Responsabilização das plataformas no centro do debate: o Marco Civil deve ser revisto?

Publicado originalmente em *Desinformante por Rodolfo Viana. Para acessar, clique aqui.

Principal lei sobre atividade digital no país, o Marco Civil da Internet é apontado como insuficiente no combate à desinformação e ao discurso de ódio na atual conjuntura. O debate recai sobre o artigo 19 e o nível de responsabilização das plataformas em relação aos discursos promovidos de terceiros. 

Tido como referência internacional na legislação do ambiente na internet, o Marco Civil foi promulgado em 2014 e, segundo especialistas ouvidos pelo *desinformante, não deve ser tratado como peça de museu mas sim ser aprimorado para o atual contexto.  

A insuficiência da lei foi mencionada no seminário Liberdade de Expressão, Redes Sociais e Democracia, realizado no último 13 de março pelo Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da FGV Conhecimento, em parceria com a Rede Globo e com apoio do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

Na ocasião, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, lembrou que o artigo 19 do Marco Civil da Internet, que trata da liberdade de expressão, será tema de uma audiência pública no tribunal em breve, além de ser apreciado em plenário. 

Na redação atual deste artigo, as plataformas só podem ser responsabilizadas civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se após ordem judicial específica não tomarem providências para tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente. Há casos, entretanto, que uma notificação extrajudicial às plataformas apontando violação dos termos de uso é suficiente para que a empresa promova a remoção de conteúdo, significando que, para Gilmar Mendes, “o artigo 19 do Marco Civil da Internet não prevê que a única hipótese de remoção de conteúdo consiste na existência de ordem judicial”.

O ministro do STF ressaltou que, atualmente, há a centralidade na autorregulação das plataformas, ainda que pouco transparente, e que o artigo 19 do Marco Civil, embora tenha sido de “inegável importância para a construção de uma internet plural e aberta no país”, se encontra atualmente “ultrapassado” na visão do ministro.

Flávio Dino, ministro da Justiça e Segurança Pública, também participou do evento e em sua fala afirmou que não pode haver uma sacralização do Marco Civil da Internet, que se transformaria em uma espécie de “dogma imutável”. O ministro aponta que o mesmo Marco Civil, em seu artigo 21, já excepciona o artigo 19 ao introduzir o conceito de “dever de cuidado”, ainda que não literalmente, ao referir-se a situações violadoras do direito à intimidade no que se refere a práticas sexuais. “Essa gradação valorativa já consta do ordenamento jurídico brasileiro, que excepciona no [art.] 21 o [art.]19 do Marco Civil da Internet. Por isso mesmo nós estamos propondo que esse “dever de cuidado” seja mais qualificado quando se tratar de temas como crianças e adolescentes, direitos humanos, crimes contra o Estado Democrático de Direito e terrorismo”.

O tema em alta levou até Tarso Genro e Pedro Abramovay, ex-ministro e ex-secretário do Ministério da Justiça no segundo governo Lula, a opinarem sobre a necessidade de rever o Marco Civil da Internet, gestado também com a contribuição deles e de diversos atores da sociedade civil. Para eles, a lei que foi sancionada em 2014 entrou em vigor antes de a internet mostrar a “sua face mais perversa”. 

“Nesse contexto, é impossível não se pensar em uma revisão da regulação prevista no regramento. Em primeiro lugar porque o marco civil é produto de um processo democrático de debate público. Não há dúvidas de que o consenso alcançado para a sua aprovação seria outro neste momento. Além disso, essa lei não foi pensada para ser um escudo de proteção para atividades golpistas, e sua nova regulação democrática deve estar à altura de seu momento histórico”, escreveram Genro e Abramovay na coluna da Folha de S.Paulo.

Em suas redes sociais, Bruna Santos, pesquisadora no Centro de Ciências Sociais de Berlim (WZB) e membro da Coalizão Direitos na Rede, destacou que o Marco Civil não pode ser resumido ao modelo de responsabilidade do artigo 19. “Ele é uma carta de direitos para a internet brasileira – que foi importantíssima para a consolidação do acesso à internet e direitos humanos na era digital”, colocou.

A pesquisadora também elenca que uma revisão dessa legislação precisa “honrar o seu histórico de participação multissetorial e não se dedicar a oferecer uma bala de prata a desafios que ainda desconhecemos”. 

“Sim, o combate a desinformação é urgente, e alguma parcela dos ataques à democracia brasileira foi facilitada pela ausência de mecanismos eficazes de moderação de conteúdo em plataformas digitais. Por isso precisamos discutir soluções que resistam o teste do tempo com calma”, completa ela em resposta ao artigo de opinião.

Garantias devem ser preservadas

Veridiana Alimonti, diretora associada para a América Latina da Eletronic Frontier Foundation (EFF), pondera que o Marco Civil trouxe uma linha base fundamental que não deve ser descartada ou “tratada como peça de museu”. Há inclusive garantias importantes que ainda não estão efetivadas, como a neutralidade da rede, diariamente confrontada por práticas de zero rating, comuns em planos móveis pré-pagos. “A superação de práticas de zero rating por meio da efetivação da neutralidade da rede é, por exemplo, uma medida que contribuiria ao combate à desinformação (por retirar incentivos de não acessar o conteúdo integral de uma notícia compartilhada ou por facilitar a busca de fontes alternativas de informação)”, acredita a pesquisadora.

“É relevante discutir como avançar a partir da base que já temos e preservando suas garantias. Essa discussão envolve, entre outros, estabelecer medidas de transparência e devido processo nas decisões de moderação de conteúdo, transparência algorítmica, avaliações de impacto a direitos, questões concorrenciais que incentivem uma pluralidade maior de atores, como a interoperabilidade das grandes plataformas com plataformas menores e novos entrantes”, defende Alimonti, acrescentado que a responsabilidade especial de agentes públicos em relação ao que difundem também deve ser discutida, sendo preocupante a extensão da imunidade parlamentar ao que dizem nas redes sociais.

Quando perguntada quais seriam os pontos positivos e os pontos negativos do Marco Civil da Internet,  Camila Tsuzuki, coordenadora de operações do Instituto Vero, respondeu que não seria uma questão de pontos positivos ou negativos, “mas sobre como podemos complementá-lo para garantir que ele possa endereçar os desafios que enfrentamos hoje na internet. Por exemplo, exigir requisitos de transparência das plataformas, incluindo dados sobre moderação de conteúdo, anúncios e publicidade”.

Tanto Camila Tsuzuki quanto Veridiana Alimonti ressaltam que o Marco Civil é uma referência em termos de processo normativo, que foi realizado de forma aberta, pública e com ampla participação da sociedade.


PSOL e Rede propõem modificações no Marco Civil da Internet

Parlamentares da federação formada pelos partidos PSOL e Rede apresentaram um Projeto de Lei nesta segunda-feira, 13 de março, para incluir no Marco Civil da Internet um dispositivo que determine que as plataformas digitais implementem sistemas internos de monitoramento sobre disseminação de discursos de ódio direcionados a mulheres, pessoas negras e pessoas LGBTQIA+.

O PL 1087/2023 propõe que seja responsabilidade das plataformas a implementação de mecanismos de prevenção e denúncia, além de monitoramento interno, “vedada a censura prévia de conteúdos”.

O projeto de lei orienta-se para a ampliação da conceito de “dever de cuidado”, em consonância com o apontado pelo ministro Flávio Dino na sua fala reportada acima, como também prevê a obrigatoriedade de relatórios públicos com informações detalhadas e precisas sobre “algoritmos de recomendação, bem como sobre suas as práticas de monitoramento, moderação e distribuição de conteúdos”.

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