Publicado originalmente em Jornal O Cidadão por Carolina Vaz e Danilo Castro. Para acessar, clique aqui.
Com informações de Agência Fiocruz
Na última semana, a Maré viveu um acontecimento histórico: tornou-se a primeira favela do Brasil a receber uma campanha de vacinação em massa contra a Covid-19. Essa força-tarefa que uniu governos federal e municipal, instituição de pesquisa e organização social tinha o objetivo de imunizar todos os moradores ainda não completamente imunizados a partir dos 18 anos de idade. De 29 de julho a 04 de agosto, receberam a primeira ou a segunda dose mais de 36 mil pessoas.
Primeira experiência em favela
A ação nomeada Vacina Maré foi a segunda iniciativa da prefeitura do Rio de Janeiro de vacinar a população adulta de um bairro inteiro: a primeira foi Paquetá, que tem 4.180 moradores. Na Maré, com cerca de 140 mil, a meta era chegar a 31 mil pessoas. Só foi possível pela parceria em diversos âmbitos: foi realizada por Ministério da Saúde, prefeitura do Rio, Fiocruz e Redes da Maré. Para a ação foi utilizada somente a vacina da Astrazeneca, com tecnologia desenvolvida pela Universidade de Oxford (Inglaterra) e produzida localmente pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), pois um dos objetivos é observar o quanto exatamente essa vacina pode diminuir as taxas de contaminação, internação e óbitos num grupo tão grande, no mesmo bairro. As dezenas de milhares de doses destinadas a essa ação estavam reservadas e não eram parte do estoque municipal.
A vacinação foi dividida, em seus dois primeiros dias, em faixas etárias. No primeiro dia, quinta-feira (29 de julho), podiam se vacinar pessoas entre 25 e 33 anos, e uma delas foi Samira Thayná, de 26 anos. Moradora da Roquette Pinto, ela e a irmã gêmea Samara foram se vacinar no CMS Américo Veloso, na favela do Piscinão de Ramos. Elas estavam seguindo o calendário da prefeitura, segundo o qual as irmãs só poderiam tomar a primeira dose na segunda semana de agosto, mas puderam adiantar por causa da campanha. O receio de ter reação da vacina não impediu Samira: “Muita gente deixa de tomar por causa das reações e eu tive um pouco de medo porque tenho que cuidar do bebê”. Por estar amamentando, ela queria ainda mais se vacinar e passar os anticorpos para o bebê. Para ela, a vacina é o caminho para deter vários fatores que tornam a Maré vulnerável ao vírus: “Eu acho muito importante vacinar na comunidade porque, falando de onde eu moro, muita gente ficou doente. As casas são muito coladas, muita gente perto, e aglomeração na favela é muito difícil de controlar. Aqui em sábado e domingo fica muito cheio… então é importante para a comunidade”.
A oportunidade de se vacinar também foi uma surpresa para o balconista Ranielson Silva, de 25 anos, que esperava receber a primeira dose em 09 de agosto mas, naquela quinta-feira, recebeu a mensagem de uma amiga avisando que estava acontecendo a campanha e foi direto do trabalho para o postinho. Morador do Piscinão, ele que trabalha presencialmente e não pegou Covid estava na expectativa da imunização: “Eu estava esperando por esse momento, e espero que dê certo para todo mundo!”. A movimentação também animou quem já viveu esse momento especial e observava de perto, como é o caso de Nivaldo João da Silva, o Godoy, comerciante do Piscinão que trabalha em frente ao CMS há cerca de 15 anos: “Eu acho muito importante, a vacina é muito importante para tentar diminuir, e acabar com esse momento difícil que a gente está passando. Eu mesmo, particularmente, perdi vários amigos, parentes. Então eu já me vacinei, minha família toda já vacinou… O meu filho que é mais novo, de 25 anos, hoje já se vacinou também!”, contou, animado.
O primeiro dia de vacinação foi marcado por um evento de abertura na Clínica da Família Adib Jatene, na Vila do Pinheiro, contando com autoridades e responsáveis pela campanha como o secretário municipal de saúde Daniel Soranz e o assessor de Relações Institucionais da Fiocruz, Valcler Rangel. “Hoje é um dia especial para a Maré, para a ciência e para o poder público. Com essa pesquisa vamos produzir conhecimento para estar sempre à frente e entender o comportamento da doença na população”, afirmou Daniel Soranz.
Essa grande força-tarefa do Vacina Maré envolveu 500 profissionais de saúde da Prefeitura do Rio; 1.620 voluntários para diversas funções, inclusive pré-cadastro de moradores nos dias anteriores; e 145 pontos de vacinação, localizados em sete unidades de saúde (Clínicas da Família e Clínicas Multiprofissionais de Saúde), quatro associações de moradores, a Vila Olímpica e mais 17 escolas de todo o bairro. Uma das profissionais de saúde mobilizadas para a ação foi Viviane Arantes, técnica de enfermagem locada no Hospital Municipal Ronaldo Gazolla, em Acari. Ela também avaliou a ação como positiva e importante, inclusive por não ser restrita aos dias de semana, quando muitos trabalham: “É importante para a comunidade, que muitas das vezes não tem condições de ter acesso à vacina, com o mutirão pode chegar aqui e tomar. Quem não pode tomar durante a semana pode no final de semana”.
Expectativas superadas e a busca ativa
No segundo dia de vacinação, foram alvo pessoas de 18 a 24 anos, e nos demais dias todos acima de 18 anos. A campanha estava prevista para durar até o domingo, dia 1º, quando já foi superada a meta das 31 mil doses, contabilizando um total de 33.774. Porém, decidiu-se ampliar a campanha até a quarta-feira, contando não apenas com os postos de vacinação mas com o método da busca ativa: procurando diretamente pessoas cadastradas nos postos para serem vacinadas. Outra pessoa que se fez presente durante a campanha foi a presidente da Fiocruz Nísia Trindade, que destacou as parcerias que possibilitaram uma campanha de tamanha dimensão: “Essa mobilização na Maré é exemplar. Ela demonstra a importância da associação entre a academia, os movimentos sociais e a gestão do [Sistema Único de Saúde] SUS, ressaltando que deve existir uma conjunção entre a mobilização da sociedade e as políticas públicas”.
Os próximos passos: pesquisa em curso
A vacinação em massa foi finalizada, porém agora se inicia uma nova etapa do Vacina Maré: uma pesquisa que vai monitorar os efeitos da vacinação. O estudo, liderado pela Fiocruz, vai acompanhar pelos próximos seis meses duas mil famílias da Maré (cerca de 8 mil pessoas). Assim será possível avaliar a efetividade da vacina, considerando fatores como idade; sexo segundo o cadastro da pessoa; e tipo de vacina que foi ministrada. Havendo infecção, será analisado o tempo em que ocorreu após a vacinação, assim como se é caso grave, e também registro de óbitos. Segundo o coordenador da pesquisa, Fernando Bozza, um dos objetivos é entender se a imunização dos adultos, em grande quantidade, foi capaz de proteger também crianças e adolescentes. Para o coordenador de atenção primária da AP 3.1 Thiago Wendel, a pesquisa é capaz de trazer respostas para todo o cenário nacional e ser reproduzida em outras favelas. Acompanhando a campanha desde o primeiro dia, ele demonstrou orgulho: “É uma coisa incrível a gente participar de uma ação como essa, uma ação que está se desdobrando já há muito tempo. A gente quer muito que depois que todo mundo for vacinado a gente possa avaliar os dados da Maré e falar: ‘Olha, tem 15 dias, tem 20 dias que não morreu ninguém de Covid na Maré’. Isso vai ser incrível!”.
Segundo o Painel Rio COVID-19, a Maré já teve 6.921 casos confirmados de Coronavírus, e 329 óbitos. Agora, os adultos que ainda não se vacinaram e adolescentes da Maré devem acompanhar o calendário municipal para tomar a primeira dose da vacina contra a Covid. Os cuidados, como uso de máscara e limpeza constante das mãos, devem ser mantidos, assim como devem ser evitadas aglomerações, especialmente em locais fechados.