Moralidade homoerótica na Grécia Antiga

Publicado originalmente em Jornal da UFRGS. Para acessar, clique aqui.

Artigo | Isaias Maraschin Pavan, licenciando em História, reflete sobre os parâmetros que determinavam o valor de uma conduta erótica entre os gregos do período Clássico

*Por Isaias Maraschin Pavan
*Ilustração: Maria Eduarda Pacheco Fernandes/ Programa de Extensão Histórias e Práticas Artísticas, DAV-IA/UFRGS

Se comparado às outras áreas de estudos clássicos, como economia, política ou filosofia, o campo de estudos da sexualidade grega só encontrou espaço para ser debatido há muito pouco tempo, numa trajetória marcada por silenciamentos e preconceitos. A fim de contribuir para a expansão dessa temática relativamente recente, pretendi, em meu TCC, analisar quais eram os protocolos morais a respeito do homoerotismo ateniense contidos no discurso forense Contra Timarco, escrito por Ésquines no século IV a.C.

Por “protocolos morais”, me refiro ao conjunto de normativas que delimitavam, na relação entre homens, o que era permitido ou proibido por lei, o que era nobre, aclamado ou repudiado, e que por fim convergia para a formação de um tipo ideal de relação amorosa, tomada como parâmetro, no meio social, para julgar o valor de um cidadão e de suas paixões. A acusação jurídica de Ésquines se configura como uma fonte única para a análise do homoerotismo grego: é a única fonte a que temos acesso, em todo o corpo de produções literárias gregas, que aborda a condenação de um cidadão, perante a lei, por sua conduta homoerótica.

Para investigar tal fonte, norteei minha pesquisa nos conceitos de Construcionismo Social e Falocentrismo. Como o nome indica, o construcionismo social é uma abordagem que ressalta o caráter sociocultural e linguístico de elementos culturais que são absorvidos e reproduzidos como naturais, imanentes e imutáveis pelos sujeitos. Com efeito, é comum que os estudos sobre sexualidade grega se baseiem nas terminologias modernas de classificação sexual, tais como “heterossexual”, “homossexual” e “bissexual”. Ao empregá-los, evoca-se, entretanto, também toda a carga cultural na qual esses conceitos foram produzidos, transportando-os a uma sociedade que classificava suas pulsões sexuais a partir de outros elementos. Indicativo disso é o fato de que, na Grécia Clássica, não havia um termo sequer que correspondesse a hétero ou homossexual. É que, para os gregos, diferentemente da concepção moderna, a natureza do desejo sexual era a mesma, independendo do sujeito a quem se dirigia e, portanto, não engendrava categorias específicas.

A terminologia sexual moderna, gerada a partir da medicina psiquiátrica do séc. XIX, é incapaz de entender as dinâmicas sexuais do universo grego, e daí que se tenha escolhido descartar os termos “heterossexual” e “homossexual”, optando pelo termo substituto “homoerótico” e suas variações, que embora resolva apenas parcialmente os impasses terminológicos, ajuda a posicionar a pesquisa desenvolvida nas discussões do construcionismo social.

Muito mais frutífero, nos pareceu, era compreender a sexualidade grega a partir de seus próprios termos e valores; para tanto, exploramos o conceito de falocentrismo.

O símbolo do falo, na sociedade grega, representava a dominância do homem e do ideal de masculinidade em todas as esferas da vida – como define Eva Keuls em seu livro O Reino do Falo, trata-se de “uma reivindicação bem-sucedida de uma elite masculina para um poder geral, apoiada na ostentação do falo menos como um órgão de união ou prazer mútuo do que num tipo de arma: uma lança ou porrete de guerra, e um cetro de soberania”.

Em uma sociedade baseada em protocolos falocêntricos, as relações eróticas, independentemente do gênero dos sujeitos envolvidos, se baseavam numa dicotomia de dominação e dominado, superior e inferior. A pederastia grega se baseava nessas mesmas assimetrias. De um lado, um homem mais velho, rico e experiente, que já havia participado do serviço militar obrigatório e ostentava seu status de cidadão de forma competitiva nas arenas políticas da pólis; sinônimo de virilidade, o erastés (“amante”) se encaixava no perfil de hoplita, que resume na figura do guerreiro um ideal de masculinidade buscado pelos cidadãos. Suas relações eróticas deviam espelhar tal dominação, conferindo a ele sempre o papel de insertor.

Na outra esfera encontra-se o erômenos (“amado”), ainda em idade tenra (entre doze e catorze anos), e dele se espera o contrário do erastés; apesar de latente, sua virilidade não desabrochou, e cabe a ele ser dominado pelo homem mais velho. Se desenvolve um complexo jogo de conquista, em que o amado deve recusar as investidas do amante, de forma a demonstrar sua insatisfação com o papel de passividade – isso também se verificará no âmbito sexual: é esperado que apenas o amante obtenha prazer na relação sexual. Admitir prazer na posição de passividade era conformar-se com uma posição não masculina, encaixando-se na figura social do kínaidos (“lascivo”, “promíscuo”), contrário ao hoplita.

É por este motivo que Timarco é acusado por Ésquines: já em idade adulta, teria se envolvido com outros homens na posição passiva, angariando dinheiro dessas relações. Tal atitude contrariava uma lei composta por Sólon que determinava que um homem não poderia ocupar um cargo público caso tivesse se prostituído. Tal lei tem sua motivação nos critérios do falocentrismo, em que a cidadania era um atestado de virilidade do homem livre e capaz de exercer sua dominação sobre outros nos mais diversos âmbitos.

Ao conformar-se com a posição passiva, Timarco foi acusado de ter conduzido sua vida de forma efeminada. Isso porque a superioridade masculina era construída em constante contraste com a inferioridade feminina, relegando à mulher os mesmos atributos do kínaidos: o descontrole das pulsões corporais, a falta das virtudes que só podem existir na virilidade e a conformação com o papel passivo nas relações sexuais. Assim, pude neste trabalho refletir sobre os parâmetros que determinam o valor de uma conduta erótica e a relação de tais parâmetros com a formação de uma sociedade falocêntrica.


Isaias Maraschin Pavan é graduando no curso de História – Licenciatura.

O trabalho de conclusão de curso que deu origem a este artigo foi orientado por Anderson Zalewski Vargas.

Compartilhe:

Share on whatsapp
Share on twitter
Share on facebook
Share on email
Share on linkedin
Share on telegram
Share on google
Language »
Fonte
Contraste