O jornalismo que não enxerga outro Nordeste

Raphaelle Batista
Doutoranda no PPGJOR/UFSC e pesquisadora do objETHOS 

Este é o último Comentário da Semana de 2022 no objETHOS e, talvez, o mais indicado a fazer fosse uma espécie de balanço do que o jornalismo atravessou nesses últimos quase 365 dias. Nem parece que foi em um ano só, mas apenas de janeiro para cá, tivemos outras ondas de Covid-19; a eclosão de uma nova guerra na Europa, a da Ucrânia; o surgimento da varíola dos macacos; a morte de Elizabeth II; as eleições presidenciais brasileiras, um dos pleitos mais importantes da democracia nacional, que deu a Lula seu terceiro mandato como presidente; e, sem querer magoar a ferida, uma Copa do Mundo que ainda definirá seu vencedor, mas que já sabemos não ser o Brasil.

Foram muitos os fatos nacionais e internacionais que mereceram a atenção do público, a cobertura jornalística e renderam análises por aqui. Em 2022, não faltou pauta, tampouco problemas éticos em suas abordagens. Mas não é uma retrospectiva o que quero fazer. Embora o final de ano seja propício para revisões, quero chamar atenção para o que deveríamos estar pautando agora, no presente, e como precisamos corrigir os olhares e as narrativas viciadas no futuro. Um novo ano se aproxima, teremos um governo de esquerda novamente e a expectativa é de muita poeira debaixo do tapete para tirar nessa casa tão bagunçada que se tornou o Brasil.

Em todas as áreas, as equipes de transição do governo eleito têm denunciado os desmontes. E pouco antes de sair, Jair Bolsonaro e sua equipe econômica fazem questão de reafirmar a incompetência e o desprezo com que tratam setores tão estratégicos quanto desvalorizados, como a Educação, para ficar apenas no exemplo da semana. Nos últimos dias, a precarização e a fragilidade da situação dos pesquisadores de pós-graduação de todo o país ficaram explícitas com o atraso no pagamento das bolsas da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), deixando mestrandos e doutorandos Brasil afora sem ter sequer o que comer. Após a forte pressão pública, com a devida contribuição do jornalismo, finalmente o recurso foi liberado.

Outra área soterrada pelo governo Bolsonaro foi a da Cultura. Desde a redução do Ministério da Cultura (MinC) a uma secretaria especial (antes no Ministério da Cidadania e, por fim, vinculada ao do Turismo), passando pela troca de cinco chefes da pasta, que terminou liderada pelo ex-ator de Malhação, o bolsonarista Mário Frias, até os constantes bloqueios e cortes orçamentários ao longo destes quatro anos – incluindo o período da pandemia de Covid-19, quando o setor foi um dos mais afetados durante a fase de isolamento social para enfrentamento da doença.

Ainda assim, apesar do cenário nacional de terra arrasada, a cultura resistiu e, em alguns lugares fora do eixo Rio-São Paulo, avançou nas políticas públicas. Manteve projetos e criou espaços que, se tivessem talvez outro CEP, certamente estampariam as capas dos cadernos de cultura dos grandes jornais brasileiros ou até mereceriam uma reportagem bem contada no Jornal Nacional.

Por acaso, você ouviu falar da inauguração da Pinacoteca do Ceará, a maior do Brasil, com 9.275 m² de área total e uma mostra de abertura com quase mil obras? Soube que o espaço faz parte de um complexo cultural chamado Estação das Artes, criado na antiga estação ferroviária da capital cearense, bem no centro de Fortaleza, restaurada para abrigar outros equipamentos culturais públicos, como um mercado gastronômico e um centro de design? Ouviu dizer que na terra de Padre Cícero, ali no sertão cearense, há agora um Centro Cultural do Cariri, com 57,5 mil m²?

Quem lançou essa reflexão foi a jornalista, pesquisadora e professora Fabiana Moraes, que esteve em Fortaleza na última semana, abrindo a emocionante exposição “Negros na piscina”, com curadoria dela e de Moacir dos Anjos, durante o Fotofestival Solar. O evento internacional de fotografia reuniu gente como Nair Benedicto, Cristina de Middel e Giselle Beiguelman, mas você pode não ter ouvido falar.

Se está fora do Ceará, provavelmente, essas notícias não lhe chegaram. E não é por falta de critérios de noticiabilidade que as validem. Muito além das inaugurações desses espaços, que aparentemente “não soam nacionais o suficiente”, como observou Fabiana, a relevância dessa pauta no contexto político em que vivemos nos últimos anos é evidente. A questão está aí: em se tratando de Nordeste, o que interessa aos jornalões brasileiros pautar? Se não for para mostrar pobreza e imagem de sertanejo clamando aos céus por água, vale a pauta? Afinal, pra que fazer o esforço de, genuinamente, tentar compreender e mostrar o que tem acontecido nestas bandas de cima do País que, nas artes visuais, na música, no teatro ou no cinema, têm gerado artistas cada vez mais talentosos que renovam o olhar sobre o Brasil? Um spoiler é que nada acontece isoladamente, fruto de uma iluminação individual. Há, sempre, a luta dos artistas e a necessária vontade política.

Em seu novo livro, “A pauta é uma arma de combate”, lançado também estes dias em Fortaleza, Florianópolis e outras várias capitais brasileiras, Fabiana diz logo na introdução: “A pauta vai enquadrar algo, a partir de um ou poucos olhares, que será compartilhado para um público mais amplo. Ela diz: algo está acontecendo e vocês devem saber.” Ora, se não nos chega esse outro Nordeste, o que mais estamos deixando de saber?

Referência

MORAES, Fabiana. A pauta é uma arma de combate: Subjetividade, prática reflexiva e posicionamento para superar um jornalismo que desumaniza. 1ª ed. Porto Alegre [RS]: Arquipélago, 2022.

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