Pessoas com nanismo ainda são relegadas ao humor e à sátira na televisão

Publicado originalmente em Jornal da Universidade por Gabriela Sardi. Para acessar, clique aqui.

Sociedade | Representação impacta no cotidiano dessas pessoas, que sofrem com piadas e preconceito, e especialistas defendem a necessidade de se pensar e retratar o nanismo como algo natural

*Imagem: Corazón de Leon/Reprodução Youtube

Em uma banheira, mulheres seminuas se atracam com alguma celebridade na disputa por um sabonete. Essa era a proposta de uma das atrações dominicais de maior sucesso nos anos 90. Se fosse exibida nos dias de hoje, provavelmente receberia críticas impetuosas de parte da audiência. Os anos avançaram, e com eles as pautas e reivindicações de certos grupos ganharam maior alcance.

Outro acontecimento televisivo: sete homens fantasiados disputam cem reais em um campeonato de pênaltis. Parte essencial da fantasia não é roupa ou acessório, mas o corpo deles: cada um dos sete homens tem nanismo. Essa atração, ao contrário da primeira, não foi ao ar nos anos 90, tampouco nos 2000, mas sim no dia 17 de agosto deste ano. “Todos os temas andam pra frente, o nanismo não. O nanismo é sempre levado na comédia, no estereótipo. Chega, não dá mais”, declara Juliana Caldas, primeira atriz com nanismo a integrar o elenco de uma novela global. Ela interpretou Estela em “O Outro Lado do Paraíso”, veiculada em 2017. “Foi bem diferente do que costumamos ver na televisão. Geralmente o nanismo é colocado como chacota, como brincadeira, motivo de risada”, afirma.

Rir do anão

Nas telas é de praxe: do clássico “O Mágico de Oz” (1903) às duas versões de “A Fantástica Fábrica de Chocolate” (1971), o nanismo, salvo raras exceções, é associado ao cômico ou ao místico. A questão é histórica, e muito anterior ao nosso tempo: na Europa feudal, pessoas com nanismo eram bobos da corte nos castelos da nobreza; nos Estados Unidos do século XIX, viraram parte dos itinerantes “shows de horrores”, junto a outras pessoas com deficiência exibidas como atrações de circo. “Não riríamos mais do ‘homem elefante’ ou da ‘mulher barbada’, mas ainda nos sentimos à vontade para rir do ‘anão’”, provoca Nísia Martins do Rosário, doutora em Comunicação e pesquisadora das áreas de corporalidades, imagem e semiótica.

Para ela, relegar as pessoas com nanismo ao escárnio é uma forma de conviver com sua alteridade. “Infelizmente, a gente consegue lidar muito pouco com aquilo que é diferente. São diversas as pessoas que, por não corresponderem ao padrão hegemônico, acabam sendo representadas como algo ‘fora do comum’. E, muitas vezes, vão parar no humor porque aí é possível rir delas sem parecer tão longe dos princípios morais, já que eu estou rindo ‘com elas’, mas também estou rindo delas”, afirma.

Na TV brasileira, de modo geral, as pessoas com nanismo ou são ajudantes de palco ou fazem programas de humor. “E, nos dois casos, elas estão lá justamente como motivo de chacota”, observa a pesquisadora. “A gente pode até maquiar um pouco isso, dizendo que elas estão produzindo humor. Mas o papel delas é evidenciado pela forma de seu corpo, e não por sua subjetividade”, diz Nísia.

O momento em que um apresentador de programa dominical chama de “filho” seu assistente de palco com nanismo, a fala de Nísia fica bem ilustrada. Com certeza, o riso daí advindo não viria se o vocativo fosse empregado em relação a outro corpo. “A ideia que as pessoas têm é de que somos eternas crianças. Nosso tamanho nos deixa como pessoas infantilizadas, até mesmo imbecilizadas. Ainda não se criou socialmente a ideia de que nós somos pessoas como quaisquer outras”, diz Andrea Faria, mestre em Diversidade e Inclusão pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

Andrea acredita que a representação televisiva de outros grupos de pessoas com deficiência é diferente se comparada à representação das pessoas com nanismo. “Você não vê, por exemplo, a TV fazer piada com cadeirante. Vamos ser sinceras, por que tem que fazer conosco?”, questiona. Ela reforça que cabe às emissoras de TV contratar pessoas com nanismo para trabalharem nos bastidores e, em frente às câmeras, atuarem em papéis que fujam de sátiras e estereótipos, retratando a deficiência de forma natural.

No cotidiano de pessoas com nanismo, isso surtiria algum efeito, já que a chacota com elas não se restringe às telas. A jornalista e escritora Lelei Teixeira sabe bem disso. “Levanta do chão”, “parece uma boneca!”, “que vontade de levar para casa”, “como está a temperatura aí embaixo?” são algumas das frases que ela já ouviu em suas costumeiras andanças pela cidade. Piores são as vezes em que as pessoas a pegam no colo sem consentimento — já aconteceu na rua, no ônibus e mesmo em uma premiação jornalística da qual ela própria era a homenageada. “É um enfrentamento quase cotidiano. E acho que a gente tem que se ver com isso, tem que encarar, falar. Quando a gente começa a falar, abrimos caminho para a libertação”, afirma.

Caso emblemático

“Corazón de León” é uma comédia argentina que narra o envolvimento entre um homem com nanismo e uma advogada de estatura mediana. O filme, já adaptado por quatro países, ganhou uma versão brasileira no ano passado, produzida pela Netflix. A releitura nacional, batizada “Amor sem medida”, lançou mão do mesmo recurso das antecessoras: escalar um ator sem nanismo para protagonista e alterar sua altura digitalmente, procedimento que demanda polpudo investimento em computação gráfica.

Nas redes sociais, parte da audiência acusou o filme de fazer “crip face” — prática em que atores sem deficiência interpretam personagens com deficiência — e de ser capacitista, por discriminar pessoas com nanismo. Juliana Caldas e o também ator Giovanni Venturini encabeçaram o discurso. “É necessário ter coragem para falar sobre, para meter a cara”, diz Juliana. Ao se lembrar de uma cena do longa em que o tamanho do órgão genital do protagonista é associado a sua baixa estatura, ela sentencia: “Isso já deu o que tinha que dar. Não está tudo bem rir do nanismo”.

Na lei, o amparo existe: “rir do nanismo” pode ser enquadrado no artigo 140 do Código Penal, que tipifica como delito de injúria a conduta de ofender a dignidade ou o decoro de alguém utilizando elementos referentes à condição de pessoa com deficiência. “O nanismo também está abrangido na lei, só que ninguém sabe, ninguém leva a sério. Infelizmente falta muita informação”, lamenta Juliana, que complementa: “Mas a gente vai seguir em frente. Aos poucos plantando as sementinhas do conhecimento e da empatia”.

Já há mudanças: em setembro, o SBT começou a exibir o reality estadunidense “Os Pequenos Johnsons”, que acompanha o cotidiano de uma família com nanismo. Andrea Faria aponta o programa como exemplo de abordagem positiva do nanismo. No exterior, a Disney anunciou que os tradicionais “sete anões” não estarão presentes na nova versão de Branca de Neve, a fim de evitar estereótipos ligados a pessoas com nanismo. Ao que parece, as sementinhas de Juliana (e também de Lelei, Andrea e tantas outras) já estão brotando.

Acima, o ator Guillermo Francella, no papel da personagem principal do filme Corazón de León (2014, produção argentina dirigida por Marcos Carnevale). Sucesso de público naquele país e com versões em diferentes países da América Latina, o filme trata das questões suscitadas pelos preconceitos relacionados ao nanismo em uma relação amorosa. Antes e na capa, o ator Marlon Moreno na versão colombiana do filme (2015), dirigida por Emiliano Caballero (Imagens: Corazón de Leon/Reprodução Youtube)

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