Carlos Locatelli, Caetano Machado, Renatha Giordani – A judicialização da comunicação na campanha presidencial 2022

Publicado originalmente em Observatório da Comunicação Pública – OBCOMP. Para acessar, clique aqui.

Os pesquisadores Carlos Locatelli, Caetano Machado e Renatha Giordani apresentam dados sobre a judicialização da comunicação na campanha eleitoral de 2022 e apontam três novidades sobre a comunicação na campanha presidencial. 

É fato público e notório, nem precisa pesquisa acadêmica ou de opinião, que a comunicação e, mais precisamente, as disputas comunicativas estão no centro da eleição presidencial de 2022, especialmente as que se processam no e a partir do universo digital. Pouca novidade aqui, pois em eleições anteriores a tendência era visível.

Então, qual ou quais são as novidades em torno da comunicação nesta campanha presidencial? São três, ao nosso ver.

A primeira é o aumento exponencial de uma comunicação com as narrativas predominantemente falsas, mentirosas e estrategicamente desinformativas, que se tornaram a principal arma de campanha para seduzir o eleitor. Se esse é o jogo, do ponto de vista dos candidatos e suas coligações, tão importante quanto produzir uma comunicação persuasiva é neutralizar a dos concorrentes. Isso pode ocorrer por meio da própria comunicação, checando, questionando e respondendo em cada situação. A ação é relevante, mas também inócua em muitas situações, ainda mais porque o jogo é finito, o tempo da eleição é curto e os estragos cognitivos das mensagens falsas é imediato e, talvez, imensurável e irreversível. Parece ser de pouca valia ter razão em um momento em que a racionalidade se tornou irrelevante. É preciso neutralizar a ação do outro por qualquer meio.

Eis aqui a segunda novidade: A intensa judicialização da comunicação e, por consequência, assumindo a premissa de que a comunicação é a atual protagonista da política, a judicialização da política. Levantamento que realizamos demonstra que a comunicação é o principal ponto das controvérsias que chegaram ao TSE no primeiro turno das eleições de 2022, conforme se pontua a seguir:

  • De um total de 819 ações impetradas no TSE, 345 (42,1%) têm a comunicação como questão central.
  • As ações que envolvem a disputa pela presidência da República respondem por 202 casos (61,6% dos casos de comunicação).
  • Os atos apreciados pelo TSE no período com relação a comunicação dizem respeito, majoritariamente, à produção e propagação de notícias sabidamente falsas, conforme tipifica o Código Eleitoral.
  • A polarização política das eleições de 2022 se refletiu nos tribunais. Juntos, Lula e a Coligação Brasil da Esperança e Bolsonaro e a coligação Pelo Bem do Brasil são citados em 80% dos processos que envolvem comunicação, como requerentes ou requeridos.
  • Como tendência, as coligações impetram as ações e os candidatos são réus. 
  • Lula e sua coligação processaram mais do que foram processados e Bolsonaro e sua coligação foram mais processados do que processaram.
  • Ao se analisar em profundidade uma amostra de 48 processos aleatórios distribuídos ao longo da campanha, que considera apenas os processos deferidos envolvendo os dois candidatos, Lula e seus aliados são condenados total ou parcialmente em três situações, sendo em apenas uma por fake news, atribuída à CUT. Em contrapartida, Bolsonaro e seus aliados (inclusive seus filhos) foram condenados em oito ocasiões, todas por fake news.  
  • Empresas de comunicação tradicionais e plataformas digitais aparecem em muitos casos como co-réus. As empresas tradicionais, especialmente a Jovem Pan e a Globo, recebem como acusação padrão o crime de ofensa à imagem e à honra dos candidatos. As plataformas digitais têm grande sobreposição nos processos, especialmente o Twitter, Facebook, Instagram, Tik Tok e Gettr, sendo acusadas de corroborar para que alguém desempenhe ações supostamente criminosas.
  • Na amostra citada, o tempo entre o início da ação e a decisão judicial tende a ser longo (superior a cinco dias). Em apenas 1% dos casos há solução no mesmo dia. Não necessariamente as ações decididas mais rapidamente apresentam claramente nos autos o impacto da disseminação na internet. Como praticamente não há pedidos de diligência registrados, pode-se inferir que o tempo e a própria decisão sumária sejam influenciados pela repercussão pública do caso.

O retrato que os dados oferecem converge para o que consideramos a terceira novidade desta eleição: o protagonismo do TSE nas dinâmicas da campanha. Isso se deve em essência à mudança ocorrida em 2021 da estrutura jurídico-legal que recepciona as controvérsias em torno da comunicação na eleição, particularmente o artigo 323 do Código Eleitoral, que em sua nova redação prevê como crime “Divulgar, na propaganda eleitoral ou durante período de campanha eleitoral, fatos que sabe inverídicos em relação a partidos ou a candidatos e capazes de exercer influência perante o eleitorado”. Se antes o foco da lei era a propaganda eleitoral, o escopo foi aumentado para toda e qualquer comunicação que possa gerar controvérsia. Não interessa o local, o meio ou mídia: basta a mensagem ter inverídico e potencial de influência sobre o eleitorado para ser apreciada. 

Os primeiros rounds no segundo turno entre os produtores de fake news e judiciário foi marcado por um aumento exponencial de volume e de descaramento da desinformação e por tendência importante, que o estudo inicial no primeiro turno já havia captado: o TSE está aprendendo rapidamente com a repetição das situações e elevando o tom de suas decisões. Em linguagem atual, o algoritmo dos juízes está evoluindo. Acanhados e cautelosos na primeira semana do primeiro turno, no mesmo período da nova etapa os mesmos juízes agem cada vez mais como operadores de uma agência reguladora atenta aos desvios do mercado, respondendo de forma mais rápida e severa. Decisões recentes como a intimação de Carlos Bolsonaro, a desmonetização de sites bolsonaristas e a determinação de que a retirada de conteúdo falsos das plataformas ocorram em apenas duas horas após as decisões demonstram empiricamente isso.

Sim, é bem provável que não seja o suficiente para frear o hecatombe que se aproxima nesta última semana de campanha. Sim, é insuficiente porque casos e casos com evidências claras de desinformação não foram ou serão deferidos, o direito de resposta não está sendo automaticamente associado quando há determinação de retirada de conteúdo, os monetizadores continuam sem identificação e indiciamento e, principalmente, os casos são tratados de forma isolada, ainda que os réus e os crimes sejam reincidentes.

Mesmo diante dessas e outras restrições que somente o estudo aprofundado dos processos poderá relevar, o papel institucional do TSE é claramente inovador diante do fenômeno desinformação quando se pensa seus efeitos sobre a vida cívica e social para além da eleição. O judiciário eleitoral demonstra que é possível e eficaz contra-atacar essa epidemia também pelo campo do Direito, desde que a justiça comum crie estruturas e condições para recepcionar os processos e protocolos, para julgá-los e criminalizá-los na mesma velocidade com que as mudanças técnicas e as apropriações sociais acontecem. Se a democracia sobreviver ao plebiscito do próximo dia 30 de outubro, esse pode ser um dos maiores legados desta experiência.

Carlos Locatelli

Professor do Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina, Posjor/UFSC.

Caetano Machado

Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina, Posjor/UFSC.

Renatha Giordani

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina, Posjor/UFSC.

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