Luiza Caires: Títulos apelativos distorcem informações sobre a pandemia

Entrevista publicada originalmente no ObjETHOS. Para acessar o conteúdo original, clique aqui..

Produção: Dairan Paul
Revisão e edição: Dairan Paul e Janara Nicoletti


Promessas falsas de tratamentos contra a Covid-19, somadas à ansiedade pela vacina, são prato cheio para títulos apelativos. Conhecidos como clickbaits, ou caça-cliques, os recursos costumam servir de isca para atrair mais público. Do ponto de vista ético, é uma conduta questionável, especialmente quando há forte distorção de informação. Foi o que aconteceu com alguns veículos durante a pandemia, conforme analisa a jornalista Luiza Caires, editora de Ciências do Jornal da USP. Por outro lado, boas coberturas cumprem o papel de aproximar leitores em um momento crítico – “um laço muito corroído pela polarização política e falta de liderança de quem está no governo”, afirma.

Luiza Caires tem experiência em divulgação científica e já produziu conteúdo de ciência e tecnologia para publicações da Editora Abril e Folha de São Paulo. Atualmente, coordena a equipe do Jornal da USP dedicada à pandemia de Covid-19. Assim como outras redações, jornalistas também passaram por dificuldades no home office, desde sobrecarga de trabalho até o medo coletivo pelo vírus. No entanto, como comenta a entrevistada, “sabíamos da nossa responsabilidade sendo comunicadores de ciência, no meio de uma crise sanitária, e que não dava simplesmente para reduzir o ritmo naquele momento”.

Outra dificuldade comum nas coberturas sobre Covid é a repercussão de estudos preprint – aqueles que ainda não foram submetidos a periódicos científicos e, portanto, não possuem revisão por pares. “Inicialmente, ficamos inseguros sobre noticiá-los, mas percebemos que não era uma escolha nossa”, diz Luiza, lembrando que os próprios pesquisadores comentavam os resultados dos manuscritos científicos com certa empolgação nas redes sociais. Um cuidado a ser tomado é a busca por fontes da mesma área e de outra instituição para discutir o estudo e dimensionar suas conclusões. “Coisas que, sozinho, um jornalista não consegue fazer”, lembra.

A entrevistada acredita que o interesse por temas sobre ciência tenha aumentado durante a pandemia, mas não deve permanecer tão em voga após o ápice da crise sanitária. Ainda assim, destaca a necessidade de se incorporar boas práticas de checagem na cobertura diária. “O jornalismo precisa ficar mais analítico”, defende, o que perpassa a inclusão de mais fontes científicas para dar contexto aos fatos.

Na entrevista a seguir, Luiza Caires comenta os desafios que a equipe do Jornal da USP enfrentou no começo da pandemia, como percebe o consumo de ciência pelos leitores e os erros e acertos na cobertura da Covid-19. 

“Era clara a prática de clickbait em títulos apelativos, conclusões precipitadas, promessas falsas sobre novos tratamentos e vacinas”

Passado um tempo desde os primeiros casos de Covid no Brasil, como você avalia as dificuldades iniciais para cobrir a pandemia, a partir de sua experiência no Jornal da USP? E como a equipe se adaptou a elas?

Em primeiro lugar, assim como todos (inclusive os governos), demoramos para nos dar conta da gravidade da situação. Fizemos uma reportagem sobre a epidemia na China, entrevistei brasileiros que moravam lá para relatar a situação, além de especialistas aqui do Brasil para analisar as questões científicas. Mas não imaginava que a coisa iria crescer a ponto de ter que voltar toda a nossa cobertura científica para isso. Logo que voltei de uma viagem (a última que fiz antes dos aeroportos não serem considerados seguros, assim como outros espaços públicos), a discussão já era se quando trabalharíamos remotamente, assim que começaram a aparecer os primeiros casos na USP. 

Daí em diante, fomos todos para casa, mas o trabalho em si mais que dobrou. A segunda grande reportagem que fizemos a respeito falava sobre a situação da Itália, e o que deveria ser feito para o Brasil não ficar na mesma situação. Vendo em retrospecto, era uma pergunta inocente: superamos já há meses a Itália em números absolutos e também no impacto relativo que a pandemia teve/está tendo em cada país. 

Organizar-se para trabalhar em home office também não é fácil. Agora, estamos todos mais ou menos habituados. No começo, parte do excesso de trabalho vinha de problemas de comunicação – não poder recorrer a simples idas até a mesa de um colega esclarecer algum ponto tornava as coisas mais cansativas; e-mails longos dificilmente são lidos com atenção na íntegra; e-mails curtos não esclarecem totalmente; mensagens por WhatsApp eram, talvez piores, invadindo fins de semana e horários que, em tese, não deveriam ser de trabalho. Tudo isso, aliado ao medo coletivo, deixou a equipe mais estressada. Tivemos, ainda, as perdas humanas por Covid-19: colega da rádio, esposo de colega do setor de arte e, pessoalmente mais impactante pela proximidade, mãe do nosso estagiário. Duas delas ocorreram na véspera de encontros virtuais que tínhamos marcado apenas para confraternizar, para deixar o clima mais ameno. Encontros que foram cancelados nas duas vezes, obviamente. 

Enfim, essas foram algumas das dificuldades objetivas e subjetivas que foram obstáculos a serem enfrentados. Apesar das mensagens que líamos na internet dizerem “não se cobre ser produtivo, você está numa situação atípica”, sabíamos da nossa responsabilidade sendo comunicadores de ciência, no meio de uma crise sanitária, e que não dava simplesmente para reduzir o ritmo naquele momento.

Nas redações, jornalistas sem especialização em ciência e saúde se viram obrigados a cobrir o tema. Como você avalia os erros e acertos na cobertura feita até então pelos jornais?

Muitos erros foram cometidos por alguns veículos pelo fato de a cobertura em ciências ser feita por um profissional sem experiência na área, ou que, pelo menos, não fosse orientado por um profissional com experiência na área. E sabemos que essa é a realidade de muitas redações. Mas na minha opinião, o mais problemático foram os veículos que distorciam a informação intencionalmente – ao menos pelo que parecia, é claro que não posso provar. Para mim, era clara a prática do clickbait em títulos apelativos, conclusões precipitadas (ou que não podiam ser tiradas só pelo que os entrevistados disseram), promessas falsas sobre novos tratamentos e vacinas, sensacionalismo sobre a doença – esse último coberto por uma aura de boas intenções (“as pessoas precisam ficar com medo para se prevenir”), mas que desconfiamos ser apenas um recurso para atrair mais público.

Vimos, por outro lado, coberturas muito boas. No Brasil, destaco o jornal O Globo e o programa Fantástico, além do Jornal Nacional. É até curioso destacar esses noticiários tão óbvios ao espectador e tão tradicionais – há muito tempo eu não acompanhava de perto a TV aberta, mas não posso deixar de mencioná-los. De fato, a cobertura de alguns produtos da Globo foi digna de elogios e, além das boas informações, ajudou a manter o laço entre os brasileiros nos piores momentos da pandemia – um laço muito corroído pela polarização política e pela falta de liderança de quem está no governo, e que seria essencial numa crise dessas. 

No exterior, além do The New York Times (de quem sempre se espera muito, também), destaco o The Atlantic, pelo teor analítico, fuga do senso comum, e ser o primeiro a trazer questões sobre as quais ninguém estava falando.

“Informar sobre contexto é necessário, e a formação de senso crítico é uma das funções da imprensa”

A pandemia também gera certa ansiedade na busca por curas e soluções rápidas. Nesse sentido, diversos estudos preprint sobre a Covid têm sido lançados e repercutidos pelos jornais. Quais cuidados o jornalista deve ter ao noticiar essas pesquisas? 

Sobre tratamentos, não sou cientista ou médica, mas uma coisa que todo mundo precisa saber é que vírus são um dos agentes que mais desafiam a medicina há séculos. É altamente improvável descobrirmos rapidamente alguma medicação que seja cura para um vírus. Então sempre devemos desconfiar se ouvir falar em tratamento farmacológico eficaz contra o coronavírus. Tratamento da Covid-19, por enquanto, são medidas de suporte para que seu corpo combata o vírus com recursos que já têm – pode sim ser auxiliado por algumas medicações, mas sempre com acompanhamento médico e em casos bem específicos (remédios que não funcionam para todos os casos e em alguns podem até piorar o quadro). E nenhuma dessas medicações é milagrosa.

Um dos principais cuidados ao noticiar preprint é explicar o que ele é e relativizar suas conclusões mais como um indicativo de potencial do que como um resultado. E explicar isso de uma maneira muito, muito simples mesmo. Nada de dizer “Ainda não foi revisado por ‘pares’”. 

No Jornal da USP, inicialmente ficamos inseguros sobre noticiar estudos ainda sem revisão. Mas percebemos que não era uma escolha nossa. A mídia externa encontrava a pauta e noticiava, às vezes até pelos próprios pesquisadores comentarem os resultados, muitas vezes empolgados, nas suas redes sociais. Outro imperativo é encontrar pesquisadores da mesma área, e de preferência de outra instituição, para comentarem o artigo e ajudar a dimensionar aquelas conclusões – coisas que, sozinho, um jornalista não consegue fazer. 

Você acredita que o interesse do público pelo consumo de informações sobre ciência pode se manter após o período mais agudo da Covid-19? E sobre a relação entre jornalistas e cientistas, acredita que ela tende a ser mais próxima?

A pandemia está afetando nossa vida de uma maneira muito direta, e é natural que seja o tema que domine as pautas das notícias e das nossas conversas. Assim, o interesse em informações sobre ciência cresceu. Certamente não vai se manter o mesmo após a pandemia, mas serviu para um público que nunca lê nenhuma notícia sobre ciência ao menos entrar em contato com o tema. E serviu aos próprios jornalistas considerarem mais os cientistas como fontes quando estiverem cobrindo pautas diversas. Praticamente toda pauta tem lugar para um cientista ser entrevistado (mesmo que não seja o principal entrevistado). Por exemplo: ao falar sobre desabamento de casas construídas em áreas de risco, por que não entrevistar engenheiros, cientistas sociais, urbanistas ou geógrafos urbanos, para falar, por exemplo, do déficit habitacional na região? Ao invés de falar somente com prefeitura, moradores e Corpo de Bombeiros.

O jornalismo precisa ficar mais analítico e os cientistas, sejam das ciências duras ou humanas, podem e devem ter espaço nele. Entendo que há noticiários mais focados nas hard news, mas não entendo que todos os principais só façam isto. E uma pontinha que seja de análise em uma reportagem já é melhor que nenhuma. Informar sobre contexto é necessário, e a formação de senso crítico é uma das funções da imprensa.

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