Gênero e política: Um relato sobre checagem de fatos e notícias nas eleições 2018

Publicado originalmente em Eté Checagem por Leila Salim, Mariana Medeiros e Viviane Rosa. Para acessar, clique aqui.

Os últimos anos têm demonstrado, de maneira cada vez mais incisiva, a extensão e os profundos impactos da disseminação de boatos, mentiras e imprecisões sobre as mais diversas temáticas no ambiente virtual e, mesmo, nos meios de comunicação tradicionais. Especificamente no cenário político, os mais recentes processos eleitorais no Brasil e no mundo trouxeram para o centro do debate a preocupação com as chamadas fake news: uma série de analistas têm apontado os riscos à democracia representados pela ondas de informações falsas, adulteradas, descontextualizadas ou incompletas. Com vasto poder de alcance e rápida disseminação, muitas dessas informações passaram a pautar o debate político e, mesmo, chegaram a influenciar os resultados dos processos eleitorais.

Foi diante da identificação deste cenário que idealizamos a Eté Checagem. No tupi, Eté significa verdade, verdadeiro. Percebendo o quanto as pautas vinculadas aos direitos humanos, mulheres, população LGBTQ+, juventude e negritude vieram se tornando alvos preferenciais das fake news no cenário político brasileiro, criamos a Eté como a primeira agência de checagem especializada nessas temáticas do Brasil. Com apoio da Fundação Heinrich Böll, nosso projeto foi lançado em agosto de 2018 para cobertura das eleições presidenciais, com o objetivo de checar dados, discursos, programas de governo e declarações de todos os candidatos à Presidência, assim como informações e notícias veiculadas no ambiente virtual e na imprensa que envolvessem nossas temáticas de interesse. Neste artigo, compartilharemos um pouco de nossa experiência com a realização de checagens no primeiro e segundo turnos das eleições, com atenção especial ao conteúdo apurado e produzido sobre mulheres e gênero.

Direitos das mulheres e movimento feminista: destaque no primeiro turno

As pautas envolvendo direitos das mulheres, desigualdade salarial entre homens e mulheres, violência doméstica, violência contra mulheres negras, direitos reprodutivos e, também, o próprio movimento feminista destacaram-se no primeiro turno.  Nos debates entre candidatos à Presidência, seus discursos e declarações e, ainda, nas informações e conteúdos veiculados através de redes sociais, os temas ganharam relevância desde o início da campanha e, sobretudo, após as manifestações protagonizadas pelo movimento feminista em defesa de suas pautas.

A primeira checagem com pauta de gênero produzida pela Eté tratou da desigualdade salarial: ganhou grande destaque na mídia e nas redes sociais uma declaração da então candidata Marina Silva (REDE) em debate realizado pela Rede TV. Confrontando o então candidato e atual Presidente da República Jair Bolsonaro (PSL), ela declarou: “Só uma pessoa que não sabe o que significa uma mulher ganhar um salário menor que os homens e ter a mesma capacidade, a mesma competência e ser a primeira a ser demitida e a última a ser promovida e quando vai na fila de emprego, só por ser mulher não ser aceita… É uma questão que tem que se preocupar, sim, porque quando se é presidente da República tem que fazer cumprir o artigo 5.º da Constituição Federal, que diz que nenhuma mulher deve ser discriminada. E não fazer vista grossa dizendo que não precisa se preocupar.”

A declaração ganhou o selo de “Verdadeira”. Apuramos dados do Estudo de Estatísticas de Gênero, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que indicam que mulheres trabalham, em média, três horas por semana a mais do que os homens, combinando trabalhos remunerados, afazeres domésticos e cuidados de pessoas. Mesmo assim, e ainda contando com um nível educacional mais alto, elas ganham, em média, 76,5% do rendimento dos homens. “Apesar de a diferença entre os rendimentos de homens e mulheres ter diminuído nos últimos anos, em 2016 elas ainda recebiam o equivalente a 76,5% dos rendimentos dos homens. Uma combinação de fatores pode explicar essa diferença. Por exemplo, apenas 39,1% dos cargos gerenciais eram ocupados por mulheres. Essa diferença aumentava com a faixa etária, indo de 43,1% de mulheres em cargos de chefia no grupo até 29 anos de idade até  31,8% no grupo de 60 anos ou mais”, diz o texto da checagem. O tema foi abordado ainda muitas outras vezes pelos candidatos, e uma série de checagens sobre diferença salarial foi produzida a partir de dados públicos.

Apuramos, ainda, declarações sobre violência doméstica, apresentando dados do 12º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, lançado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em 2018. Confirmamos que 221.238 casos de violência doméstica contra a mulher foram registrados em 2017. Outros temas apurados vinculados a gênero foram: saúde da mulher (declaração do então candidato Ciro Gomes sobre atendimento a mulheres com câncer de mama, que não foi confirmada pelos dados públicos disponíveis); desigualdade na realização do trabalho doméstico; violência contra mulheres negras e estatísticas nacionais e internacionais de feminicídios. Outro tema que ganhou bastante repercussão foi a declaração do atual Vice-Presidente da República, Hamilton Mourão, indicando a relação entre a incidência de lares chefiados por mulheres e o aumento dos índices de criminalidade com narcotráfico nessas famílias: checamos os dados do Instituto Brasileiro de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e constatamos a impossibilidade de estabelecimento dessa relação, classificando a declaração como “Falsa”.

Movimento Feminista e Redes Sociais

Ainda no primeiro turno, as manifestações nacionais organizadas por movimentos feministas em defesa dos direitos das mulheres e em repúdio aos posicionamentos do então candidato Jair Bolsonaro ocuparam lugar de destaque no cenário político, nos noticiários e também entre os conteúdos produzidos e veiculados nas redes sociais. A criação do grupo “Mulheres Unidas Contra Bolsonaro” no Facebook impulsionou a realização das manifestações e foi objeto de reportagens, boatos e uma série de polêmicas. Menos de uma semana após sua criação, o grupo reuniu mais de 2 milhões de mulheres. Na madrugada do dia 15/9, foi alvo de hackers e retirado do ar. No dia seguinte, um domingo, foi restabelecido e ganhou mais 500 mil participantes, que intensificaram a atuação nas redes para a convocação das manifestações.

Nesse contexto, começaram a circular rapidamente pelas redes sociais uma série de acusações ao grupo, uma delas repercutida por dois dos filhos de Jair Bolsonaro, então candidatos a deputado federal e senador. A acusação dizia que o grupo não era espontâneo, e teria sido comprado pelos movimentos feministas quando já possuía um número significativo de integrantes – o que explicaria seu alto número de participantes. Checamos essa denúncia, que recebeu o selo “Falso”. A própria assessoria do Facebook confirmou que o grupo fora criado em 30 de agosto, já com o nome “Mulheres Unidas contra o Bolsonaro” e que fora removido temporariamente após detecção de “atividade suspeita”, quando invadido por hackers. A repercussão, especialmente online, sobre a criação do grupo e, mais ainda, sobre as manifestações dos movimentos feministas indicou o quanto o protagonismo feminino na política brasileira ainda é fator de estranhamento e, mesmo, alvo de preconceitos machistas. Logo após a realização das manifestações, recebemos uma série de conteúdos apócrifos que circulavam no WhatsApp e redes sociais utilizando fotos descontextualizadas de mulheres nuas, seminuas e ingerindo bebidas alcóolicas e drogas ilícitas para afirmar que seriam fotos das manifestações. Algumas delas foram identificadas como fotos feitas anos atrás, em contexto diverso das eleições.

Fake news, mulheres e política: para além das eleições

A experiência de checagem sobre pautas de gênero no período eleitoral acentuou nossa percepção acerca dos obstáculos ainda colocados de maneira incisiva para a atuação, a inserção e o protagonismo de mulheres na política nacional, seja institucional ou vinculada a movimentos sociais. No segundo turno do período eleitoral, o grande volume de boatos e notícias falsas envolvendo Manuela D’Avilla (PCdoB), então candidata à Vice-Presidência na chapa de Fernando Haddad, reforçam esse argumento. A grande maioria dos boatos e difamações à candidata a atingiam em relação à sua sexualidade, vida pessoal e relacionamentos interpessoais.

Destacamos, ainda, os atos de violência praticados contra a memória de Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro assassinada em março de 2018. Logo após sua execução, circularam intensamente pelas redes sociais conteúdos que buscavam deslegitimar sua atuação política e, inclusive, afirmavam que a vereadora seria “casada com um traficante”. No segundo turno das eleições, a Eté se destacou checando em primeira mão as informações acerca de mais um ato de violência contra a memória de Marielle, quando uma placa em sua homenagem foi quebrada violentamente e exibida como troféu em um comício. Confirmarmos que as fotos que mostravam a presença do então candidato e atual governador do estado do Rio de Janeiro Wilson Witzel no palanque do comício eram verdadeiras.

Mais recentemente, assistimos à grande onda de boatos e difamações, também majoritariamente disseminados no ambiente virtual, contra Sabrina Bittencourt, ativista responsável pela denúncia de abusos sexuais cometidos por importantes lideranças religiosas do Brasil e do mundo. Em dezembro do ano passado, boatos afirmando que a ativista teria cometido suicídio se multiplicaram pelas redes sociais e chegaram a atingir sua família. Em fevereiro deste ano, após intensa perseguição e difamação, Sabrina Bittencourt suicidou-se e publicou uma carta em suas redes sociais relatando as ameaças, coações e pressões às quais vivia submetida.

Reafirmamos, a partir de nossa experiência como jornalistas independentes atuando na cobertura de pautas de gênero e política, a necessidade de identificação e visibilidade dos mecanismos de coação e constrangimento à presença de mulheres protagonistas no cenário político. Além disso, reforçamos o papel do jornalismo independente, sobretudo aquele produzido por mulheres, na produção de informações de qualidade, checadas e posicionadas em defesa dos direitos das mulheres para a reversão desse cenário.

Texto originalmente publicado no site da ONG Heirich Boll.

Compartilhe:

Share on whatsapp
Share on twitter
Share on facebook
Share on email
Share on linkedin
Share on telegram
Share on google

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Language »
Fonte
Contraste