Pesquisa inédita mapeia a presença LGBTQIA+ na ciência brasileira

Publicado originalmente em Jornal da Universidade por Tarcízio Macedo. Para acessar, clique aqui.

Representatividade | Apesar dos avanços na pauta do movimento, cientistas ainda relatam assédio, exclusão e LGBTQIfobia na academia, e pessoas transgêneros são as mais afetadas

*Foto: Flávio Dutra/JU

Apesar da comunidade de lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, queer, intersexuais, assexuais ou outra minoria sexual ou de gênero (LGBTQIA+) ter conquistado espaço em diferentes ambientes sociais ao longo dos anos, a presença de pessoas LGBTQIA+ em ambientes de trabalho, como as universidades, ainda é desconhecida. E há motivos para isso. Um em cada cinco cientistas da área da Física pertencentes a minorias sexuais e de gênero nos Estados Unidos foram excluídos, intimidados ou assediados no trabalho por conta de seu gênero, identidade ou orientação sexual, informa o relatório LGBT Climate in Physics: Building an Inclusive Community, publicado em 2015 pela American Physical Society. A pesquisa sugere ainda que as pessoas transgêneros são as mais afetadas.

No outro lado do Atlântico, o relatório britânico Exploring the Workplace for LGBT+ Physical Scientists, publicado em 2019 e produzido pelo Institute of Physics, pela Royal Astronomical Society e pela Royal Society of Chemistry, destacou que as ciências físicas são um ambiente de trabalho pouco confortável para muitas pessoas LGBTQIA+. Os dados da pesquisa apontam que quase um terço das cientistas e dos cientistas físicos que pertencem a minorias sexuais e de gênero no Reino Unido já considerou abandonar a carreira por conta de discriminação, assédio ou exclusão no local de trabalho. O relatório ainda reforça que as pessoas trans ou que não se identificam como mulher ou homem (não binários) são as que mais relataram ter experimentado bullying, assédio ou comportamentos excludentes em seus ambientes de trabalho.

Esse contexto está longe de ser uma particularidade da América do Norte ou da Europa. No Brasil, o cenário não é muito diferente: apenas 10% dos cientistas, estudantes e pesquisadores brasileiros LGBTQIA+ são pessoas trans. O resultado vem de dados preliminares de uma pesquisa inédita que perguntou a 1.449 acadêmicos que se identificam como LGBTQIA+ sobre suas experiências, anseios e dificuldades enfrentadas no ambiente científico. Coordenado pela professora da Escola de Engenharia de Lorena da Universidade de São Paulo (USP) Gabrielle Weber e pela professora do Instituto de Biociências da UFRGS Fernanda Stanisçuaski, o Levantamento da Ciência LGBTQIA+ Brasileira buscou mapear a demografia, o clima no ambiente de trabalho e as percepções em torno da existência e permanência nos espaços de convívio acadêmicos pela população LGBTQIA+.

Representatividade importa

Na mídia, nas artes e no cotidiano, o imaginário predominante do cientista que persiste até hoje é ocupado pela imagem de um homem branco, com idade avançada e cabelos grisalhos. Profissionais da ciência negros, indígenas e LGBTQIA+ são praticamente inexistentes nas representações do cientista, embora esse cenário ainda reflita a baixa diversidade e inclusão presentes na realidade da ciência brasileira. Fora de polos como os EUA e o Reino Unido, há uma dificuldade de acesso a informações, comenta a coordenadora do projeto na USP. “Apesar de sabermos bem sobre as dificuldades que enfrentamos, é muito importante, para se poder nortear políticas públicas, ter dados e números”, completa, afirmando que a principal proposta da pesquisa era provar cientificamente que o problema existe.

Com o intuito de mapear o cenário brasileiro, a pesquisa coordenada por Weber e Stanisçuaski procurou preencher a lacuna de dados demográficos sobre o tema no país. “Não fazemos ideia de quem é LGBTQIA+ na academia, nós não sabemos a proporção de gays, lésbicas, pessoas trans, bissexuais. Essa era nossa primeira pergunta: quem nós somos e onde nós estamos”, relembra.

Um dos dados mais relevantes dos relatórios dos EUA e do Reino Unido aponta que pessoas LGBTQIA+, notadamente as pessoas trans, possuem uma sensação de exclusão muito mais intensa, que desencadeia um desejo de abandonar a academia com maior frequência. Segundo Weber, os dados preliminares da pesquisa brasileira apontam uma realidade diferente,

“A nossa hipótese, por enquanto, é que a estabilidade da academia aqui é um atrativo. É um processo complicado você entrar, mas, uma vez que esteja lá, você possui uma certa estabilidade, você não pode ser demitide e muitas universidades já têm algumas legislações contra a LGBTQIfobia. Nós vimos também que, quando essas medidas são efetivas, se aumenta muito a qualidade de trabalho das pessoas LGBTQIA+”.

Gabrielle Weber

Por outro lado, o levantamento brasileiro mostra que o ambiente acadêmico é mais nocivo às pessoas trans. “Ficou bem claro que a população trans tem um acesso muito menor a esses ambientes, da ordem de aproximadamente 10% de respostas”, pontua Weber.

Essa estatística é entendida quando consideramos as particularidades do contexto brasileiro que colaboram para a produção desse cenário. Há 13 anos consecutivos, o Brasil é o país que mais mata por transfobia no mundo, conforme relatório de 2021 da Transgender Europe (TGEU). A professora da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação (Fabico) da UFRGS Alê Primo chama atenção para a vulnerabilidade social dessa população. “Pessoas trans muitas vezes são expulsas de casa desde cedo, sofrem violência na escola, no seu domínio e nas ruas, muitas vezes recorrendo à prostituição para poder sobreviver”, comenta. O doutorando em Educação pela UFRGS Antonio Jeferson Xavier complementa: “Quantas pessoas trans ou travestis nós deixamos de ter fazendo ciência porque não tivemos essas pessoas na escola?”

A estimativa é que os resultados consolidados do Levantamento da Ciência LGBTQIA+ Brasileira sejam publicados ainda este ano. Segundo Weber, a previsão é que o relatório do estudo seja divulgado no final de 2022 nos perfis do projeto no Twitter e no Instagram.

A professora Alê Primo, do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Fabico/UFRGS (Foto: Bruna Marchioro/Arquivo Pessoal)
Muito a ser feito para além do mês da visibilidade

Embora a comunidade tenha visto uma melhora no cenário, ainda se está longe do cenário ideal. Dados do estudo brasileiro apontam que certa de 30 a 40% das pessoas respondentes relataram ter sofrido LGBTQIfobia, um número elevado e maior do que os resultados relatados nas duas pesquisas dos EUA e do Reino Unido.

Gabrielle Weber reforça a necessidade de criação de um processo de educação, a partir de seminários e rodas de conversas. Da mesma forma, Antonio Jeferson Xavier acredita que a educação é o caminho para a mudança, desde a educação básica e infantil. “A escola e nenhuma instituição de ciência devem ser instrumentos de reforço de preconceitos. Os professores e as professoras precisam saber e ter consciência de que a ciência é feita não só por homens brancos, cis, héteros e cristãos. Isso deve ser visibilizado e mostrado às crianças”, defende. Para ele, a educação deve ser continuada: “Considerar, sim, as datas comemorativas, o mês da visibilidade é muito importante, mas é preciso ir para além dessas datas para que não fique uma ideia de folclorização dessas identidades”, finaliza.

Na UFRGS, desde 2016 programas de pós-graduação (PPGs) adotam a política de reserva de vagas para candidatas e candidatos travestis e trans, entre eles o pioneiro Programa de Pós-graduação em Educação (PPGEDU), em que Antonio Jeferson cursa o doutorado, e o Programa de Pós-graduação em Comunicação (PPGCom), ao qual Alê Primo é vinculada.

“Nós queremos, deliberadamente, permitir que pessoas que tenham menos privilégios e maiores dificuldades de ascender, neste caso nas carreiras educacionais, possam ter o seu mestrado, o seu doutorado e potencialmente transformar sua vida. No caso das pessoas trans, nem aparecem candidatos, porque muitos, inclusive, têm dificuldade de ter graduação ou mesmo ensino médio. Então, para as pessoas trans e travestis, as ações afirmativas são no sentido de poder oferecer outras possibilidades de trabalho que não sejam a prostituição, o salão de beleza ou o show business.”

Alê Primo

Esforços atuais da Universidade caminham para atender as demandas de grupos sociais historicamente excluídos e vulnerabilizados. Desde 2020, a UFRGS trabalha para oferecer cotas em todos os PPGs, mas menos de 20% deles adotam a reserva de vagas, segundo reportagem publicada pelo JU em 2020. Ao longo do mês de maio deste ano, um seminário debateu com a comunidade acadêmica a inclusão do programa de ações afirmativas na pós-graduação da instituição, incluindo vagas para pessoas trans, como já fazem ao menos seis PPGs.

Para Antonio Jeferson, que participou da elaboração do primeiro edital que incluía reserva de vagas para pessoas trans no PPGEDU, a política de cotas é necessária, mas precisa estar alinhada à política de permanência e de vários outros fatores para que se permita que as pessoas acessem esse programa.

“A inclusão não pode ser uma via para a exclusão. É preciso pensar sempre numa perspectiva de uma inclusão que não seja dada como uma benevolência da norma, dos superiores àqueles que estão à margem, mas por um direito básico dessas pessoas. Não basta ter o título de doutor ou doutora, é preciso um mercado de trabalho e acompanhamento da inserção dessas pessoas”.

Antonio Jeferson Xavier
Antônio Jeferson, doutorando em Educação no PPGEDU/UFRGS (Foto: Flávio Dutra/JU)

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