Publicado originalmente em Agência Lupa por Carol Macário. Para acessar, clique aqui.
A atual e a ex-primeira-dama do Brasil foram os principais alvos de conteúdos misóginos entre os posts publicados de janeiro e fevereiro deste ano sobre lideranças femininas na política. Com uma diferença: Michelle Bolsonaro, mulher do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), foi enquadrada como modelo de “feminilidade ideal”e, portanto, “apta” como sujeito político. Já a socióloga Rosângela Silva, a Janja, esposa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), ocupou o debate a partir de uma demarcação negativa sobre as suas roupas, desinformação sobre uso de drogas e associações negativas sobre sua participação em atividades de lazer, como carnaval e jogo de futebol.
Os dados são de um levantamento feito pela Escola de Comunicação, Mídia e Informação da Fundação Getúlio Vargas (ECMI-FGV) em parceria com FGV Direito Rio, Democracy Reporting International (DRI) e Lupa. Entre 13 de janeiro e 13 de fevereiro de 2023, pesquisadores analisaram as postagens nas redes Twitter, Facebook e Telegram com menções às mulheres políticas com atuação no cenário nacional.
O resultado da pesquisa ratifica um dado perverso que já havia sido alertado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2021: em todo o mundo, é crescente o número de campanhas sexistas de desinformação contra mulheres com atuação na política.
No caso brasileiro, quando se coloca uma lupa nas diferenças de ataques direcionados à atual e à ex-primeira-dama — uma vez que ambas dominaram as narrativas sobre mulheres na política no último mês —, especialistas concordam que o discurso identificado contra ambas é misógino de uma forma ampla. “A forma como Michelle Bolsonaro é exaltada não se dá pelos méritos de atuação dela na área política, mas relacionada à figura de alguém que tem uma postura de feminilidade específica, religiosa, ‘digna’ de respeito. A construção de relevância se dá pelo discurso que evoca uma feminilidade específica e crítica a outra”, analisa a professora da ECMI da FGV, Sabrina Almeida, uma das pesquisadoras responsáveis pelo estudo.
Uma reportagem publicada pela Lupa em 9 de fevereiro já havia identificado uma campanha de ódio e desinformação contra Janja, especialmente depois dos atos golpistas do dia 8 de janeiro em Brasília. Os conteúdos acusavam a primeira-dama de envolvimento com o tráfico de drogas e até prostituição — o que não é verdade.
Para a jornalista e doutoranda em políticas públicas Manuela D’Ávila, ex-deputada federal, a diferença de tratamento direcionado a Janja e a Michelle tem fundamento no machismo que estrutura as relações no Brasil. “É o ódio dirigido às mulheres que não se conformam com o papel e com o espaço desenhado para elas na sociedade. Uma mulher que não é insubordinada às regras e às regras gerais de funcionamento das instituições das sociedades machistas é uma mulher num certo sentido blindada [como Michelle Bolsonaro, por exemplo]. Isso porque ela ocupa o papel que o machismo idealiza para ela”, afirma D’Ávila.
Para a ex-parlamentar, que em 2018 disputou a vice-presidência da República na chapa de Fernando Haddad (PT) e foi alvo de ataques e campanhas de desinformação, essa é a razão pela qual as questões relacionadas ao corpo, à postura, à voz e à vida afetiva estruturam os conteúdos de ódio e de desinformação sobre as mulheres. “Porque essas são as questões que deixam nítido que essas mulheres levantam a cabeça aos machismos e, portanto, passam a ser alvos preferenciais da misoginia”, diz a jornalista.
Aparência como qualificação e desqualificação para política
O levantamento feito pela FGV identificou que os conteúdos sobre Michelle Bolsonaro durante o período analisado tendem a retratá-la como “uma mulher ‘ideal’, uma possível esperança para as eleições presidenciais de 2026 e um exemplo de luta” (página 6). Janja, por outro lado, é enquadrada como uma pessoa com pouca influência política. Essa tendência foi identificada tanto no Telegram quanto no Facebook — nessa última rede, o levantamento destaca o compartilhamento de conteúdos publicados por veículos como Pleno News e Jovem Pan, entre outros portais alinhados ao bolsonarismo.
No caso de Michelle Bolsonaro, embora as publicações positivas a enquadrem como sujeito político, ou seja, uma pessoa passível de ocupar um cargo público, não há menções às capacidades políticas dela para justificar, por exemplo, uma possível candidatura à Presidência da República em 2026. Normalmente, são levadas em consideração apenas a sua aparência e “comportamento ideal”.
“São várias camadas de violência”, opina a professora e pesquisadora Sabrina Almeida. “Janja é muitas vezes citada como alguém que não sabe se comportar nem se vestir, que não tem apelo estético. Mesmo que se esteja discutindo a suposta atuação dela e de Michelle na política, utiliza-se os atributos de aparência para qualificar ou desqualificar a mulher”.
Ainda de acordo com a pesquisadora, a aparência não é algo que deveria ter espaço no debate público. “É curioso notar que raramente se observa a agenda de Michelle Bolsonaro, que no período em que foi primeira-dama era muito colada às políticas e pautas dos surdos, por exemplo. Isso poderia ter sido valorado, mas não é colocado. Os conteúdos a simplificam ao dar a entender que Michelle supostamente tem ‘mais valor’ porque é compatível com determinadas concepções conservadoras de mulher de valor”, assinala Almeida.
O levantamento ainda chama atenção para um outro aspecto que diferencia as publicações nas redes alinhadas ao bolsonarismo e as que estão alinhadas à esquerda e ao governo do PT. “Há uma defesa de Michelle de parte dos apoiadores de Bolsonaro. Nas redes dos aliados do governo, no entanto, o levantamento mostrou que a defesa de Janja por parte dos apoiadores de Lula não é tão evidente. Não há um esforço para defendê-la, nem ela nem as demais ministras do governo atual. A estratégia está mais pautada no ataque, ou seja, na propaganda negativa em relação ao opositor”, conclui Almeida.
O relatório produzido pela ECMI-FGV também analisou as menções e interações em conteúdos sobre outras mulheres com protagonismo político no país, como Marina Silva (Rede), Nísia Trindade e Simone Tebet (MDB), ministras do atual governo, e as parlamentares Damares Alves (PL-DF) — ex-ministra da gestão de Jair Bolsonaro — e Gleisi Hoffmann (PT-PR), entre outras.
O documento ressalta que, especialmente entre mulheres que ocupam a gestão de ministérios no governo Lula, as publicações analisadas no período indicam uma “noção de que tais mulheres seriam pouco qualificadas para os seus respectivos cargos” (página 2). A ministra da Cultura, Margareth Menezes, por exemplo, foi criticada em janeiro, logo depois do anúncio do desbloqueio de verbas da Lei de Incentivo à Cultura. Na ocasião, posts com informações não comprovadas sugeriam que a ministra “favoreceu” amigos, como a atriz Cláudia Raia, e colocaram em dúvida a credibilidade dela como gestora pública.
Da violência nas redes para as agressões físicas
A violência política de gênero nas redes sociais não é nova, mas ganhou notoriedade em 2018, quando Manuela D’Ávila concorreu a vice-presidente na chapa de Haddad. Quatro anos antes, ela já havia relatado a primeira agressão causada por desinformação: um rapaz a agrediu enquanto tomava um café com o marido em razão de uma informação falsa no Twitter.
Em setembro do ano passado, ela contou em uma entrevista publicada no portal do projeto Desinformante que há pelo menos oito anos sente medo por ela e por sua família. “Não consigo contar o número de vezes que fui agredida no mercado ou na rua por conta de mentiras contadas e espalhadas a meu respeito”, relembrou.
Em entrevista à Lupa, a jornalista afirmou que o tipo e o volume de desinformação e de ataques que mulheres e homens sofrem, mesmo se isolado o componente ideológico, são vinculadas a algumas questões. “As mais óbvias são a misoginia e o machismo”, disse, citando o exemplo das eleições presidenciais de 2018. Naquele ano, ela foi uma das principais alvos dos discursos de ódio e peças desinformativas, mesmo não concorrendo como vice e não ao cargo de presidente.
Para a jornalista e ex-parlamentar, o discurso de ódio contra mulheres é construído a partir de um preconceito real. “Não existe nenhum tipo de preconceito contra homens, sobretudo contra homens brancos. Mas existe o preconceito contra mulheres. Isso faz com que o discurso de ódio e a desinformação contra mulheres tenha mais legitimidade. Isso não aconteceu só comigo, acontece com muitas mulheres no Brasil e em outros países”, opina.
Em 2018, depois das eleições, Manuela D’Ávila criou o Instituto E Se Fosse Você, organização que acolhe mulheres vítimas de violência política. Em 2021, o instituto lançou o livro Sempre Foi Sobre Nós, uma coletânea de relatos de mulheres que sofreram violência política de gênero no Brasil. A obra inclui depoimentos de Áurea Carolina, Benedita da Silva, Isa Penna e Tabata Amaral, entre outras.
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