Publicado originalmente em Coletivo Bereia por Lázaro Campos. Para acessar, clique aqui.
Circulou em matérias jornalísticas na última semana a declaração do Ministro da Educação Milton Ribeiro, em sua participação na Aula Magna da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), em 26 de abril. No evento, transmitido ao vivo pelo canal da instituição no Youtube, o ministro disse que crianças de 9 e 10 anos não sabem ler, mas sabem colocar camisinhas.
“Ludmila, professora Ludmila [referindo-se a Ludmila Oliveira, reitora da Universidade Federal do Semi-Árido (Unifersa), que estava presente no evento], crianças com 9 anos, 10 anos, não sabem ler… Sabe tudo, – com respeito a todas essas senhoras presentes – sabe até colocar uma camisinha, mas não sabe que ‘B’ mais ‘A’ é ‘BA’. Estava na hora de dar um basta nisso”, afirmou o ministro a partir de 32 minutos e 50 segundos.
Em seguida, Ribeiro disse que foi levado ao Tribunal de Contas da União (TCU) por ter retirado o item de questões de gênero do edital do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) para crianças de 6 a 10 anos. “Onde já se viu eu começar a discutir esses assuntos? Não que eu seja contra, respeito a orientação de todos, mas acho que não temos o direito de violar a inocência de uma criança nessa idade, de 6 a 10 anos. (…) Não pode ser assim. As pessoas têm liberdade para escolher o que querem, mas nesse ponto sou bem radical. Eu acho que existe idade para tudo. Pago esse preço, mas quero dar minha contribuição com o futuro do Brasil”, disse o ministro, que ainda falou ter recebido apoio do Tribunal.
O MEC no Tribunal de Contas da União
Ao mencionar que o MEC foi levado ao TCU, o ministro fez referência à ação da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) contra o MEC. O assunto do processo era, de acordo com TCU: “a inscrição e avaliação de obras didáticas, literárias e pedagógicas para o Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD)”. O PNLD cumpre a função de comprar e distribuir livros didáticos para educação básica (até o ensino médio) e possui critérios para participação das obras no programa.
A Undime questionou, já em abril de 2020, os critérios do edital para 2022 por entender que havia dificuldade compatibilizar o texto com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), documento que orienta os currículos de escolas públicas e privadas no Brasil. Outras entidades apresentaram críticas ao PNLD 2022 por conta da sua relação com a Política Nacional de Alfabetização (PNA), lançada pelo Governo Bolsonaro em 2019, que enfatiza métodos fônicos para alfabetização, contrariando práticas construcionistas.
De fato, os ministros do Tribunal rejeitaram a ação da Undime a respeito do PNLD 2022. No entanto, como a própria página do edital mostra, o documento diz respeito à Educação Infantil (4 e 5 anos), não aos anos iniciais do Ensino Fundamental (6 a 10 anos), como Ribeiro diz em seu post no Facebook.
Em suas redes, o ministro comemorou a vitória se referindo ao Ensino Infantil. Pelo sistema de busca do TCU não foi encontrado outro processo relacionado ao PNLD 2023, o programa que abrange conteúdos dos anos iniciais do Ensino Fundamental e que foi modificado pelo MEC em relação à versão anterior.
O que mudou no PNLD 2023
O Ministro faz referência em seu discurso na UFPB ao edital do PNLD 2023, direcionado aos anos iniciais do Ensino Fundamental, que promoveu mudanças em relação ao Programa de 2019. Essa última edição foi redigida no governo Michel Temer (PMDB) pelo ministro Rossieli Soares (atual secretário estadual de Educação do Estado de São Paulo).
O edital de 2019 tinha uma seção específica de avaliação com o título “Observância de princípios éticos e democráticos necessários à construção da cidadania, ao respeito à diversidade e ao convívio social republicano” (p. 29). Nele, eram excluídos livros que contém diversos estereótipos e preconceitos, entre eles, religioso, socioeconômico, racial, orientação sexual. Em outro tópico, o texto exclui explicitamente obras que tratam da temática de gênero de forma “sexista não igualitária, inclusive no que diz respeito à homo e transfobia” (p. 31).
Já o PNLD 2023 não fala em exclusão, mas em avaliação com uma seção específica nomeada “Observância aos princípios éticos necessários à construção da cidadania e ao convívio social republicano” (p. 37). Ficaram de fora, portanto, os termos “democráticos” e “respeito à diversidade”. Dentro dessa seção, o texto diz que as obras devem “representar a diversidade cultural, social, histórica e econômica do país nos textos, enfoques e exemplos utilizados nas obras, evidenciando a contribuição de diferentes povos na formação do Brasil e suas regiões” (p. 38). Além disso, a seção também diz que as obras devem “estar livre de preconceitos ou discriminações de qualquer ordem;” e “estar isenta de qualquer forma de promoção da violência ou da violação de direitos humanos” (p. 39).
A única outra menção à sexualidade que o PNLD 2019 faz é aquela em que diz seguir a Resolução 7/2010 da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação (CNE/CBE) no item “Observância de temas contemporâneos no conjunto dos conteúdos da obra” (p. 33). O PNLD 2023 também afirma observar a Resolução 7/2010.
Vale destacar que a Resolução 7/2010 fixa Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental anos. Consta no parágrafo 3º do artigo 16º: “Aos órgãos executivos dos sistemas de ensino compete a produção e a disseminação de materiais subsidiários ao trabalho docente, que contribuam para a eliminação de discriminações, racismo, sexismo, homofobia e outros preconceitos e que conduzam à adoção de comportamentos responsáveis e solidários em relação aos outros e ao meio ambiente” (p. 5).
É ao se referir a essas alterações que Ribeiro se diz contra “violar a inocência” de crianças de 6 a 10 anos. A mudança, na verdade, foi a retirada da menção explícita de uma série de preconceitos e discriminações que não deveriam existir em livros didáticos do anos iniciais do ensino fundamental, segundo documento de 2019. O documento 2023 apenas diz que as obras devem estar isentas de preconceitos e discriminações. Portanto, nada relacionado à sexualidade, como o ministro quer fazer crer, tema recorrente por políticos que disseminam desinformação por pânico moral, como tratado em diversas matérias do Coletivo Bereia.
Repercussão da mudança
A retirada desses termos repercutiu quando o edital foi publicado, em fevereiro de 2021. A deputada federal Tábata Amaral (PDT-SP) protocolou um Projeto de Decreto Legislativo que pede a suspensão de trechos do PNLD 2023. A crítica da parlamentar se concentrou na retirada dos termos “especial atenção para o compromisso educacional com a agenda da não-violência”, e a vedação de retratar “negativamente a imagem da mulher” (substituída por “promover positivamente a imagem dos brasileiros, homens e mulheres”). Tábata também criticou a retirada dos termos “respeito à diversidade” e “democráticos”.
O chefe do MEC respondeu em uma sequência de tweets, argumentando que o Programa não está fora da lei e segue a Base Nacional Comum Curricular (BNCC, que orienta os currículos de escolas privadas e públicas do país). A BNCC, argumentou ele, trata de racismo no 8º ano do Ensino Fundamental e da violência contra a mulher no 9º ano desta etapa.
Em resposta ao ministro, a assessoria da parlamentar afirmou que “os anos iniciais não são compostos apenas de português e matemática, conforme o ministro Milton Ribeiro afirmou. Nesta fase, os currículos já são ampliados, com as disciplinas de história, geografia e ciências. Ou seja, a criança já tem contato com conceitos como escravidão, culturas, descendências, diversidade, dentre outros”.
Claudia Costin, ex-secretária de municipal educação do Rio de Janeiro e especialista na área, comentou ao G1 o argumento do ministro. “Mas por que não pode falar sobre isso antes? Não tem nada na BNCC que permita obras com conteúdos que fomentem violência contra a mulher. Nós não temos que ter livros preconceituosos, isso seria motivo para rejeitar, como estava no edital de 2019?.
Já Augusto Buchweitz, cientista que contribuiu para o PNLD 2022 (de educação infantil) avalia que a mudança não terá efeitos práticos sobre as obras didáticas. “O PNLD, em primeiro lugar, observa a Constituição e a BNCC (Base Nacional Comum Curricular). Depois, vem outras leis complementares. Você não pode, à revelia da Constituição, ter um material que afronte minoria, que afronte idoso. Isso não vai acontecer.”
O que diz a BNCC sobre sexualidade
A criação de uma Base Nacional Comum Curricular está prevista na Constituição de 1988 e resultou de uma série de regulamentações da educação básica brasileira. Todo o processo de homologação e aprovação terminou em 2018. É a partir desse documento que secretarias estaduais e municipais e escolas privadas devem elaborar seus currículos. A Base prevê o ensino de temas de reprodução e sexualidade humana nos anos finais do ensino fundamental (11 a 15 anos).
“Pretende-se que os estudantes, ao terminarem o Ensino Fundamental, estejam aptos a compreender a organização e o funcionamento de seu corpo, assim como a interpretar as modificações físicas e emocionais que acompanham a adolescência e a reconhecer o impacto que elas podem ter na autoestima e na segurança de seu próprio corpo. É também fundamental que tenham condições de assumir o protagonismo na escolha de posicionamentos que representem autocuidado com seu corpo e respeito com o corpo do outro, na perspectiva do cuidado integral à saúde física, mental, sexual e reprodutiva.” (p. 323).
Fazem parte das habilidades previstas ao 8º ano do Ensino Fundamental conhecimento sobre mudanças da puberdade, métodos contraceptivos, doenças sexualmente transmissíveis e discussão das múltiplas dimensões da sexualidade humana (biológica, sociocultural, afetiva e ética). Todas descritas na página 345 do documento. No 9º ano, a habilidade EF09HI26 prevê “Discutir e analisar as causas da violência contra populações marginalizadas (negros, indígenas, mulheres, homossexuais, camponeses, pobres etc.) com vistas à tomada de consciência e à construção de uma cultura de paz, empatia e respeito às pessoas”. Essa habilidade foi mencionada pelo próprio ministro Milton Ribeiro ao rebater críticas ao PNLD 2023.
Situação da alfabetização no Brasil
O ministro acerta, no entanto, ao falar que a alfabetização do Brasil enfrenta dificuldades. Dados da Avaliação Nacional de Alfabetização de 2016 dão conta que metade dos alunos do 3º ano do Ensino Fundamental com 8 anos em escolas públicas não têm o conhecimento adequado em leitura e em matemática.
A última avaliação da alfabetização feita pelo Ministério da Educação (MEC) aconteceu no âmbito do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) em 2019. A prova, no entanto, analisou o desempenho dos alunos no 2º ano do Ensino Fundamental. Isso já inviabiliza uma comparação direta entre os dados das duas avaliações. Outra mudança foi nos níveis de desempenho. A ANA possuía quatro patamares do rendimento dos alunos na prova, o Saeb 2019 produziu oito níveis. Apesar dos resultados apontarem se os estados atingiram ou não a média brasileira, apenas os níveis 1, 2 e 8 foram detalhados da divulgação. Não ficou claro se a média está dentro, acima ou abaixo do desejável.
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Bereia conclui que a declaração do Ministro é enganosa. Em primeiro lugar porque a vitória do MEC no TCU diz respeito ao PNLD 2022 (educação infantil), e não a conteúdos ligados à sexualidade nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Além disso, as mudanças do PNLD 2023 também não retiram temas de sexualidade nos anos iniciais pois não são tratados nesta faixa escolar apenas mudam a redação a respeito de preconceito e descriminação nos livros didáticos. Vale lembrar que a BNCC prevê que temas de sexualidade sejam tratados nos anos finais do Ensino Fundamental. Por isso, apesar de ter se referido corretamente aos problemas que o país ainda enfrenta com a alfabetização de crianças com menos de dez anos, a menção do ministro a crianças de nove anos saberem usar camisinhas não tem base concreta, não tem fonte verificável. Todos estes elementos levam à conclusão de que Milton Ribeiro usou o tema da alfabetização apenas como recurso para fazer críticas ao processo de educação sexual que, na verdade, não é dirigido a esta faixa etária, com disseminação de desinformação por meio de pânico moral.
*Foto de Capa: Crédito: Marcelo Camargo/Agência Brasil (Reprodução Fotos Públicas)
Referências
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