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Reportagem: Tânia Martins | Edição: Luan Matheus Santana | Com informações de Conectas
No coração da caatinga piauiense, abraçados pela Chapada do Araripe, vivem cerca de 450 pessoas. São remanescentes quilombolas do território Serra dos Rafaéis. De geração a geração, suas práticas sociais, culturais e tecnologias ancestrais para o cultivo da terra são mantidas e repassadas entre famílias. A vida por lá era tranquila como é a de todos os povos que vivem em biointeração com a natureza. Mas em 2017 as coisas começaram a mudar por lá. A inauguração do Complexo Ventos do Araripe III, de responsabilidade da empresa brasileira Casa dos Ventos Energias Renováveis S.A., trouxe pra dentro do território turbinas gigantes para geração de energia limpa, mas também trouxe uma série de conflitos, adoecimentos e violações de direitos humanos e da natureza.
Seu Zezito e sua família não se conformam com o desassossego e transtorno promovido pelos parques que atravessam sua terra, mesmo sem seu consentimento. “Vieram trazer problemas, confusões e brigas entre comunidades, parentes e vizinhos. Quem não se submete à vontade das empresas fica mal visto por todos”, conta seu Zezito que, apesar dos esforços, não conseguiu evitar a passagem da linha de transmissão próxima à sua residência.
Segundo ele, tanto os linhões como as torres e suas turbinas gigantes estão desestabilizando pessoas e animais. “Os bichos ficam loucos, circulando atordoados devido ao barulho e a sombra causada pelo movimento das hélices. Você pode viajar para São Paulo, mas, o barulho das hélices não sai de sua cabeça”, assegura e fala ainda sobre a maldição da sombra das hélices que lhe acompanha dia e noite dentro de casa e que, com o tempo, vai provocando perturbação mental.
Sua filha, Dorinha Nonato, era ainda uma adolescente quando percebeu que o que estava acontecendo com sua família era injusto e que eles vinham sendo enganados pelas empresas. “Eles induziram os moradores a assinarem contratos sem entender o que estavam assinando”, conta e justifica que ali poucos são letrados e não entendem de leis e nem de direitos conquistados.“Eles iludem as pessoas, diziam que as condições financeiras iriam melhorar e que os impactos seriam mínimos nos territórios. Só que foram enganados, entregaram a terra sem nenhuma garantia e sem poder mais produzir nela”, conta Dorinha, acrescentando que foi nesta época que, graças a resistência da sua família que não aceitou assinar contrato, algumas organizações da sociedade civil como Conectas, CONAQ (Coordenação Nacional de Quilombos), Instituto Maíra e International Accountability, se aproximaram da comunidade para contribuir com seus direitos.
Assim como no Quilombo Serra dos Rafaéis, a vida de milhares de famílias que estão no trajeto das usinas geradoras de energias renováveis no Piauí mudou para pior depois que tiveram que obedecer às regras impostas pelas empresas que, no Piauí, tocam os projetos das gigantes multinacionais Eneel e Neo Energia, empresas europeias (uma italiana e outra espanhola) e que dominam o segmento no estado. Exemplos de violações de direitos humanos e destruição do meio ambiente se multiplicam nas regiões onde estão fincados os projetos de energias eólicas e solar, que segundo dados do governo estadual, somam 673 de eólicas e 174 de solar até o final de 2023.
Além de Simões, outros municípios piauienses, que fazem parte da Chapada do Araripe, estão sendo afetados diretamente, como Marcolândia, Lagoa do Barro, Queimada Nova e Dom Inocêncio. Os conflitos ocorrem desde a implantação dos projetos e já resultaram em interdição de estradas devido a poeira que encobre casas e destrói roças, vegetação de matas nativas, adoecimentos metal de moradores que não suportam o barulho dos aerogeradores ininterruptos.
Até mesmo quando as empresas fazem obras para facilitar o trabalho, como melhoria de estradas, por exemplo, o fazem sem se preocupar com as pessoas que transitam na área como aconteceu na Comunidade Lagoas, em Queimada Nova, em que a empresa CGM construiu um quebra-molas, com altura fora do padrão, provocando um acidente fatal com o jovem agricultor rural Pedro, 18 anos, que estava a caminho da feira de moto nas primeiras horas da manhã e não tinha conhecimento do obstáculo que se quer estava sinalizado.
A Defensoria Pública da União, na pessoa do Defensor Benoni Moreira, também contribuiu com a comunidade informando sobre o direito que todos têm de ser previamente consultados sobre desrespeito aos seus territórios. Contribuiu também a Defensoria do Estado, na pessoa da Defensora Ana Clara Ribeiro que contribuiu com a elaboração do Protocolo de Consulta Prévia, Livre e Informada que foi elaborado basicamente pela própria comunidade do Quilombo.
Energia renovável e direitos humanos
A demanda cada vez maior pela produção de energia renovável é uma necessidade urgente em um mundo em emergência climática que não pode mais arcar com os impactos dos combustíveis fósseis e que necessita de alternativas reais de descarbonização. Mas essa mudança pressupõe, necessariamente, respeito às populações mais vulnerabilizadas, especialmente comunidades tradicionais, como povos indígenas, quilombolas e comunidades pesqueiras que sempre foram as guardiãs dos recursos naturais, do meio ambiente e da preservação da vida.
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Como afirmou um relatório recente da Convenção das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, “mudar para uma economia de baixo carbono pode criar empregos e oportunidades, mas deve ocorrer de forma econômica e socialmente justa”. Esse é o principal ponto do conceito de transição energética justa. “A energia eólica é uma das alternativas disponíveis para a necessária e urgente mudança da matriz energética fóssil para a renovável. No entanto, para que a energia seja verdadeiramente ‘limpa e barata’, é preciso respeitar as comunidades locais. Os empreendimentos ditos sustentáveis não podem cometer as mesmas violações de direitos humanos que ocorreram na Usina Hidrelétrica de Belo Monte (PA), na Pequena Central Hidrelétrica Capão Grande (PR) e que constatamos em Araripe”, afirma Júlia Neiva, coordenadora do programa Defesa dos Direitos Socioambientais da Conectas. “É evidente que a produção de energia limpa deve ser fomentada, que o Brasil precisa descarbonizar sua matriz energética, mas não em detrimento das populações locais e de seus direitos”, finaliza.
Kariri narram resistências
Os indígenas Kariri, que já conquistaram a demarcação de suas terras na Serra da Mata Grande, município de Queimada Nova, também são sinônimos de resistência. Eles receberam a visita de representantes da empresa ainda em 2002. “Eles chegaram com uma conversa bonita, dizendo que todos ali iriam ficar ricos, que ninguém mais ia andar de pé, só de carro ou moto, que todos seriam empregados. E eu, mesmo sendo fraco de recurso, mas sendo rico da graça de Deus já tá bom, não acreditei naquela conversa”, narrou Raimundo Kariri, liderança da região.
De acordo com a Cacique Francisca Kariri, a empresa havia informado que projeto passaria por dentro do território, mas foi questionada pela comunidade sobre a falta de consulta prévia. “A gente já sabia que tem que existir e não aceitamos fazer nenhum negócio com eles”, afirmou. Segundo ela, até o momento, as torres estão fora da área, mas pode mudar já está previsto a instalação de um parque de energia solar. “Por enquanto eles suspenderam, não sabemos se voltarão”, diz e garante que a ideia é continuar a resistência.
Ali também, o Comunicador Social Nilson José dos Santos, quilombola, atua como contratado pela empresa responsável pela consultoria na região. Ele só foi indicado devido à pressão das comunidades, que reivindicam que dentro do Plano Básico Ambiental houvesse contratações de pessoas que conheçam os territórios, que já vivenciam o dia a dia das comunidades e conhecem seus costumes. “Foi uma conquista nossa que espero ser replicada nos demais parques”, diz Nilson que é considerado na região, uma voz que faz a diferença na defesa das populações atingidas.
Salvaguardas Socioambientais para Energias Renováveis
As violações praticadas pelas empresas que trabalham com a transição energética no Nordeste se repetem nos Estados. Para enfrentá-las, um grupo de trabalho formado por entidades da sociedade civil organizada, atingidos pelos projetos, pesquisadores, instituições públicas de ensino e jurídicas, elaboraram um documento, chamado Salvaguardas Socioambientais, com diretrizes para salvaguardar vidas humanos, ecossistemas, paisagens e atividades já existentes nos territórios impactados.
Identificaram vários desequilíbrios contratuais, entre eles, perda de autonomia de vontade quando da assinatura do contrato, limitação do usufruto da terra pelos proprietários, perda essa que ameaça a soberania hídrica e alimentar e o pior, o arrendamento da terra leva o arrendatário a perder a aposentadoria especial rural, informação que as empresas escondem dos atingidos.
No documento é cobrado que seja cumprido a função social da terra com prioridade para o uso para produção de alimentos de forma sustentável, conservando a biodiversidade e a garantia do direito humano à terra, ao trabalho e a moradia rural e que seja respeitado a autonomia das comunidades camponesas, indígenas e tradicionais sobre a gestão do uso da terra, incluindo os recursos energéticos existentes nela e respeitando suas formas específicas de organização.
Reportagem: Tânia Martins | Edição: Luan Matheus Santana | Com informações de Conectas