Publicado originalmente em Observatório da Comunicação Pública – OBCOMP. Para acessar, clique aqui.
Discutindo a publicação de uma superposição de imagens pela Folha de São Paulo, em 19 de janeiro de 2023, a professora e pesquisadora Sandra Gonçalves questiona os limites da imagem no jornalismo.
Já desde Roland Barthes, linguista e amante da imagem fotográfica, reflete-se sobre os múltiplos e infinitos sentidos possíveis em uma imagem. No jornalismo, dependendo da linha editorial do jornal, inúmeros fatores de construção da notícia buscam escolher um sentido entre os muitos possíveis. Âncoras como a legenda e a chamada trabalham nessa construção. Além disso, espera-se, pelo menos no senso comum, que essas imagens sejam cópias fiéis do real, seu espelho (há muito sabe-se que não é bem assim).
Quando isso não acontece, surgem as indagações, como a provocada pela imagem em questão: o que pode e até onde deve ir uma imagem? Essa questão, antes restrita à cena acadêmica, ganha corpo e espaço de discussão na esfera pública com a publicação, no Jornal Folha de São Paulo de 19 de janeiro de 2023, de uma imagem que usa a técnica da superposição de imagens gerando, a partir daí, uma nova imagem, fictícia, sem uma relação espaço temporal que encontramos nas imagens originais que a geraram.
No jornalismo a publicação de tal imagem causa um desconforto extremo. Existe entre os jornais e seus leitores uma espécie de contrato que leva a uma crença pelos leitores de que tudo ali publicado é a verdade dos fatos. Pode-se constatar na história do jornalismo a fotografia corroborando essa crença. Imagem documento, objetiva, neutra e imparcial – imagem máquina. Ainda hoje, o senso comum crê que a imagem fotográfica seja a literalidade do mundo e não apenas uma janela para o mundo, uma imagem moldura, recorte de um todo maior.
A publicação dessa imagem quebra o pacto de confiança, o contrato entre leitor e jornal, além de trazer para os envolvidos em sua produção a questão do que pode e até onde pode ir uma imagem. E aqui, quando digo imagem, não digo fotografia. Porque a fotografia, como recorte, ponto de vista, escolhas técnicas, bagagem cultural e ideológica do fotógrafo faz do real uma construção, nem representação nem apresentação. Ela é, antes de tudo, imagem.
Imagem polifônica, a fotografia fala demais e no jornalismo, principalmente, deve-se afunilar seus múltiplos sentidos. A chamada, legenda, o lugar que ocupa na página são âncoras de construção de sentido e a imagem aí resta refém. Tem-se muito para pensar.
Sandra Gonçalves
Artista visual, professora e pesquisadora na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), na área da Fotografia.