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A jornalista e professora emérita da Universidade de Brasília (UnB), Zélia Leal Adghirni, discorre sobre o contexto social e político da eleição presidencial francesa de 2022, que reelegeu Emmanuel Macron no último dia 24 de abril em mais um segundo turno ameaçado pela escalada da extrema direita na França.
Diz a tradição francesa que, ao assumir o poder, todo novo presidente tem um período de graça de 100 dias, sem muita cobrança, para que organize a casa e coloque em funcionamento os mecanismos de administração. Emmanuel Macron, do partido República em Marcha!, que acaba de se reeleger, não terá esse direito no início de seu segundo mandato.
É a primeira vez desde 2002 que um presidente é reeleito na França. Mas entre as promessas de campanha e a realidade de um cenário político conturbado, Macron tem um enorme desafio pela frente, sobretudo no que se refere à questão econômica. Ele mesmo vem reconhecendo publicamente o impasse desde a reta final da campanha, com uma humildade surpreendente para quem tem fama de ser arrogante ao ponto de ser chamado de “petit Napoléon” pelos adversários. Macron sabe que sua principal rival política, a deputada Marine Le Pen, do partido de extrema direita Agrupamento Nacional, chegou ao segundo turno depois de prometer reverter a queda do poder aquisitivo dos franceses e protegê-los da reforma da previdência de Macron.
“Sei que muitos dos nossos compatriotas votaram em mim hoje não para apoiar as ideias que defendo, mas para barrar a extrema direita,” disse o presidente no discurso de vitória, no Campo de Marte, perto da torre Eiffel. Ele chegou ao local ao som de Ode à Alegria, de Beethoven, hino da União Europeia.
Quando seus apoiadores começaram a entoar vaias à candidata derrotada, Macron pediu que parassem imediatamente e que respeitassem o campo adverso, sinalizando uma busca de harmonia com todos os franceses. Já não era mais um candidato com suas ideias; era o presidente da França inteira. Seu principal desafio será reconciliar um povo fragmentado entre correntes que se tornaram inimigas umas das outras: o globalismo cosmopolita vs o nacionalismo de barreiras, a França urbana vs a França rural, radicalismos de direita vs de esquerda.
No exterior, as atenções se concentram em Le Pen, que conseguiu, pela segunda vez consecutiva, chegar ao segundo turno. Mas o candidato da extrema-esquerda, Jean-Luc Mélenchon, do partido França Insubmissa, só ficou atrás dela por uma diferença de dois pontos percentuais. Mélenchon acabou contribuindo para a vitória final de Macron ao pedir, após o resultado do primeiro turno, que seus eleitores não dessem um voto sequer a Marine Le Pen. Um apelo político que já havia funcionado em 2002 e 2017, quando os eleitores dos candidatos derrotados votaram tapando nariz para impedir a chegada da extrema direita ao poder.
Apesar de Macron ter sido reeleito com uma vantagem de 17 pontos contra Le Pen no segundo turno, a extrema direita continua angariando cada vez mais apoio. Em 2017, Le Pen obteve 34% dos votos. Cinco anos depois, o número passou dos 41%. Mas o número de franceses que votaram na deputada é menor que o número daqueles que se abstiveram. Um perigoso sinal de descrença na política em um país onde o voto não é obrigatório.
É a sétima vez que o sobrenome Le Pen concorre à presidência. Nas eleições de 1988, 1995, 2002 e 2007, o candidato da extrema direita era o deputado e veterano da guerra da Argélia Jean-Marie Le Pen, pai de Marine. A filha assumiu as rédeas do partido em 2011 com uma estratégia clara: moderar o discurso e sumir com o antissemitismo e o racismo pregados pelo pai. Nesta eleição, ela sequer colocou entre os principais temas de sua campanha as questões do véu islâmico e da imigração, que apareciam de maneira radical em campanhas anteriores. Ao contrário, foi uma candidata suave e sorridente, que pôs em evidência a sua trajetória de mãe solteira e sua paixão por gatos. Ela tocou o coração dos franceses mais humildes ao falar da inflação e da pobreza, coisas que os bons índices de crescimento econômico e emprego não conseguem detectar. Marine, como fez questão de ser chamada na campanha, num claro esforço para se dissociar do sobrenome do pai, ainda apoiou os franceses que rejeitam os confinamentos e a vacina obrigatória contra a Covid-19. A estratégia foi certeira. Ela conquistou a simpatia da maioria dos eleitores das regiões ultramarinas, como Guiana e Guadalupe, e até mesmo de pessoas de origem estrangeira, incluindo muçulmanos.
Por outro lado, a maioria não deixa de constatar os esforços feitos pelo governo durante a pandemia da Covid-19 para salvar a saúde e a economia. Essa política governamental contribuiu para o aumento da dívida pública em 600 bilhões de euros desde 2017. Um terço destes gastos foi devido à política do “custe o que custar” durante a pandemia, visto que o governo pagou salários, socorreu empresas e fez exonerações fiscais.
Macron foi eleito pela primeira vez em 2017 de forma disruptiva – um tecnocrata com menos de 40 anos de idade, “nem de direita nem de esquerda”, sem vícios da “velha política” e que prometeu inventar um novo modelo de gestão. Mas ele acabou sendo essencialmente um presidente de crises: Coletes amarelos que paralisaram o país em 2018 e 2019, terrorismo, Covid e, desde o início de 2022, a volta da guerra às portas da Europa. Pesquisas mostraram que ele conseguiu lucrar politicamente com a imagem de competência para navegar águas turvas. Mas o ódio que ele suscita em boa parte da sociedade francesa é chocante até para os nossos padrões.
São muitas as demandas que esperam por respostas. Os erros não serão perdoados ao líder político mais poderoso da Europa hoje. Sem Angela Merkel no cenário, Macron assume o papel de conciliador na União Europeia e interlocutor chave nos esforços para encerrar a guerra da Ucrânia.
Daqui a cinco semanas os franceses serão chamados novamente às urnas para eleger os 577 deputados que ocuparão as cadeiras da Assembleia Nacional. Se não conseguir uma maioria, Macron não poderá governar como quer e seria relegado a chefe militar e diplomático. Os presidenciáveis derrotados estão em plena campanha para unir suas bases e formar uma verdadeira oposição a Macron. Fortalecida por uma importante votação, Marine le Pen acredita que sairá vencedora neste escrutínio considerado por alguns como “terceiro turno”.
O esquerdista radical Mélenchon também se mostra otimista. Ele disse recentemente que faltam apenas alguns milímetros para fechar um acordo com os diferentes segmentos da esquerda. Ele apela diretamente aos partidos para firmar posição no campo legislativo. Socialistas, comunistas, ecologistas e anticapitalistas são chamados a votar em nome de uma resistência de esquerda capaz de complicar os rumos da política governamental do presidente reeleito.
“Os franceses são ingratos”, disse o pai do presidente, o médico neurologista Jean-Michel Macron, em entrevista ao jornal L’Est Républicain durante a campanha. O pai afirmou que admira a maneira como seu filho conduz o país, mas deixou claro que não concorda com todas as suas ideias . E lamenta que as qualidades do presidente não sejam mais amplamente reconhecidas pelo povo.
Será que essas qualidades serão reconhecidas agora, a partir do segundo mandato?
Zélia Leal Adghirni
Jornalista e professora emérita da UnB
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