Publicado originalmente em ObjETHOS. Para acessar, clique aqui.
Jéferson Silveira Dantas
Professor da UFSC e pesquisador do objETHOS
O primeiro e o segundo turno das eleições presidenciais no Brasil revelaram uma profunda e contundente cisão: aquela pautada pela barbárie e a outra pela civilização. Mais de 58 milhões de brasileiros no segundo turno optaram pelo inominável. Um ser perverso e sem empatia, que em seu governo contribuiu, decisivamente, para o empobrecimento e a miséria de dezenas de milhões de brasileiros, ampliando a concentração de renda e a já histórica desigualdade social em todas as regiões do país, sobretudo no Norte e Nordeste. Sem falar das centenas de milhares de mortes pela Covid-19 que poderiam ter sido evitadas, pois o inominável simplesmente ignorou a dor alheia por meio do negacionismo, do incentivo à antivacina e à anticiência. Um governo de perfil fascistizante, de abismos, errático, de incompetências deliberadas, corrupção generalizada, de disseminação de desinformação ou mentira em larga escala, enfim, de desprezo à vida humana. O sectarismo fanático que sustentou o governo do inominável se concentra na alta burguesia, mas também na classe trabalhadora precarizada. O que poderia supor uma contradição – entre capital e trabalho – está perversamente mediada pelos aparelhos privados de hegemonia (mídias tradicionais, redes sociais e igrejas neopentecostais vinculadas à ‘teologia da prosperidade’), sintomas de um tempo em que a manipulação da memória, do conhecimento histórico e as fake news em larga escala servem de balizas para subjugar uma imensa parcela da população com parco ou quase nulo capital econômico, simbólico e cultural para se contrapor a um projeto de extermínio.
O grande capital caminhou de braços dados com a política econômica do governo do inominável. Nunca se teve tantos bilionários no Brasil; parte da classe média empreendedora permeada pela racionalidade meritocrática, que se julga proprietária, também sofreu as reveses do empobrecimento e da falta de perspectivas. À juventude brasileira da classe trabalhadora foi ofertada uma escolarização pobre ou uma formação simples para o trabalho precário, uma maneira cruel de contenção desses/as jovens para o ingresso no ensino superior. Não por acaso, em recente pesquisa realizada pelo DataFolha, mais de 70% dos/as jovens declararam o desejo de irem embora do Brasil. Na divisão internacional do trabalho, estamos cada vez mais submetidos a meros exportadores de produtos primários, numa desindustrialização sem precedentes influenciadas pelo lavajatismo, que desmantelou grandes empresas do setor de infraestrutura. Ironicamente, Moro, que cometeu todas as atrocidades jurídicas quando era juiz, foi o senador mais votado no Paraná; outras excrescências do bolsonarismo (ex-ministros/as, sobretudo) também se elegeram para o parlamento nacional, numa demonstração evidente de que o ethos do/a brasileiro/a passa por grave crise de caráter.
A mídia hegemônica burguesa desde 2013 vem contribuindo para o cenário desastroso que temos no país. Além de ter apoiado o golpe de 2016, defendeu sem peias medidas de privatização no serviço público orientadas por organismos internacionais multilaterais, como o FMI, em 2017. As Organizações Globo, lavajista de primeira ordem, recentemente – numa espécie de mea culpa – produziu uma série de matérias em seu telejornal noturno defendendo preceitos constitucionais e serviços públicos essenciais. Um pouco tarde, diga-se de passagem.
A democracia que se expressa no Brasil, atualmente, é uma democracia sem direitos e de contrarreformas (trabalhista, previdenciária e educacional). Os dois projetos em disputa no Brasil eram insuficientes para a classe trabalhadora, mas um era mais nocivo e grotesco. A vitória de Lula pode representar uma ‘vitória de Pirro’, já que um parlamento ultraconservador, fisiológico, assentado na chantagem, no lobby sistemático, é um óbice para o governo do petista. Sem falar do recalque coletivo que vivemos, onde não é incomum encontrarmos defensores da ditadura militar e da tortura, do patriarcado, da masculinidade hegemônica ou da heteronormatividade, da violência sistemática contra mulheres (misoginia e feminicídio), pretas e pretos (racismo estrutural), e a comunidade LGBTQIAP+.
A epígrafe deste texto, de autoria de Lênin, já tem mais de um século, mas continua atual. A grande lição de Lênin é expor como, historicamente, o capital se metamorfoseia por meio de suas crises cíclicas para extrair de todas as formas taxas de lucro cada vez maiores por meio da exploração da classe trabalhadora, abrindo mão da democracia liberal e compactuando, sem pudores, com personas dantescas como é o caso do inominável. O slogan da campanha do capitão reformado do exército deveria ser “O mercado acima de tudo e de todos”!
Logo, esperançar, nos termos freireanos, não deve se pautar em uma consciência ingênua, pois a vitória do PT e de Lula não resolverão problemas sociais estruturais, tendo em vista que a ruptura com a gulodice do grande capital não era uma premissa das duas candidaturas. Todavia, a conjuntura nos pedia o fim de um governo caquistocrático e autoritário, permeado pelo que há de pior em termos de aparelhamento da máquina pública, considerando ainda os milhares de militares em diversos escalões do governo sem qualquer competência administrativa. O bolsonarismo continuará entranhado na sociedade brasileira como um tumor maligno. E ele tem de ser extirpado!
Nesse momento, em várias partes do país, há movimentos sociais, culturais e serviços públicos desenvolvendo atividades fundamentais, tais como redes de apoio para pessoas que estão passando fome, falta de abrigo e vestuário, e assistência médica e psicológica para os/as que são violentados/as diariamente, ou por serem mulheres (feminicídio) ou por serem pretos e pretas (racismo) ou por serem pobres (aporofobia), além dos crimes cometidos contra pessoas LGBTQIAP+.
Os bons não silenciaram, pois é isso que os governos autoritários desejam: o apassivamento social e o aniquilamento dos dissensos. A banalização do mal e a pulsão de morte que se operam no Brasil, além de denunciadas, necessitam ser problematizadas na vida cotidiana e em todos os espaços públicos. Há de se reconhecer que os micropoderes são formas de resistência se, estrategicamente, forem bem operacionalizadas. As relações pessoais e familiares estão atravessadas por ideologias, narrativas e referências teóricas e políticas. Assim, além de fundamentarmos nossos argumentos temos uma árdua luta contra sujeitos pautados pela racionalidade neoliberal, que creem cegamente no deus mercado, tratando as pessoas de seu convívio como meros competidores, inimigos, descartando-os caso não agregue valor ao seu network.
Por ora, uma parte do Brasil está em festa! Há de se comemorar! Aos poucos e sem ilusões, vamos reconstruindo o país!