Cobertura imprecisa de dados inéditos do IBGE sobre número de templos religiosos no país gera desinformação

Publicado originalmente em Coletivo Bereia por Gabriella Vicente e João Pedro Capobianco. Para acessar, clique aqui.

Os principais veículos de comunicação no Brasil repercutiram dados do Censo 2022, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e apresentaram uma análise comparativa entre a quantidade de templos religiosos e instituições de ensino e de saúde, no início de fevereiro.

As matérias jornalísticas enfocaram o número maior de estabelecimentos religiosos em relação à soma dos estabelecimentos de ensino e de saúde, e apresentaram outros aspectos da pesquisa de forma secundária. A abordagem ganhou repercussão política nacional, em mídias mais à direita e à esquerda, assim como em portais regionais, que aplicaram recortes da informação difundida.

Figuras públicas e ativas nas mídias sociais também sustentaram a mesma abordagem dos dados e chegaram a questionar a secularidade e colocar a laicidade do Estado brasileiro em questão. Em contrapartida, pesquisadores da religião apontaram inconsistências nesta interpretação dos dados.  

Censo 2022: dados e informações divulgados pelo IBGE 

O IBGE divulgou, pela primeira vez, as coordenadas geográficas das espécies de endereços do país, coletadas durante o Censo 2022. Os dados foram detalhados por município e cada espécie corresponde a uma finalidade do endereço. 

Imagem: reprodução do site do IBGE

Ao todo, foram catalogadas oito espécies de endereço: domicílio particular (90,6 milhões), domicílio coletivo (104,5 mil), estabelecimento agropecuário (4,05 milhões), estabelecimento de ensino (264,4 mil), estabelecimento de saúde (247,5 mil), estabelecimento de outras finalidades (11,7 milhões), edificação em construção (3,5 milhões) e estabelecimento religioso (579,8 mil).

Os dados coletados e estruturados pelo IBGE integrarão o Cadastro Nacional de Endereços para Fins Estatísticos (CNEFE), a base de endereços usada no Censo Demográfico, na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua, na Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) e na Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde (PNDS).

As informações foram publicadas pela Agência de Notícias IBGE,  em 2 de fevereiro passado, que divulgou, em matéria jornalística, uma tabela com a distribuição das espécies de endereços por estados e os endereços eletrônicos da Plataforma Geográfica Interativa (PGI) e do panorama do Censo 2022 para consulta dos dados.

Cobertura da imprensa e visão de figuras públicas

Após a divulgação oficial pelo IBGE, diversos veículos da mídia repercutiram os dados, apontando, principalmente em manchetes, a diferença entre o número de estabelecimentos religiosos e o número de estabelecimentos de educação e de saúde.

O jornal Folha de S. Paulo veiculou, já na manhã de 2 de fevereiro, a manchete “Brasil tem mais espaços religiosos do que de educação e saúde juntos, aponta Censo”. O portal G1, por sua vez, publicou: “Brasil tem mais templos religiosos do que hospitais e escolas juntos; Região Norte lidera com 459 para cada 100 mil habitantes”.

Imagem: reprodução Folha de São Paulo

Imagem: reprodução G1

Foi assim, também, com a Revista Exame (“Censo 2022: Brasil tem mais igrejas e templos do que escolas e hospitais somados”), com o portal UOL (“Censo: Brasil tem mais igrejas que soma de escolas e hospitais”) e diversos outros sites. A Agência Brasil, que integra o sistema público de comunicações, também optou por destacar a comparação: “Brasil tem mais estabelecimentos religiosos que escolas e hospitais”.

Imagem: reprodução Exame

Imagem: reprodução UOL

Alguns intelectuais e pensadores brasileiros divulgaram os dados nos mesmos termos, sempre comparando o número de estabelecimentos seculares e religiosos. Em alguns casos, as publicações, em mídias sociais, adotaram tom crítico à configuração de endereços. Em seu perfil no X, o professor e pesquisador do Pietro Dell’ova associa os dados à “multiplicação de stalinistas, bolsonaristas, miseráveis, moribundos, etc.”. A doutora em literatura em língua inglesa e professora da UFC (Universidade Federal do Ceará) Lola Aronovich compartilhou, também, no X, a notícia com o comentário “sinal de atraso”.

Imagem: reprodução X (antigo Twitter)

Imagem: reprodução X (antigo Twitter)

Já a antropóloga Lilia Schwarcz, em seu perfil no Instagram, teceu comentários sobre o dados e comparou o cenário brasileiro com o da Europa ocidental: “Tais dados ajudam a demonstrar como, na prática, como o Brasil, apesar de ser formalmente um estado secular, não é ainda um país pouco secularizado quando comparado a outros, como na Europa ocidental”, escreveu.

Críticas à cobertura enviesada

O teólogo, mestre em filosofia e em religião e sociedade e diretor de programas no Instituto de Estudos da Religião (ISER) Ronilso Pacheco questionou, em seu perfil no X/Twitter, a cobertura dos dados pela imprensa: O Reino Unido tem mais templos que escola e hospitais. A França tem mais igrejas que escolas. Porque esse dado básico está sendo noticiado como surpreendente?” indagou.

Imagem: reprodução X (antigo Twitter)

Em sua crítica à forma como a imprensa tratou os dados do IBGE, Pacheco reflete: “Analistas políticos e comentaristas passaram o dia comentando isso como se fosse razoável achar que para cada templo (não apenas de igreja) que se abre, uma escola e um hospital deixam de ser construídos ou perdem investimento, ou relevância. Além disso, claro, o reforço do estereótipo de que as igrejas crescem porque o estado é ausente. Mais uma vez, vitória da ideia elitista de que as pessoas na periferia só são crentes porque são pobres e não tem assistência do estado, não é mesmo?”.

Em entrevista ao Bereia, o pesquisador no Instituto de Estudos da Religião (ISER) e professor na Escola de Comunicação, Mídia e Informação da Fundação Getúlio Vargas (FGV ECMI) Matheus Pestana também criticou a forma como os dados foram explorados na mídia. “O número de pessoas que acessa um hospital, uma escola, tem interseções com o público que acessa os estabelecimentos religiosos, mas são coisas completamente distintas e incomparáveis. No meu entender, o equívoco está aí. É uma comparação que, para mim, não fez sentido nenhum, nenhum. São estabelecimentos de natureza distinta”, afirmou.

Pestana destaca a importância dos dados compilados pelo IBGE na construção de políticas públicas: “É importante entender que esses dados são bastante valiosos para o poder público no desenho de políticas públicas. São dados que vão delinear a ação do governo, em auxílio à população e à configuração urbana existente (…). Na maioria dos municípios, isso era um dado que não existia. Os dados são ótimos. É louvável a iniciativa do IBGE.”

Mas o pesquisador reforça que o entendimento dos dados “de forma alarmante” é equivocado: “Se tivermos 500 mil igrejas e 300 mil escolas, vamos construir mais 200 mil escolas para equiparar ao número de igrejas? Isso não faz sentido. Isso vai mudar alguma coisa? Efetivamente, não. A gente esquece que o público que vai para a escola também vai para a igreja; o público que vai para a igreja, frequenta hospital; só que em questão de volume, são coisas completamente distintas. Escolas, por exemplo, concentram algumas faixas etárias; igrejas contemplam todo o segmento da sociedade Enfim, não faz sentido”.

O pesquisador e professor também abordou a questão da laicidade, levantada por algumas figuras públicas nas mídias sociais. “Alguns comentaristas disseram que, apesar de o Brasil ser, formalmente, um Estado secular, quando a gente compara com outros países – e o exemplo, claro, vem do Norte global – é um país pouco secularizado porque tem muita igreja. Isso não faz sentido.”

Por fim, Pestana aborda as tendências recentes no que diz respeito ao confessionalismo na população brasileira. Em sua percepção, alguns comentaristas teriam conectado os dados do IBGE com o crescimento de grupos evangélicos no país, algo que não necessariamente seria verdadeiro. 

“Existem estudos que falam do crescimento dos estabelecimentos evangélicos, mas isso é outra coisa, não está sendo pautado [pelos dados recém-divulgados pelo IBGE]. Essa repercussão é bastante curiosa e mostra, de certa forma, um ataque da mídia ao campo religioso e um não entendimento do brasileiro enquanto um povo com uma dinâmica religiosa que a gente tem. Na verdade, isso não tem problema nenhum. Religião é cultura também e é algo importante de ser considerado”, afirma Matheus Pestana

*** 

Após avaliar a cobertura da imprensa e a abordagem amplamente difundida nas mídias sociais sobre os dados do IBGE segmentados por espécies de endereço, Bereia classifica o viés adotado como impreciso. De maneira geral, as notícias e declarações sobre o tema apresentam dados verdadeiros, mas não consideram diferentes perspectivas e não contextualizam o fenômeno religioso no Brasil de modo a justificar a abordagem adotada.

O IBGE não fornece conclusões de qualquer natureza ou mesmo indícios de que os dados expliquem o cenário da religião no Brasil. A abordagem amplamente difundida nos meios digitais de comunicação pode levar o público a julgamentos errôneos sobre determinados grupos, instituições, organizações, associações ou movimentos sociais e constituir fonte de intolerância.

Referências de checagem:

Agência de notícias IBGE. https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/39065-ibge-divulga-pela-primeira-vez-as-coordenadas-geograficas-dos-enderecos-do-pais Acesso em: 6 fev 2024

IBGE.

https://censo2022.ibge.gov.br/apps/pgi/#/home Acesso em: 6 fev 2024

https://censo2022.ibge.gov.br/panorama/ Acesso em 6 fev 2024

X.

https://twitter.com/PietroDellova/status/1753549888506286192 Acesso em: 8 fev 2024

https://twitter.com/lolaescreva/status/1753579851917701239 Acesso em: 8 fev 2024

https://twitter.com/ronilso_pacheco/status/1753537529607819547?t=z75R2aKVWa4SE2p1q2Pt5A&s=19 Acesso em: 7 fev 2024

G1. https://g1.globo.com/economia/censo/noticia/2024/02/02/brasil-tem-mais-templos-religiosos-do-que-hospitais-e-escolas-juntos-regiao-norte-lidera-com-459-para-cada-100-mil-habitantes.ghtml. Acesso em: 7 fev 2024

Exame. https://exame.com/brasil/censo-2022-brasil-tem-mais-igrejas-e-templos-do-que-escolas-e-hospitais-somados/ Acesso em: 7 fev 2024

Agência Brasil. https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2024-02/brasil-tem-mais-estabelecimentos-religiosos-que-escolas-e-hospitais Acesso em: 7 fev 2024

UOL. https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/ansa/2024/02/02/censo-brasil-tem-mais-igrejas-que-soma-de-escolas-e-hospitais.htm Acesso em: 7 fev 2024

Pleno News. https://pleno.news/brasil/ibge-brasil-tem-mais-templos-religiosos-que-escolas-e-hospitais.html Acesso em: 8 fev 2024

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Foto de capa: Eric Gaba/Creative Commons

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