Publicado originalmente em Coletivo Bereia por Gabriella Vicente e João Pedro Capobianco. Para acessar, clique aqui.
Nos primeiros dias de julho de 2023, o governo federal anunciou o encerramento do Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares (Pecim). Em ofício às secretarias estaduais, o Ministério da Educação (MEC) informou que o programa chegará ao fim e terá início um período de transição para que as escolas que anteriormente integravam o Pecim sejam reintegradas à redes regulares de ensino. Na sexta-feira, 21, o governo publicou um decreto revogando o Pecim.
O portal gospel Pleno News, em matéria crítica ao fato, veiculada em 16 de julho, afirma que escolas cívico-militares foram responsáveis pela queda das taxas de evasão e violência escolar, e que a decisão de extinguir o Pecim ignora os “bons resultados apresentados pelo Programa”. Bereia checou esta alegação.
Imagem: reprodução site Pleno.News
Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares (Pecim)
Em 2019, a gestão cívico-militar das escolas públicas de educação básica havia sido proposta no Projeto de Lei nº 4.938/19, de autoria do deputado federal Mário Heringer (PDT/MG), mas não conseguiu aprovação na Câmara dos Deputados. Em setembro daquele ano, o então presidente da República Jair Bolsonaro (PFL, depois PL) instituiu o Pecim via Decreto, ou seja, sem a necessidade de aprovação pelas casas legislativas.
Instituído, então,pelo Decreto nº 10.004/19, o Pecim propunha-se a aplicar, a escolas do ensino regular, práticas pedagógicas ligadas ao ensino dos colégios militares, do Exército, das polícias militares ou dos corpos de bombeiros militares. Ao contrário do que ocorre nas tradicionais escolas militares, subordinadas ao Ministério da Defesa, as escolas cívico-militares permaneceram sob alçada das Secretarias de Educação.
A implementação do modelo cívico-militar, prevista no Decreto nº 10.004/19 é efetivada por meio da contratação de militares inativos para a execução de tarefas disciplinares nas escolas que aderirem ao programa. Tal contratação é feita pelas próprias Forças Armadas, sob coordenação do Ministério da Defesa, e o pagamento dos salários realizado com o orçamento do MEC.
Resultados do Pecim
A afirmativa apresentada pelo portal Pleno News não indica a referência dos bons resultados atribuídos ao programa, apontados no texto, porém o MEC divulgou algumas informações relativas ao Pecim no final de 2022. O Replanejamento Estratégico do Pecim, divulgado em dezembro do último ano, expôs, na seção de Análise dos Resultados, dados do programa colhidos ao longo de 2022, em 117 escolas do Pecim.
O documento aponta índices de avaliação subdivididos em quatro aspectos: Gestão Escolar (GE), Ambiente Escolar (AE), Práticas Pedagógicas (PP) e Aprendizado e Desempenho Escolar dos Alunos (ADEA). O indicador é medido entre 0 e 1, quanto mais próximo de 1 é a nota, mais perto está de atingir a meta avaliada.
No contexto deste levantamento a que teve acesso Bereia, o indicador de AE ‘Reduzir os índices de violência na escola’ é apontado com média 0,80 e o indicador de ADEA ‘Diminuir o índice de faltas e reduzir as taxas de abandono e evasão escolar’ com 0,79. Os valores coincidem com os apresentados pelo Portal Pleno News.
O relatório concluiu que o programa apresentava “necessidade de ações mais intensas dos gestores das Ecims” em estratégias que apresentaram “maiores déficits de atendimento”, entre estas: potencializar o trabalho do supervisor escolar (coordenador pedagógico), envidando esforços para que ele receba apoio de um psicopedagogo (GE) e possuir quantidade suficiente de professores, gestores e funcionários (GE). Além destas medidas também foram citadas como carentes de melhorias: atingir as metas do Ideb para a escola (PP) e definir e respeitar o efetivo máximo de alunos em todas as salas de aula da escola (ADEA), que foram indicadores com nota 0,4.
Reação dos governos estaduais à decisão do MEC
A decisão do encerramento do Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim) pelo MEC foi comunicada por meio do Ofício Circular nº4/2023, emitido em 10 de julho, aos secretários estaduais de educação. O documento informa que a medida foi tomada após avaliação do programa e que a partir deste fato inicia-se um processo de desmobilização do pessoal das Forças Armadas envolvido na implementação e lotado nas unidades educacionais do Pecim.
O ministro da Educação Camilo Santana garantiu, em entrevista à CNN, em 18 de julho, que nenhuma das escolas cívico-militares será fechada e afirmou que o programa existirá até o fim de 2023, e dentro deste prazo, o MEC irá dialogar com as gestões de educação estadual e municipal a transição para o sistema regular de ensino. Santana frisou ainda que caso haja interesse dos prefeitos e governadores em manter as escolas no formato cívico-militar será uma decisão própria desvinculada do MEC.
Em reação à medida tomada pelo governo federal, alguns governadores ligados ao ex-presidente Jair Bolsonaro manifestaram a intenção de manter o programa com recursos estaduais. Um deles foi Tarcisio de Freitas (Republicanos), à frente do estado de São Paulo, que informou pretender não só continuar, mas ampliar as unidades cívico-militares de ensino. O governador de Santa Catarina Jorginho Mello (PL) também divulgou que irá expandir o programa e afirmou ter pedido à Secretaria de Educação um estudo para determinar quais regiões do estado poderão receber escolas desta modalidade. Líderes dos estados do Rio de Janeiro, Paraná, Santa Catarina, Bahia, Goiás, Rondônia e Distrito Federal também se manifestaram com intenção de dar continuidade ao programa.
Críticas ao Pecim
O diretor da Secretaria-Executiva do Ministério da Educação Gregório Grisa comentou o tema, em seu perfil no Twitter. Grisa afirma que o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares não tem respaldo legal. “Não há base legal na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e no Plano Nacional de Educação (PNE) que ampare o pagamento de militares para exercer funções em escolas, mesmo que administrativas”.
Imagem: reprodução do site UOL
As verbas de manutenção dos colégios militares são provenientes do orçamento do Ministério da Defesa. No modelo cívico-militar, o orçamento vem do Ministério da Educação e remunera militares inativos. Em alguns casos, como nos bônus destinados aos coronéis, o valor chega a R$ 9,1 mil – maior que o piso salarial dos professores, de R$ 4,4 mil.
Para o cientista social e diretor do Instituto Cultiva, ONG dedicada à educação para a cidadania e participação social, Rudá Ricci, o Programa de escolas cívico-militares é “ilegal, equivocado e inócuo”. Em entrevista ao Bereia, Ricci destaca que o Pecim ofende a lei de diretrizes e bases da educação nacional (LDB) e o Programa Nacional da Educação (PNE), instrumentos nacionais que garantem a gestão democrática das escolas brasileiras.
Foi baseado neste entendimento que a 25ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul suspendeu a implementação de novas escolas cívico-militares no estado, em novembro de 2022. A decisão foi tomada depois do Centro dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul e do Sindicato dos Trabalhadores em Educação ajuizarem uma ação civil pública contra o decreto que criou o programa em setembro de 2019.
Em junho de 2022 o Tribunal de Justiça de São Paulo também suspendeu a implantação do Pecim em uma escola de São José do Rio Preto, a decisão atendeu a um pedido de liminar do Sindicato dos Professores da Rede Estadual de Ensino de São Paulo (Apeoesp).
Ricci afirma, ainda, que “educação é socialização – saber viver em sociedade – e desenvolver a autonomia – autocontrole e definição do papel individual na sociedade. (…) a militarização das escolas não debela a violência e gera instabilidade entre adolescentes. Um erro grosseiro que levará ao desastre as gerações expostas a este modelo”.
Questionado sobre a disposição de governos estaduais darem continuidade ao modelo, o cientista social identifica três blocos distintos. “O primeiro bloco é composto por bolsonaristas. Aqui se trata de um confronto claro com o governo federal, não exatamente de um projeto educacional nítido. O segundo bloco é composto por governos progressistas que perderam uma noção clara de estratégia educacional, abraçando toda sorte de propostas que prometem responder às mazelas de momento. O terceiro bloco – que inclui parte do segundo – é composto por governos cujo foco é atender a demanda imediata do eleitor, descartando projetos de mais longo prazo”.
Ricci correlaciona o que entende ser uma tendência imediatista aos ciclos eleitorais que ocorrem no Brasil a cada dois anos. “Este calendário eleitoral força a obtenção de ações espetaculares ou que parecem atender imediatamente às demandas mais agudas do eleitor, tratando a gestão pública como balcão de atendimento de uma clientela ansiosa”.
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Bereia conclui que o conteúdo checado é impreciso, pois apresenta dados verdadeiros, mas sem amplitude suficiente para serem considerados informação. A maneira seletiva de expor os dados e a condução do conteúdo como uma resposta defensiva a uma medida política revogada, aponta para o uso do produto jornalístico como meio de defesa de interesses e pode levar o público a julgamentos errôneos.
O relatório do fechamento do ano de 2022 do Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares apontou problemas a serem resolvidos em áreas pedagógicas e de aprendizado, o que deu base para a decisão de encerramento do programa pelo Ministério da Educação. Também foram apresentados, como justificativa pela pasta, os altos gastos retirados indiretamente da educação para a remuneração de militares da reserva.
O texto em questão não contextualiza todos os aspectos desta situação, e com base em dados parciais defende a manutenção do programa, atribuindo uma decisão prejudicial à educação nacional ao governo e não há referência ao documento usado como base para os dados apresentados. O programa não teve ampla adesão e nem elevou os níveis da educação nas escolas contempladas com a metodologia, portanto, não é possível afirmar que houveram “bons resultados” o suficiente para que o programa não fosse descontinuado a partir de uma ótica técnico-pedagógica.
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Referências de checagem:
Exame. https://exame.com/brasil/escolas-civico-militares-entenda-por-que-o-ministerio-da-educacao-decidiu-acabar-com-o-programa/ Acesso em: 18 jul 2023
CNN. https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/como-e-uma-escola-civico-militar-entenda/ Acesso em: 18 jul 2023
Twitter. https://twitter.com/grisagregorio/status/1679565755556196352?t=rRYbJ6DVdWMKDKuI8E091w&s=19 Acesso em: 18 jul 2023
Youtube. https://www.youtube.com/watch?v=YVFORuY2lx4&ab_channel=CNNBrasil Acesso em: 19 jul 2023
Agência Brasil. https://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2023-07/governo-federal-vai-encerrar-programa-de-escolas-civico-militares Acesso em: 19 jul 2023
MEC. https://www.gov.br/mec/pt-br/assuntos/noticias/ministerio-da-educacao-apresenta-os-resultados-do-programa-nacional-das-escolas-civico-militares Acesso em: 19 jul 2023
Gov.br. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/decreto/d10004.htm Acesso em: 19 jul 2023
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9394.htm Acesso em: 20 jul 2023
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l13005.htm Acesso em: 20 jul 2023
MEC.
http://ramec.mec.gov.br/component/search/?searchword=PECIM&searchphrase=all&Itemid=8 Acesso em: 20 jul 2023
Uol.
https://educacao.uol.com.br/noticias/2023/07/13/militares-reserva-bonus-escolas-civico-militares.htm Acesso em: 21 jul 2023
https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2022/06/justica-barra-escolas-civico-militares-do-governo-bolsonaro-na-rede-estadual-de-sp.shtml Acesso em: 21 jul 2023
Conjur. https://www.conjur.com.br/2022-nov-17/tj-rs-suspende-programa-nacional-escolas-civico-militares Acesso em: 21 jul 2023
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Foto de capa: Escola Lima Netto/Facebook