Quem investiga as mortes praticadas por policiais nas periferias?

Publicado originalmente em Nós, Mulheres da Periferia por Bianca Pedrina. Para acessar, clique aqui.

Fevereiro de 2015. Três policiais fazem patrulha em Honório Gurgel, comunidade da região norte da cidade do Rio de Janeiro. O circuito interno de filmagem da viatura registra a atuação.  O policial, que está no banco do passageiro, saca seu armamento e atira em direção a um grupo reunido. Essas pessoas são meninos que estavam sem luz em casa e brincavam com o celular em frente ao local onde moraram.

A imagem da viatura registra o momento em que os policiais socorrem dois jovens negros, um já desfalecido e outro com um tiro no peito. Chauan Jambre Cezario, de 19 anos, é a vítima baleada no peito, Alan de Sousa Lima, de 15 anos, não sobreviveu.

No registro de ocorrência, a alegação do sargento Ricardo Vagner Gomes foi de que reagiu a dois homens armados que haviam atirado na viatura. A versão não foi adiante, porque os jovens que foram baleados estavam com um celular e gravavam brincadeiras entre os dois, que correram quando ouviram os tiros disparados a esmo.

Chauan foi preso na época por porte de arma e resistência, mas liberado após depoimento e o registro de gravação do celular que comprovou sua inocência. A Polícia Militar exonerou o então comandante do 9º BPM, Luiz Garcia Baptista, além disso, afastou nove policiais envolvidos na operação, que responderam ao inquérito.

O sargento Gomes, responsável por atirar nos dois jovens, foi denunciado por por homicídio doloso, tentativa de homicídio e fraude no processo. O policial que dirigia o carro, Alan Monteiro, também foi denunciado por fraude, e o cabo Carlos Eduardo Alves, que estava no banco de trás do carro, foi ouvido como testemunha.

Esse é um dos casos retratados no documentário Auto de Resistência, lançado em 2018, com roteiro e argumento de Natasha Neri e Juliana Farias, disponível para assinantes da Prime Vídeo, que mostra a realidade de  julgamentos e o cotidianos de mães para a  investigação e justiça para a morte de seus filhos, em decorrência de ações policiais configuradas como “autos de resistência”.

O termo “auto de resistência” é uma prática que está prevista no artigo 292 do Código do Processo Penal. Prevê que se houver resistência à prisão por parte do civil o policial pode usar de “meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência”.

Esse mecanismo deve ser usado em casos extremos, tendo em vista que também no Código de Processo Penal, no artigo 284, não é permitido que o policial use da força em abordagens policiais.

No entanto, a Polícia Militar, em muitas abordagens em que não se configura resistência, usou do artifício para justificar violências e até mesmo a morte de pessoas que deveriam, pela Lei, ter o direito de defesa.

Mortes praticadas por policiais

Em 2020, 78% das pessoas mortas pela polícia eram negras.

Crédito: Felipe Iruatã _ Mídia NINJA

De acordo com o estudo “Os autos de resistência no Rio de Janeiro”, feito  no período de 2001 a 2011, mais de 10 mil pessoas foram mortas em confronto com a polícia com a alegação de “autos de resistência”. O mesmo estudo compara ainda a morte de policiais em serviço e civis. “Na cidade do Rio de Janeiro, apenas no ano de 2008, foram 17 policiais mortos para 688 vítimas de “autos de resistência”, com o arquivamento de pelo menos 99,2% desses casos.

No Brasil, em 2020, 78% das pessoas mortas pela polícia eram negras, segundo dados do Monitor da Violência. O levantamento foi feito pelo G1, em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Núcleo de Estudos da Violência da USP (Universidade de São Paulo).

O aumento de mortes de pessoas negras durante a pandemia, em que teoricamente estavam suspensas as intervenções policiais em favelas e comunidades, sobretudo do Rio de Janeiro, chamou a atenção da ONU (Organização das Nações Unidas). Em carta datada de 13 de dezembro de 2021, a organização criticou o governo de Jair Bolsonaro por “fracassar” diante da violência policial.

No documento é denunciado o “aumento exponencial” de operações durante a pandemia. A organização alertou ainda que o Brasil está violando tratados internacionais e mesmo a Declaração Universal de Direitos Humanos, que tem resultado em “diversas mortes, incluindo o assassinato desproporcional de afro-brasileiros”, aponta o documento.

Indo na contramão do alerta, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) prepara um decreto pela “defesa dos direitos humanos” dos policiais.

Justiça cega 

Mães que perderam seus filhos e que se organizaram em movimentos para investigação desses casos e punição de policiais envolvidos, questionam as ações da polícia usando a prerrogativa do auto de resistência.

“Em geral, os autos de resistência são utilizados pela polícia para encobrir as mortes, principalmente nas periferias e de pessoas negras em diferentes regiões do país”, aponta a advogada e mestra em direito e desenvolvimento pela Escola de Direito da FGVSP (Fundação Getúlio Vargas) Viviane Balbuglio,  que tem experiência de atuação profissional e pesquisa com temas relacionados à justiça criminal. 

“Esse artigo do Processo Penal também não dispõe de regras de investigação em casos de excessos e isso é uma questão que vai afetar principalmente as regiões que têm menos políticas públicas”, completa se referindo às periferias brasileiras, onde a população é majoritariamente negra.

Após registros decorrentes de abusos da polícia, usando como justificativa o auto de resistência, uma resolução conjunta do Conselho Superior de Polícia, órgão da Polícia Federal, e do Conselho Nacional dos Chefes da Polícia Civil de janeiro de 2010 aboliu o uso dos termos “auto de resistência” e “resistência seguida de morte” nos boletins de ocorrência e inquéritos policiais em todo o território nacional.

De acordo com a norma, um inquérito policial deverá ser aberto sempre que o uso da força por um agente de Estado resultar em lesão corporal ou morte. O processo deve ser enviado ao Ministério Público independentemente de outros procedimentos correcionais internos das polícias.

O texto determina que, a partir de agora, todas as ocorrências do tipo sejam registradas como “lesão corporal decorrente de oposição à intervenção policial” ou “homicídio decorrente de oposição à ação policial”.

Mesmo com a mudança na terminologia, abordagens violentas  seguem como práticas nas periferias. É o que defende a integrante do Movimento Mães de Maio, Débora Maria da Silva, que fundou o coletivo junto a outras mães, após os crimes de maio de 2006, conhecido como o mês mais sangrento da cidade de São Paulo. Foram mortos 59 policiais pelo crime organizado e, como retaliação, homens encapuzados, incluindo policiais, assassinaram 505  pessoas.

Crimes, que de acordo com o Tribunal de Justiça de São Paulo, em primeira e segunda instância são considerados prescritos. Ainda assim, tramitam recursos dessa ação no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no Supremo Tribunal Federal (STF), ainda sem conclusão.

“O fim do termo auto de resistência foi fruto de campanha e pressão da sociedade civil, mas ainda prevalece a maquiagem do Estado, que colocou no lugar ‘morte por intervenção policial’. Isso não muda o fato sobre o modo de operar da polícia, para poder legitimar seus crimes. Mesmo termo sendo substituído, a versão que sempre é aceita é do policial, que é testemunha dele próprio”, avaliou. 

Além disso, o artifício do uso de câmeras na farda ou em viaturas policiais, realidade que ainda existe em poucos estados, como o de São Paulo, não garante que mesmo assim, policiais não forjem esse mecanismo de monitoramento de conduta. 

Em entrevista ao Nós, a pesquisadora da Iniciativa Negra – Rede de Observatórios da Segurança, Luciene Santana, salientou que a utilização de câmeras nas viaturas e nos fardamentos pode ser considerado um passo importante no monitoramento de policiais. No entanto, muitas vezes, os próprios agentes públicos fraudam esses equipamentos e não gravam as ações que são importantes. Além disso, não necessariamente a gravação dessas imagens fará com que essas pessoas sejam punidas.

“Temos vários casos de violência policial e de racismo que foram monitoradas e gravadas e essa filmagem não garantiu que ações como essas não acontecessem mais, tampouco houvesse punição dos policiais envolvidos”, reflete.

Débora cita como exemplo a súmula (interpretação adotada por um Tribunal a respeito de um tema específico) 70, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que prevê “o fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação”, ou seja, vale a versão policial. 

“Essa prerrogativa vale-se de que o policial tem fé pública, quando o que vemos em muitos casos é cenas de crimes forjadas a justificativa de trocas de tiros, quando não há, tudo isso para legitimar ações abusivas. Não importa o termo usado, se auto de resistência ou morte por intervenção policial, a gente não pode aceitar o policial ser testemunha dele próprio”, concluiu.

Viviane também corrobora da mesma opinião e aponta a necessidade de meios de investigação independentes. “Por esse motivo é importante quando pensamos nessa prática, não podemos tratar apenas da polícia em si, mas também no Ministério Público, principalmente, porque é a instituição que por lei tem a obrigação de fiscalizar a atividade policial, mas também o judiciário ou seja todo o sistema de segurança pública”, informa. 

Não importa o termo usado, se auto de resistência ou morte por intervenção policial, a gente não pode aceitar o policial ser testemunha dele próprio

A criminalista que também compõe a Frente Estadual Pelo Desencarceramento de São Paulo e a Amparar (Associação de amigos e familiares de presos/as), afirma que, quando não há filmagens da cena do crime sem os casos acabam “nenhum tipo de investigação, e muitas famílias ficam sem respostas sobre as mortes de seus entes queridos. Isso significa que a justiça assim como sistema criminal quase sempre acredita na versão da polícia”, argumenta. 

Além disso, Viviane aponta que mesmo o termo sendo substituído, essa normativa da polícia, por exemplo, é uma regra abaixo do Código de Processo Penal. “Então não tem a obrigatoriedade de todos seguirem e sempre tem as exceções”, pondera. 

Existem alguns projetos de Lei que versam sobre o fim do auto de resistência, um desses projetos é o 239 de 2016, do Senado que se propõe a alterar o Código de Processo Penal em alguns pontos. 

Esse projeto, por exemplo, ainda está em tramitação no Senado, depois disso, passará pela Câmara dos Deputados e ao final irá para sanção presidencial. “Avalio que não é uma pauta que tem tanto apelo para ir a votação pensando na configuração dos políticos que ali estão. Pensamos o quanto bancada da bala [políticos ligados à indústria das armas, ex-policiais e militares] é forte no Legislativo, em que a própria polícia entende que esse tipo de proposição é contra o trabalho dos policiais”, aponta. 

Rever a política de segurança pública

policiais nas periferias

“Temos que pensar o que faz uma pessoa ser presa do Brasil e não o que faz um policial matar civis”.

Crédito: Tânia Rego / Agência Brasil

Para a advogada, outras questões precisam ser revistas, no sentido do que faz uma pessoa ser presa no Brasil e um policial matar civis. “Isso está conectado com essa discussão de segurança pública, que ainda é vista pelo viés da polícia, e deixa de ser olhada a partir de uma perspectiva de saúde, educação e de políticas públicas de prevenção”, salienta. 

Viviane reforça que muitas vezes as pessoas que são mortas pela polícia podem ter antecedentes criminais, com o discurso social de que foi uma ação justificada. “Eu considero este argumento uma discriminação. Temos que pensar o que faz uma pessoa ser presa do Brasil e não o que faz um policial matar civis”, reforça. 

“Isso está conectado com essa discussão de segurança pública, que ainda é vista pelo viés da polícia, e deixa de ser olhada a partir de uma perspectiva de saúde, educação e de políticas públicas de prevenção”

“Essa ideia de que segurança pública está vinculada a ações violentas  também faz com que o discurso seja o do noticiário da tarde, na linha do ‘bandido bom é bandido morto’, que os direitos humanos estão a favor dos bandidos, enfim, que vem atrelada a  construção de um discurso da bancada da bala, desses noticiários que repercutem ações policiais, uma espetacularização da vida das pessoas e que vai gerando cada vez mais uma discriminação e preconceito”, argumenta. 

Viviane destaca a importância do papel dos movimentos sociais, principalmente dos movimentos como Mães de MaioMães da Leste, que vem fazendo um trabalho de protagonismo em busca de justiça e apuração da morte de seus filhos, que foram mortos pela polícia. “Esses movimentos apontam como possíveis saídas perícias autônomas para investigar a morte de seus filhos, companheiros e familiares, pensar a necessidade de órgãos independentes, que tenham a competência de investigar as instituições policiais, como ouvidorias, além da desmilitarização da polícia, que não é dizer o fim da polícia militar apenas, mas esse modo de agir, pensar na autonomização das perícias técnicas científicas, em relação às instituições policiais”, avalia. 

A advogada pontua que se essas instituições estão atreladas aos policiais, fazem com que  essas investigações “não sigam padrões que deveriam ser seguidos, como por  exemplo, verificar marcar de tortura, a distância dos tiros que levou a morte da vítima, que são importantes para o contexto e o que significa justificar a legitima defesa do policial. Uma palavra de um policial frente a juízes é mais válida do que da vítima ou seus familiares”, pontua.

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