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Peça produzida pelo Ministério da Agricultura, voltada ao público estrangeiro, lança mão de analogias sem sentido e números distorcidos
Proposta do governo Bolsonaro vai ampliar conflitos no campo e favorecer grilagem de terras, apontam pesquisadores
No dia 11 de outubro, a ministra Tereza Cristina (Agricultura) compartilhou nas redes sociais um vídeo produzido pelo seu ministério, com apoio da Frente Parlamentar da Agropecuária (a bancada ruralista), que distorce informações sobre regularização fundiária.
Voltada ao público externo e narrada em inglês, a peça integra uma série que diz apresentar “O verdadeiro agronegócio do Brasil”. Este episódio busca fazer propaganda da “regularização fundiária”, nome que o governo dá à titulação expressa de terras na Amazônia.
Desde o ano passado a administração Jair Bolsonaro vem tentando esticar o prazo e o tamanho dos imóveis rurais ocupados irregularmente passíveis de titulação na Amazônia. A primeira tentativa foi a Medida Provisória 910, apelidada “MP da grilagem”, que beneficiaria grileiros de terras ao criar brechas para titular sem vistoria prévia imóveis de até 1.500 hectares ocupados até 2018. A MP era desejo do secretário de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, Nabhan Garcia, ex-presidente da UDR, associação que representa o latifúndio.
O Congresso barrou a MP 910, que foi modificada e convertida no Projeto de Lei 2.633, do deputado Zé Silva (SDD-MG). Nabhan disse que não aceitaria as modificações, que limitaram a médios proprietários (de até 600 hectares) as facilidades da regularização expressa. O PL teve sua tramitação suspensa durante a pandemia, por pressão de ambientalistas.
Desde então, o governo federal mudou o discurso e vem insistindo em que a regularização é a única maneira de solucionar a crise do desmatamento, porque permitiria supostamente identificar os infratores ambientais e puni-los. Como se verá abaixo, esse argumento é falacioso.
O vídeo produzido pelo Ministério da Agricultura traz analogias sem sentido, meias-verdades, erros conceituais e informações falsas. Leia a seguir.
Brazil is one of the world’s major food producers, perhaps, what many people may not know is that Brazil holds this position while preserving 66,3% of its forests.
O Brasil é um dos maiores produtores de comida do mundo. Talvez o que muita gente não saiba é que o Brasil mantém essa posição ao mesmo tempo em que preserva 66,3% de suas florestas.
FALSO
Cerca de 66% do Brasil está coberto com vegetação nativa. É muito diferente de dizer que o Brasil “preserva 66% de suas florestas”. Parte da vegetação nativa está em áreas privadas, que podem ser legalmente desmatadas a percentuais que variam de 20% (na floresta amazônica) a 80% (nos demais biomas). Mesmo nos 66% de vegetação nativa, cerca de 9% já foram desmatados pelo menos uma vez nos últimos 35 anos e mais de 20% estão degradados por fogo ou exploração de madeira.
Today, Brazil is discussing landholding policies in order to fight against illegal deforestation and wild fires.
Hoje o Brasil está discutindo políticas fundiárias para lutar conta o desmatamento ilegal e as queimadas
FALSO
Políticas fundiárias contra o desmatamento e as queimadas incluem criar e implementar unidades de conservação e demarcar terras indígenas. O Presidente da República tem dito sucessivas vezes que o Brasil tem áreas protegidas demais, a ponto de ficar “inviabilizado”, e prometeu na campanha não apenas não demarcar “nenhum milímetro” de terra indígena como também rever unidades de conservação, algo que seu ministro do Meio Ambiente vem tentando fazer. Em 2019, o governo Bolsonaro engavetou o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia (PPCDAm) e o desmate cresceu 34%, a maior alta em onze anos.
Os atos e discursos do governo tiveram o efeito inverso, de aumentar o desmatamento e as queimadas.
Imagine someone driving around town without a license plate number while committing several traffic violations. Traffic violations count on strict law enforcement. All it takes is to identify, monitor and punish reckless drivers. The same principles apply when we think about land ownership.
Imagine alguém dirigindo um carro na cidade sem placa e cometendo várias infrações de trânsito. As infrações têm punição estrita. Só é preciso identificar, monitorar e punir os maus motoristas. O mesmo princípio se aplica quando pensamos na propriedade da terra.
FALSO
A analogia não faz o menor sentido. Um carro sem placa cometendo infrações em série pode ser parado na rua pela polícia e seu motorista, autuado ou mesmo preso. Ninguém precisa saber quem é o dono do veículo para tirá-lo das ruas. Com o desmatamento é a mesma coisa: não é preciso saber quem é o proprietário da terra para conter o dano ambiental. Tanto é verdade que o Brasil reduziu o desmatamento na Amazônia em 73%, entre 2004 e 2009, sem alterar a legislação sobre regularização fundiária.
Outro problema com o argumento é que, em grande parte dos casos, o governo sabe quem é o dono ou quem está reivindicando posse sobre uma área: segundo dados do Mapbiomas, 77% da área desmatada no Brasil em 2019 – 83% do desmatamento está na Amazônia – ocorre em áreas que se sobrepõem a pelo menos um Cadastro Ambiental Rural (CAR). Bastaria aplicar as punições. No entanto, isso não tem ocorrido. As multas do Ibama por infrações contra a flora na Amazônia até setembro caíram 62% em 2020 na comparação com o mesmo período de 2019 (que já havia registrado queda de 24% em relação a 2018). Isso ocorreu mesmo com a informação disponível de quem são os responsáveis pelas áreas onde ocorreu a maior parte do desmatamento.
Unregistered land is more difficult to monitor and control. Deforestation rate in illegal areas located in the amazon biome of Pará state, for instance, has been 134% higher than in regulated areas.
Terras sem registro são mais difíceis de monitorar e controlar. O desmatamento em áreas ilegais no Estado do Pará, no bioma amazônico, é 134% maior do que em áreas regularizadas.
FALSO
Um estudo de Benedict Probst (Universidade de Cambridge) e colegas publicado no periódico Nature em maio aponta que, ao contrário do que afirma o governo no vídeo, proprietários de áreas tituladas tendem a continuar desmatando. O estudo analisou 10 mil imóveis titulados na Amazônia entre 2011 e 2016 e mostrou que pequenos e médios proprietários tendem a desmatar mais as suas áreas nos anos seguintes à titulação, em comparação aos imóveis ainda não titulados.
De modo similar, Gerd Sparovek, da USP, e colaboradores mostraram que, enquanto as áreas não destinadas apresentavam uma cobertura florestal de 77% em 2018, as áreas tituladas como imóveis particulares sofreram um rápido processo de desmatamento, reduzindo a área florestal de 68% para 55%, entre 1999 e 2018. “Auditorias realizadas pelo Tribunal de Contas da União em 2020 sugerem que esse resultado é consequência das falhas na fiscalização do Incra”, aponta Rajão. Segundo ele, “pode-se inferir que a ênfase do atual governo na titulação de terras, sem os devidos controles ambientais, juntamente com a paralisação do processo de criação de unidades de conservação e demarcação de terras indígenas, têm agido como importantes vetores do desmatamento na Amazônia”.
Em outra Nota Técnica, pesquisadores da USP e da UFMG mostram que as áreas não destinadas e as áreas públicas destinadas (como Unidades de Conservação e Terras Indígenas) possuem taxas de desmatamento mais baixas, mantendo mais de 80% da cobertura vegetal. “Por outro lado, nos imóveis rurais autodeclarados (inscritos no CAR) e áreas privadas destinadas (beneficiadas pela regularização) observam-se taxas de desmatamento altas, chegando a perder até 3% da área de vegetação nativa em um ano. Além disso, essas áreas possuem menos de 60% de sua área como vegetação nativa, valor bem inferior à reserva legal, que deve ser de 80% nos imóveis rurais no bioma Amazônia.”
O estudo aponta que, entre os imóveis que são alvo da proposta de regularização fundiária apresentada pelo governo Bolsonaro, predomina entre os pequenos o padrão de nenhum déficit de área de Preservação Permanente e/ou Reserva Legal, o que ocorre em 63% dos 107.466 imóveis em glebas federais.
Já nos médios e grandes imóveis o padrão se inverte, e a existência de algum déficit, isso é, o não cumprimento do Código Florestal, passa a ser o padrão predominante, atingindo 74% dos imóveis, mostram os pesquisadores. “Esses resultados, juntamente com a análise da taxa de desmatamento, indicam que o processo de regularização fundiária não garante o cumprimento da legislação florestal, principalmente entre os médios e grandes proprietários.”
Brazil has legislations in place to punish law offenders, however, this requires that violators be identified and law enforcement guaranteed.
O Brasil tem leis para punir infratores, mas isso exige que eles sejam identificados e que a punição seja garantida.
FALACIOSO
O que o vídeo não explica é que, para fazer a identificação de quem desmata, não é necessário repassar terras públicas a ninguém. Nem mesmo nos casos em que é possível identificar o infrator remotamente isso vem ocorrendo. A operação Controle Remoto do Ibama, por exemplo, que utilizava dados do CAR para identificar infratores e enviar as multas por correspondência – economizando em 5 vezes os custos de fiscalização –, aparentemente foi interrompida no governo Bolsonaro, já que nenhum resultado foi divulgado pelo instituto.
We must bear in mind that indigenous lands, traditional communities, conservation areas and land reform settlements are legally protected under their own legislation.
Devemos lembrar que terras indígenas e de comunidades tradicionais, unidades de conservação e assentamentos de reforma agrária são protegidos por sua própria legislação.
VERDADE, MAS…
Essas áreas (exceto os assentamentos, que são áreas privadas e precisam seguir o Código Florestal) possuem legislação específica que define o que pode e o que não pode ser realizado nelas. No entanto, não basta ter leis se elas não são cumpridas pelo próprio governo. Em 2019, o desmatamento subiu 44% nas Unidades de Conservação e 91% nas Terras Indígenas em relação ao período anterior, segundo o Inpe. É um aumento relativo muito maior do que em toda a Amazônia (34%), o que demonstra o quanto essas áreas e suas populações tradicionais estão ameaçadas. De acordo com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), as invasões em Terras Indígenas aumentaram 135% no primeiro ano do governo Bolsonaro.
Além disso, a própria legislação não está livre de mudanças que impliquem em mais desmatamento. O governo encaminhou projeto de lei para regularizar o garimpo e outras atividades econômicas em terras indígenas, por exemplo.
Landholding regulations apply mainly to small farmers, for instance, families that have settled in their land for decades without proper documentation. (88% of areas subject to regularization belong to smallholder farmers)
A regularização fundiária se aplica principalmente a pequenos produtores, por exemplo, famílias que estão há décadas em suas terras sem documentação adequada (88% das áreas sujeitas a regularização pertencem a pequenos produtores)
IMPRECISO
Segundo levantamento de pesquisadores da UFMG e da USP com base em dados do Incra, 95% dos imóveis na fila para titulação são pequenas propriedades, têm até quadro módulos fiscais (que podem chegar a 400 hectares). A legislação atual já contempla e permite que seja feita a regularização fundiária expressa para esse público, bastando que o governo execute a regularização por meio do programa Terra Legal, de 2009.
No entanto, o governo Bolsonaro emitiu apenas seis títulos de terra em todo o ano de 2019, contra média anual de 3.190 no período 2009-2018.
O modelo de regularização fundiária proposto pelo governo por meio da Medida Provisória nº 910/2019 privilegia pessoas que ocupam áreas maiores, de até 15 módulos fiscais (que podem chegar a 1.500 hectares), dispensando de vistoria presencial os imóveis ocupados até 2014, com brecha para quem ocupou até 2018 (ano em que Bolsonaro foi eleito), e também é um prêmio a quem desmatou ilegalmente após 2011, limite da regra vigente.
A regularização fundiária é uma medida fundamental para promover o desenvolvimento sustentável na Amazônia e assim evitar o desmatamento. No entanto, a questão crucial é a forma de fazê-la. “Ao permitir a autodeclaração e isentar a assinatura dos confrontantes para imóveis de até 15 módulos fiscais, a MP 910/2019 poderá ampliar os conflitos no campo e favorecer a grilagem de terras”, apontaram os pesquisadores da USP e da UFMG.
Simplifying the landholding process through geotechnology and remote sensoring is a way to monitor and control the territory of a continental size country. (805 million georeferenced hectares / 94,7% of all national territory)
Simplificar o processo de posse da terra por meio de geotecnologia e sensoriamento remoto é uma maneira de monitorar e controlar um território de tamanho continental. (805 milhões de hectares georreferenciados – 94,7% de todo o território nacional)
FALSO
Simplificar a legislação fundiária não tem nenhuma relação com sensoriamento remoto e monitoramento do país. O monitoramento já é feito hoje, seja por órgãos do governo, como o Inpe, seja por iniciativas da sociedade civil, como o projeto MapBiomas, que já produziu mapas de toda a mudança de cobertura do solo no Brasil de 1985 até 2019.
*Atualizado às 8h de 18/10 para corrigir informação sobre autoria de estudo sobre titulação; o estudo é de Benedict Probst, Tiago Reis e colegas, e foi apresentado no STF por Raoni Rajão, da UFMG, que não é coautor.