alan (IFPA) são os pesquisadores Ézio Sá (IFPI), Roosevelt Bezerra (IFPI) e Janilson Souza (IFMA), do mesmo grupo. Neste sentido, ele destaca a importância das parcerias entre as instituições e a necessidade de investimentos na área para que a pesquisa seja realizada no Piauí. 

Para o combate à Covid-19, segundo Francisco, é necessário dois fatores: agilidade e investimento. “Países como Alemanha, China e Inglaterra já estão testando vacinas, enquanto no Brasil ainda esperamos o resultado do edital do MCTIC (Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações) para investir nas pesquisas”, aponta. 

Para os pesquisadores a descoberta é animadora, pois em todo o mundo estão testando mais de 1000 moléculas para criação de um remédio para impedir que o vírus se prolifere ao entrar em contato com o corpo humano. Se confirmar a viabilidade do fármaco a partir do buriti é uma esperança que surge para o combate contra este vírus que, até o momento, já matou mais 38 mil pessoas em todo o Brasil. Mas essa ainda é uma primeira etapa.

Pensar a ciência para além das exatas: o papel dos cientistas sociais 

Para o professor doutor Orlando Berti, da Universidade Estadual do Piauí, as ciências sociais têm, não só uma responsabilidade científica, mas também uma responsabilidade social intrínseca, que busca entender e analisar outras questões que os números sozinhos não são capazes de dizer. “A vacina e o tratamento são muito importantes e são ganhos das ciências médicas, mas as ciência sociais entram para trazer reflexão, para que a população possa entender as causas disso, para mediar esses conhecimentos”, afirma. 

Professor doutor Orlando Berti, da Universidade Estadual do Piauí (Arquivo Pessoal)

Orlando Berti é coordenador de um projeto que, através das plataformas digitais, conseguiu levar reflexões sociais para os 224 municípios do Piauí, através de uma rede informativa e de solidariedade. “O objetivo da Rede Piauí Sem Covid é mediar informações e reflexões sobre a Pandemia, através do whatsapp e instagram. Levamos informações sobre cuidados e vacinação, denúncias de aglomerações e valorização aos trabalhos dos profissionais de saúde. Temos uma série de bons resultados, com uma média de interação semanal que chegou a meio milhão, ou seja, conseguimos atingir os 224 municípios do Piauí, conseguimos refletir os 12 territórios do desenvolvimento e atingir até público fora do nosso estado”, afirma. 

O projeto foi contemplado pelo Edital Emergencial 001/2020 da FAPEPI – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Piauí e pode ainda ser ampliado, a partir de uma parceria com outro projeto, também financiado pela FAPEPI, coordenado pelo professor-doutor João Marcelo de Castro e Sousa, do departamento de Bioquímica e Farmacologia da UFPI. 


Profissionais de saúde, pesquisadores e acadêmicos de graduação e pós-graduação realizaram uma série de ações no sentido de produção de um manual multiprofissional na área de segurança do trabalho. “Unimos os dois projetos, unimos 80 pesquisadores de três estados, refletindo sobre questões profissionais”, afirma Orlando Berti.

Reportagem: Luan Matheus Santana (Jornalista – DRT: 0002038/PI)

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