Políticas públicas para Ciência e Tecnologia são fundamentais para enfrentar negacionismos

Publicado originalmente em Revista Fórum por Coletivo Intervozes. Para acessar, clique aqui.

As eleições de 2022 foram marcadas por diversos casos de violência política, verificados através de ameaças a instituições, ofensas, discursos de ódio, crimes cibernéticos, tentativas de agressão e até mesmo assassinatos. De um modo geral, ainda que haja notícias de casos em contrário, as vítimas foram majoritariamente apoiadoras do então candidato Luiz Inácio Lula da Silva e do Parido dos Trabalhadores.

No mesmo cenário, discursos antivacina e de ataques à ciência e à pesquisa, que têm atuado com mais evidência desde a pandemia, utilizaram as eleições como palco para a defesa do negacionismo.

Aliado a isto, a guerra de narrativas da campanha eleitoral protagonizada pelo candidato derrotado Jair Bolsonaro (PL) apelou para a construção do medo através de mentiras sobre questões como descriminalização do aborto, perseguição religiosa, ameaça à família, e a inexistente “ideologia de gênero”.

O discurso conservador se apoiou no chamado pânico moral. O resultado foi uma campanha sem a discussão de projetos e propostas de políticas públicas para enfrentar a Covid-19 e outras doenças que seguem vitimizando sobretudo os segmentos mais vulnerabilizados da sociedade, um processo de dois turnos sem o aprofundamento do debate voltado ao fomento e fortalecimento de pesquisas científicas nas diversas áreas.

Com o objetivo de analisar este panorama e discutir a importância da ciência e da tecnologia na reconstrução do Brasil, entrevistamos Dayane Machado, que é jornalista, mestre em Divulgação Científica e Cultural e doutoranda no Departamento de Política Científica e Tecnológica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde pesquisa desinformação sobre saúde.

Para Dayane, o negacionismo científico “é a rejeição sistemática da existência de um fenômeno ou da validade de um conhecimento ou tecnologia mesmo que as evidências demonstrem o contrário”.

A entrevista foi conduzida por Ana Veloso, professora dos cursos de Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

Ana Veloso – Dayane, as últimas eleições presidenciais foram marcadas por uma série de discursos negacionistas. Qual o papel da ciência e da tecnologia frente aos negacionismos?

Dayane Machado – Os ataques à ciência e a instituições oficiais fazem parte de um fenômeno que já vem ocorrendo muito antes das eleições de 2022, já que esse tipo de ataque se estabeleceu como uma das táticas mais comuns em campanhas de manipulação midiática. Diante de desafios como as diversas ondas de negacionismo que temos testemunhado, o papel da ciência é compreender quais fatores podem estar influenciando na desconfiança e no nível de vulnerabilidade de diferentes grupos, identificar quem são os principais atores envolvidos nessas campanhas, além de seus interesses e táticas. E principalmente, desenvolver recursos baseados em evidências para mitigar essas tentativas de manipulação – regulamentação, alfabetização midiática, inoculação, entre outros.

AN – Como tudo isso afeta a democracia no país?

DM – Já temos um grande número de pesquisas indicando que a exposição excessiva à desinformação e a teorias da conspiração traz danos reais à sociedade. Essa exposição pode diminuir a adesão das pessoas a recomendações oficiais de saúde, como ocorreu durante a pandemia de Covid-19; pode diminuir o engajamento da população em relação à política; desestimular o combate às mudanças climáticas e diminuir a confiança da população em relação a informações e instituições oficiais. Quando essa desconfiança excessiva é sistematicamente alimentada e usada para manipular, as percepções de um mesmo acontecimento podem se tornar tão radicalmente diferentes a ponto de inviabilizarem o diálogo e a possibilidade de colaboração ou de convivência entre diferentes grupos.

AN – Uma outra questão relevante tem sido a proliferação de notícias falsas, mais notadamente com relação ao enfrentamento à pandemia da Covid-19. Disseminação de medicamentos sem eficácia para a doença, suspeição das vacinas e do uso de máscaras, além da negação da própria capacidade letal da Covid -19 (só um “resfriadozinho”). Como a desordem informativa corrói o trabalho dos/as cientistas?

DM – A infodemia é um conceito adotado pela Organização Mundial da Saúde para se referir ao excesso de informações e de desinformações em circulação. Entre outras coisas, esse problema dificulta o acesso da população a informações que sejam confiáveis e relevantes. Em meio a uma crise de saúde pública como a pandemia de Covid-19, tanto a falta de acesso quanto o nível de desconfiança das pessoas em relação a informações baseadas em evidências podem levar a consequências severas. É possível dizer que o fenômeno da desinformação não só dificulta a aplicação do conhecimento científico em políticas públicas, como coloca em risco a percepção de legitimidade das instituições de pesquisa e do trabalho dos cientistas.

AN – Como vocês estão atuando para contrapor a proliferação de Fake News?

DM – No nosso grupo de pesquisa, o EDReS (Unicamp), os pesquisadores atuam em pelo menos duas frentes essenciais para o combate à desinformação. A primeira é a da pesquisa, com vários cientistas investigando desinformação sobre saúde, climática e política. A segunda frente é a da divulgação científica, que é realizada desde a colaboração com a imprensa até a preparação ou a tradução de materiais que possam auxiliar na inoculação da população, ou seja, ajudar na preparação do público para que ele saiba reconhecer e se proteger de futuras tentativas de manipulação.

AN – Até que ponto o avanço das ondas conservadoras favoreceram a disseminação de discursos negacionistas no país?

DM – A desinformação se tornou estratégia de governo para certos grupos políticos em diferentes países porque ela tem se mostrado efetiva na exploração de ansiedades e vulnerabilidades sociais. É por meio da legitimação e do aparelhamento do governo que esses grupos vêm ganhando projeção, alcançando públicos cada vez mais diversos e recrutando novos membros.  

AN – Qual deve ser o papel do Estado brasileiro no tocante à implementação de políticas públicas que valorizem e estimulem a importância da ciência e da tecnologia frente ao negacionismo?

DM – A implementação de políticas públicas que estimulem o desenvolvimento científico e tecnológico do país oferece vantagens sociais, ambientais, políticas e econômicas. É por meio da ciência que seremos capazes de compreender os mecanismos do negacionismo, de identificar as melhores ferramentas para enfrentá-lo e, quem sabe, reestabelecer a confiança de parte da população nas instituições oficiais, nos cientistas e na democracia.

*Esta entrevista integra a série “Ideias para um Brasil democrático”, conjunto de textos que pretendem contribuir com a reconstrução do Brasil e com a necessária democratização da nossa democracia. A série é uma iniciativa do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político.

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