Salles repete mistificação sobre clima em artigo

Publicado originalmente em Fakebook.eco. Para acessar, clique aqui.

Ministro comete distorções em série sobre mercado de carbono, emissões históricas e causas do desmatamento em texto para o Estadão

O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles (sem partido), publicou neste fim-de-semana um artigo no site do jornal O Estado de S.Paulo contendo distorções em série sobre mudança do clima e o papel do Brasil nas negociações internacionais do assunto.

No texto, cujo objetivo declarado é louvar o “pragmatismo” do enviado americano John Kerry e tentar passar a régua na postura negacionista do governo brasileiro – e do próprio Salles – nos últimos dois anos, o ministro repete informações enganosas ou patentemente falsas em relação às causas do desmatamento na Amazônia (que, segundo ele, seria impulsionado pela pobreza, o que não é verdade), ao volume de emissões dos países ricos e aos compromissos brasileiros. Salles afirma, por exemplo, que o Brasil “segue lutando” para que os mecanismos de mercado do Acordo de Paris sejam implementados, quando na verdade o Brasil bloqueia as negociações sobre esse tema há três anos.

Verificamos abaixo os principais pontos do artigo. Procurado, o Ministério do Meio Ambiente não havia se manifestado até o fechamento deste post.


“Ora, ao contrário do que especulavam que iria ocorrer, o Brasil permaneceu no Acordo de Paris e, desde então, segue lutando para que seus mecanismos de mercado sejam implementados.”

FALSO –

O Brasil vem bloqueando desde 2018 as negociações da regulamentação do Artigo 6, o artigo do Acordo de Paris que cria mecanismos de mercado para o comércio de emissões. O Brasil não aceita que os créditos de carbono vendidos no chamado MDS (Mecanismo de Desenvolvimento Sustentável), previsto no parágrafo 4º do artigo 6, sejam abatidos da meta nacional, o que para muitos países levaria a uma “dupla contagem” do carbono negociado nessa modalidade. O Brasil também está em posição minoritária ao defender que os créditos de carbono não vendidos no Protocolo de Kyoto, o acordo que antecedeu Paris, sejam transferidos na íntegra para o novo regime. Na COP24, em Katowice, Polônia, a posição brasileira causou um atraso de um dia na negociação, levou a um impasse e fez com que o artigo 6 fosse o único pedaço faltante do “manual de regras” do acordo do clima.

Em 2019, na COP25, já sob o governo Bolsonaro, o Brasil, juntamente com Austrália e Arábia Saudita, atravancou o progresso mais uma vez – e mais uma vez por conta de questões relacionadas ao artigo 6. O ministro Ricardo Salles foi “comemorar” o fim da conferência numa churrascaria em Madri, ironizando o objetivo de “neutralizar emissões”.

Ao contrário do que alega o ministro, não foi “especulação” a ameaça de deixar o Acordo de Paris, mas uma afirmação do presidente eleito, em dezembro de 2018: “Nós vamos sugerir mudanças no Acordo de Paris. Se não mudar, saímos fora”. Houve pressão dos ruralistas, e o Brasil ficou.

“posto tratar-se de uma das condições essenciais para que os compromissos assumidos pelo Brasil e pelo mundo possam ser plenamente cumpridos”

FALACIOSO –

O Brasil jamais vinculou suas metas no Acordo de Paris ao mercado de carbono. A primeira NDC do Brasil, apresentada em 2015, dizia que o país se reservava o direito de usar mecanismos de mercado que viessem a ser estabelecidos sob o Acordo de Paris, mas não dizia em nenhum momento que sem eles não haveria implementação. Ao contrário, o documento afirmava que “a implementação da iNDC do Brasil não é condicionada a apoio internacional”. Apenas em dezembro de 2020, quando reescreveu sua NDC, sob influência de Salles, foi que o Brasil vinculou suas metas “indicativas” de longo prazo, para 2060, à aprovação dos mecanismos de mercado.

Apesar de sua parcela de menos de 3% das emissões globais, o Brasil vem sendo injustamente citado por alguns como se fosse um dos grandes vilões das mudanças climáticas.” 

FALACIOSO –

O Brasil é o quinto maior emissor de gases de efeito estufa do mundo, e retrocedeu sua atuação sob Bolsonaro, com aumento do desmatamento e mudança de metas. Segundo o SEEG, o Sistema de Estimativas de Emissões do Observatório do Clima, o Brasil lançou na atmosfera 2,17 bilhões de toneladas de dióxido de carbono equivalente (tCO2 e) em 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro, um aumento de 9,6% em relação a 2018. É menos de 4% das emissões globais, mas isso torna o país o quinto maior emissor do planeta, atrás apenas da China (11,5 bilhões de toneladas), dos EUA (5,8 bilhões), da Índia (3,2 bilhões) e da Rússia (2,4 bilhões). O dado mostra que a tendência de redução das emissões no Brasil, verificada entre 2004 e 2010, está se revertendo – em 2020, o país não cumpriu a meta da Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC). As emissões per capita do Brasil também são maiores que a média mundial. Em 2019, cada cidadão brasileiro emitiu 10,4 toneladas brutas de CO2e, contra 7,1 da média mundial.

“O volume de gases de efeito estufa hoje acumulado na atmosfera se deve à somatória histórica das emissões dos países ricos, que por mais de 200 anos, desde o início da revolução industrial, seguem queimando combustíveis fósseis.”

FALSO –

Embora grande parte da elevação de temperatura observada hoje se deva às emissões históricas dos países industrializados, mais da metade (831 bilhões de toneladas) do CO2 acumulado hoje na atmosfera foi emitida após 1990, sobretudo por conta das altíssimas taxas de crescimento e uso de energia da China e de outros países emergentes. De 1750 até 1990 o acumulado era de 784 bilhões de toneladas, segundo dados do Global Carbon Project.

“Contribui para a nossa parcela de 3% das emissões a vergonhosa situação da nossa falta de saneamento, bem como o caos do lixo em todo o país, contaminando o solo, as pessoas, a atmosfera e os oceanos.”

EXAGERADO –

O Brasil emite 2,17 bilhões de toneladas brutas de CO2 equivalente por ano, segundo dados do SEEG (Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa do Observatório do Clima). 44% das emissões brasileiras em 2020 decorreram apenas de desmatamento, sobretudo na Amazônia e no cerrado. O setor de resíduos, que inclui tratamento de esgoto e destinação de lixo, problemas citados por Salles, contribui com apenas 4% das emissões do país. Tudo o que o país emitiu no setor de resíduos em todo o ano de 2019 é emitido por desmatamento em 37 dias.

“Diversas outras mazelas nos levam também a confrontar o histórico abandono e descaso em relação aos mais de 23 milhões de brasileiros da Amazônia, que experimentam, desde 2012, progressivo aumento dos índices de desmatamento ilegal, fruto, dentre outras causas, do envolvimento em atividades ilegais por muitos dos que não têm oportunidades, nem alternativa de emprego e renda, e que seguem sendo solenemente ignorados, no Brasil e no mundo.”

FALACIOSO –

Embora evidentemente a pobreza leve pessoas a destruir florestas e evidentemente o baixo IDH da Amazônia tenha uma correlação (que não é necessariamente causal) com a devastação, o desmatamento na Amazônia não é provocado majoritariamente por pobres sem alternativa. Os grandes desmatadores são  fazendeiros, mineradores e grileiros de terras. Desmatar é uma atividade cara – cerca de R$ 2.000 por hectare derrubado – e é feita por gente capitalizada. Hoje em dia, o desmatamento é feito sobretudo por quadrilhas de invasores de terras, em operações muito bem financiadas, com alta tecnologia e por vezes comandadas desde o Sudeste. Segundo o Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia), 29% do desmatamento em 2019 aconteceu em áreas não-designadas – ou seja, terras públicas invadidas -, 23% em fazendas cadastradas no CAR e 9% em áreas sem informação (possivelmente também griladas). Somando-se aos desmatamentos em terras indígenas e unidades de conservação, metade da devastação é especulativa ou criminosa. Além disso, a maior parte da população da Amazônia (mais de 68%) vive nas cidades e não na zona rural.

O “descaso” mencionado pelo ministro é resultado de política da ditadura militar que estimulou a ocupação da Amazônia no século passado, sob o lema “integrar para não entregar”. A continuidade desse projeto militar tem o apoio do governo Bolsonaro em medidas como a regularização de invasores de terras e a mineração e agricultura em terras indígenas, apresentadas como prioritárias para aprovação no Congresso em 2021.

“Nas próprias palavras de Kerry, ‘o desafio está em trazer, de verdade, um volume sem precedentes de recursos financeiros sobre a mesa’ e com isso reverter o que ele mesmo constata: ‘historicamente e infelizmente, tem havido muitas palavras, mas sem a verdadeira implementação.’”

FALACIOSO –

O Brasil já tem R$ 3,4 bilhões doados por outros países para projetos na Amazônia, que estão parados desde o início do governo Bolsonaro. O Fundo Amazônia contabiliza R$ 2,9 bilhões, e o Floresta+, R$ 500 milhões. No caso do primeiro, o governo trava há dois a aplicação dos recursos doados por Noruega e Alemanha, e responde a um processo no STF por isso. O Floresta+, criado no governo Temer, foi aprovado pelo Fundo Verde do Clima para beneficiar povos indígenas, comunidades tradicionais e agricultores familiares, mas não sai do papel desde o início de 2019.

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