Teologia Abya Yala: identidade, descendência e fronteira

Publicado originalmente em Coletivo Bereia por Yenny Delgado, Williams Flores, Claudio Ramirez. Para acessar, clique aqui.

A Teologia Abya Yala é uma teologia refletida desde nosso contexto histórico e cotidiano dos povos originários de Abya Yala. É uma teologia profética de uma reflexão séria e de diálogos honestos. A teologia Abya Yala pensa-se desde as subjetividades das mulheres e homens, cujas bocas já não pronunciam a língua de nossos ancestrais, onde seus corpos já não se movem ao ritmo das danças, onde sua oração a Deus já não se ergue desde as montanhas. Todavia, nossa memória ancestral segue guardando em sua profundidade a sabedoria e espiritualidade viva. 

Tem que ser esclarecido que tal teologia não está finalizada, senão que está em processo de reflexão e entendimento. Não propõe uma volta à vida ancestral, já que reconhecemos a experiência histórica colonial vivenciada, mas resgatamos e respeitamos a população que, no esforço do resistir, tem conseguido manter vivas, até agora, a cultura, o conhecimento e a prática espiritual ancestral.  A teologia Abya Yala resgata as práticas, reflexões e o agir de nossos ancestrais num continente que segue resistindo nos embates de um processo colonizador de cinco séculos.  Propomos analisar processos identitários descolonizadores, que seguem presentes na população originária e sua descendência, num continente pluricultural e pluriétnico.

Deste modo, a proposta de uma teologia Abya Yala e desde Abya Yala implica analisar três categorias interpretativas que estariam inter-relacionadas. A primeira categoria é a da identidade, ou seja,  se estudará o processo de identidade étnica e seu alcance teológico. A segunda linha de interpretação trata do estudo da descendência, através da história de invisibilização pela qual tem transitado os povos originários e que agora, os nascidos em Abya Yala, sem viver com os mesmos povos e nos mesmos territórios podem seguir honrando aos nossos ancestrais como sua descendência. Por último, a categoria de fronteiras, como os lugares de encontro, onde as resistências dos povos originários são latentes e que, tendo sido divididos por fronteiras, mantém vivos o sentido de unidade, o despertar de um olhar que passa muros e cidadanias. 

Ressurreição da Mãe Terra 

Entender Abya Yala como a terra de sangue vital implica em duas coisas: por um lado, que é uma terra cheia de povos que ainda mantém suas culturas, suas línguas, suas crenças, suas formas de entender o mundo e que, por outro lado, implica que esses povos em suas lutas para serem visibilizados, se convertem nas vozes que podem amamentar aos que têm nascido em Abya Yala, mas que têm esquecido à mãe. 

Evo Morales diria: “Antes da chegada de Cristóvão Colombo, nosso continente existia sem fronteiras”. Era um só: Abya Yala. “O sangue de nossos pais correu por mais de cinco séculos  nas terras de Abya Yala, reclama o retorno do equilíbrio”. A necessidade de um retorno a um equilíbrio não é outra coisa que a prática do “bem viver”: “Os aymaras queremos novamente voltar a ser, que significa voltar a ser qamiri, que é Viver Bem; os quechuas tem dito o mesmo: voltar a ser capac, pessoa que vive bem; os guaranís têm dito que querem voltar a ser yambae, que entranha viver bem e sem donos”.

As implicâncias teológicas desta concepção de Abya Yala, nos leva a refletir desde onde nos encontramos, desde nossa localização geográfica, desde o continente, no sentido de que se tem de pensar a comunidade desde a mãe, é dizer à Mãe Terra, uma mãe que sente, que se apaixona e que se conecta com seus filhos e filhas presentes que se encontram em uma etapa de maturidade que reclama a palavra e o espaço.

Deste modo se há de entender Abya Yala como a Mãe Terra, a Pachamama, que tem sido vítima de um processo histórico colonialista, hegemônico e patriarcal que violentou e dividiu a mãe nas colônias, vice-reinados e países. Por esta razão, a identidade visibilizada em Abya Yala implica levar a sério o processo libertador que sara, que cura toda ferida, que restaura e que, por sobre tudo, depois da crucificação, ressuscita. E aqui estamos, o povo originário e sua descendência, pedindo pela ressurreição da Mãe Terra mas que agora se liberta e ressuscita como nossa Abya Yala.

Neste sentido, Jon Sobrino, ao falar de Jesus, dá conta de que a ressurreição traz então esperança para os crucificados. É dizer para a população e à Mãe Terra que tem sido despojada e subjugada.  “Se se toma a sério o dito até agora, se deduz, não por uma leitura fundamentalista dos textos, senão por uma profunda honradez em direção a eles, que a ressurreição de Jesus é esperança em primeiro lugar para os crucificados. Deus ressuscitou a um crucificado, e desde então há esperança para os crucificados da história”. 

Desta maneira haverá que entender que Deus em Abya Yala é o que ressuscita a Mãe Terra, a crucificada, e que Deus é o que liberta, visibilizando a identidade e os rostos diversos. 

Descendência: uma possibilidade de libertação

É necessário enfatizar que a teologia Abya Yala busca honrar nossos ancestrais como descendência, reconhecendo seu legado e sua prática, proporcionando entendimento entre a cosmologia naturalista e uma espiritualidade que honra a Mãe Terra. Símbolos básicos nos povos com fé e com uma espiritualidade profunda. 

A colonização de Abya Yala gerou uma enorme energia por reunir, em uma intensa competência, a terra e tudo o que habitava nela.   Este processo de colonização afetou a vida da população e sua descendência; converteram a Mãe Terra em propriedade privada. Os cristãos recriaram uma nova narrativa apropriando-se da história da Bíblia e concebeu a Abya Yala como uma “nova terra prometida”; não apenas começaram a verem-se a si mesmos como o povo escolhido por Deus, mas também criaram uma pirâmide da humanidade colocando-se como superiores.

A invenção da “Raça Branca” foi desenvolvida e explorada pelos europeus para governar a outro ser humano que, em seu entender, não estava ainda completo. Esta ideologia encontrou a mensagem cristã de superioridade. A Igreja trabalhou para promover e fazer proselitismo da supremacia branca através da colonização, fazendas, missões, reduções ou reservas. 

O genocídio perpetrado contra a população originária foi sistemático, a classificação de quem era parte deste “novo mundo” estava à mercê dos que tomaram o poder. Para a descendência que ia nascendo nesta nova sociedade, esquecer suas práticas ancestrais, e logo assimilar práticas do cristianismo branco normativo era uma forma de sobrevivência. 

Embora as tentativas de esquecer as atrocidades cometidas em Abya Yala terem feito com que guardemos silêncio, não quer dizer que o espírito não nos tenha acompanhado todo este tempo. A descendência segue sendo uma possibilidade de libertação.  

Fronteiras e o despertar das “nossas”

As fronteiras territoriais das novas repúblicas são incompreensíveis para os povos originários, que têm recorrido a Abya Yala de norte a sul por milhões de anos. A Mãe Terra é uma, plena e integral.   Como podemos dividir a nossa mãe?  

As fronteiras não se reduzem simplesmente a dividir, estabelecem também hierarquias. Dentro dos territórios dos novos estados – nação se relegou aos povos originários as periferias. De tal forma que essas fronteiras construíram divisões internas muito dolorosas. 

As fronteiras separaram comunidades entre camponeses e moradores urbanos, entre indígenas e cristãos. Vimos uma descendência alheia à Mãe, desarticulada, cujas fronteiras externas e internas degradaram o princípio epistêmico do “nossas”. Uma descendência que compartilha o sangue vital, que vive e convive na terra madura e frutífera. Através da luta e visibilização dos povos originários, o sangue vital fará ressuscitar a Mãe. 

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Foto de capa: Carlos Ribera no Pexels

Yenny Delgado, Williams Flores, Claudio Ramirez

Yenny Delgado é psicóloga e teóloga. Doutoranda em Ciências Religiosas pela Universidade de Lausanne, escreve sobre as intersecções entre a memória ancestral, etnicidade, política e fé pública. Williams Flores é filósofo, historiador e teólogo, e escreve sobre os movimentos populares, pastorais sociais, a inclusão social e a educação popular. Claudio Ramírez  é teólogo com mestrado em Teologia Dogmática pela Universidade Católica de Córdoba. Membro fundador da comunidade no diálogo intercultural ÑA

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