Publicado originalmente em O Estado do Piauí. Para acessar, clique aqui.
Antes mesmo que se desse conta, José* já estava no chão. Uma batida na lateral da sua moto, enquanto entregava comida por aplicativo, fez com que ele precisasse ser levado às pressas para o hospital. Por conta do acidente, foram quase cinco meses sem trabalhar, em decorrência de uma cirurgia no tornozelo. Sem trabalho há quase dois anos, as plataformas de delivery eram a única forma de driblar o desemprego. O acidente revelou ainda a falta de direitos. Para completar, por não concluir a entrega do pedido no dia do acidente, José ganhou uma restrição que o impediu de voltar a usar aquela plataforma.
Em Teresina, há mais de quinze plataformas para comércio de bebidas e comidas que realizam serviços de entrega na cidade. Recuperado e com as contas batendo na porta, o homem voltou para as plataformas de entrega. “Só aguentei fazer dois meses de entregas, meu tornozelo passou a inchar e inflamar”, relata o entregador à reportagem. José não foi atrás de indenização. “Seria muita burocracia, desisti antes mesmo de começar”, explica. “Entrar numa briga judicial com essas empresas é perder tempo e dinheiro”, argumenta. “Tenho sorte de não ter morrido”.
José está entre os quase 10 mil entregadores que, segundo a Associação dos Entregadores por Aplicativos e Deliverys do Piauí, trabalham por aplicativo no estado. A grande maioria se concentra em Teresina, onde o número de restaurantes e lanchonetes é superior ao dos demais municípios.
O presidente da Associação, Júlio César de Sousa, explica que para contabilizar o número de entregadores na cidade, seria necessária uma pesquisa que pudesse averiguar o cadastro ativo nas empresas atuantes no estado. Desistências, novos cadastros e entregadores ligados a mais de uma plataforma dificultam um levantamento preciso sobre a categoria, explica Júlio.
Desde 2010, quando chegaram as primeiras plataformas de entrega no país, os serviços concentravam-se no Sul e Centro-Oeste. No Piauí os restaurantes e estabelecimentos, de grandes filiais a pequenos negócios alimentícios, começaram a migrar massivamente para as plataformas a partir de 2017. Durante a pandemia, frente a uma grande quantidade de pessoas recentemente desempregadas, a informalidade absorveu um número expressivo de trabalhadores – no segundo semestre de 2020, a taxa de desemprego atingiu o recorde histórico no Piauí. Conforme estima a Associação dos Entregadores, de 2020 a 2022, o número de entregadores aumentou mais de 40%.
Ao passo que o número de trabalhadores crescia, as reivindicações também. Aumento das taxas mínimas por quilômetro, fim de bloqueios indevidos – como os sofridos por José no dia do seu acidente -, auxílios ou licenças de saúde e acidente começaram a mobilizar o movimento dos entregadores de aplicativo. Manifestações e paralisações (como o movimento #brequedosapps) nos últimos anos têm dado o tom de insatisfação dos trabalhadores com as plataformas. “São poucos os trabalhadores que pilotam menos de oito horas por dia, debaixo de calor, chuva e insegurança”, explica Derick Marçal, entregador em Teresina. “Sem direitos, ou qualquer estabilidade, estamos vulneráveis”, complementa.
A preocupação dos entregadores não é à toa. Um levantamento feito pela reportagem, com base em dados solicitados ao Hospital de Urgência de Teresina (HUT), maior centro hospitalar de urgência e emergência pública do estado, mostrou que mais de 80% dos atendimentos de vítimas de acidentes de trânsito, nos últimos cinco anos, envolviam motociclistas. Nas ruas, durante a maior parte do dia, os entregadores sentem que a insegurança no trânsito coloca a categoria à mercê desses acidentes. “O trânsito é um dos maiores vilões para os entregadores”, destaca Júlio César. “Multas não servem de nada depois que estamos no chão e acidentados”, segue dizendo. “É preciso ações de educação de trânsito e vias seguras para motociclistas”.
Em caso de acidente, o presidente da Associação destaca o baixo ou inexistente suporte das plataformas. Em dezembro de 2022, no auge da CPI dos Aplicativos da Câmara Municipal de São Paulo, o iFood havia declarado que só considera “mortes em trabalho” quando o colaborador estiver no meio de uma rota de entrega. Caso o entregador esteja esperando um pedido ou a caminho da solicitação, a fatalidade é considerada “morte de trânsito”. Com essa classificação, a empresa alega que não há razões para indenizações pela seguradora contratada pela empresa.
Para tentar obter dados mais específicos sobre a condição dos entregadores, a Associação dos Entregadores solicitou à Secretaria de Segurança Pública (SSP-PI) pesquisas e investigações que possam detalhar o quantitativo da categoria e dados mais específicos sobre acidentes e criminalidade cometida contra os trabalhadores. Não é a primeira vez que os entregadores recorrem ao órgão. Desde 2018, questões relacionadas à insegurança nas ruas e à violência preocupam os trabalhadores.
No começo deste ano, no dia 5, um grupo de entregadores realizou um protesto em frente ao Palácio de Karnak, reivindicando políticas públicas de segurança e justiça pela morte do entregador Antônio Filho, de 40 anos. O homem foi morto a tiros, em Timon, enquanto realizava uma entrega na cidade vizinha. “Não é o primeiro entregador, não é o segundo e vão existir mais mortes enquanto não for construída uma política de segurança pública voltada direto para os trabalhadores por aplicativos”, desabafa Júlio.
De acordo com a Associação dos Entregadores, no dia da manifestação em frente ao Karnak, foi entregue à SSP-PI uma relação com os pontos de maior risco para entregadores. Ao todo, quase 20 bairros, em diferentes zonas da cidade, foram listados pela categoria com sugestão de reforço policial. “A vida dos trabalhadores de aplicativo importa”, destaca Júlio. “Somos uma categoria que existe e não pode ficar invisibilizada de qualquer direito que nos contemple”, finaliza.
*Nome fictício usado para preservar a fonte
Esta reportagem integra a série especial TRÁFEGO, sobre acidentes de trânsito e o impacto social e econômico de suas consequências.
Textos: Vitória Pilar
Edição: Luana Sena
Revisão: Laís Romero
Direção de arte: Aline Santiago