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É muito provável que a linguagem tenha sido a responsável pela criação da cultura, esse complexo e polifônico sistema e subsistemas de significantes e significados, de gestos e falas, de ações e omissões que nos legou a distinção daquilo que chamamos de natureza.
Com efeito, poderíamos sintetizar aquilo que chamamos de cultura a partir de dois elementos que lhes são essenciais, um primevo ao seu nascimento, outro um resultado de seu contínuo e irrefreável desenvolvimento científico-tecnológico: do fogo aos foguetes. Basta pensarmos com especial referência a estes últimos que a cultura e o engenho humano construíram artefatos que há alguns anos atravessaram as fronteiras de nossa galáxia, de onde nos enviam informações sobre o espaço profundo e desconhecido.
É óbvio que nesse texto não se terá a intenção de discorrer sobre teorias linguísticas e/ou filosóficas acerca da origem e da estatura teórica da linguagem, salvo, por exceção, o fato de que cultura e linguagem se influenciam reciprocamente no modo como um grupo humano em geral, e um espécie em particular, põem-se no mundo e nele atuam. O conjunto de (des)valores, princípios, formação e demais índices que formam uma cultura em particular determinam o modo de falar e expressar, mas também de agir e interagir com o(s) outro(s).
Na última terça-feira, 21 de setembro (datas em que se comemoram, internacionalmente, o Dia da Paz, e, nacionalmente, o Dia da Árvore), muito se disseram surpreendidos pelo que foi dito e feito pela Comitiva de Bolsonaro na cidade de Nova Iorque, EUA, quando para ali se deslocou para acompanhar a abertura da sessão anual da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU).
Tradicionalmente – e o mundo das relações internacionais e diplomáticas é formado por um conjunto irremissível de tradições, gestos e modos de comunicação que somente os iniciados conhecem bem –, desde 1955 o Brasil inicia as sessões de discursos dos chefes de Estado da Assembleia Geral da ONU, procedido pelos EUA, em reconhecimento pelo papel desempenhado pelo Brasil e por Oswaldo Aranha (que foi o Ministro das Relações Exteriores durante o primeiro governo Vargas) na formação da Organização. Aranha presidiu as primeira e segunda sessões ocorridas em 1947.
Salvo em duas ocasiões – 1983 e 1984 –, o Brasil proferiu o discurso inicial, o que, para uns, é o reconhecimento de sua relevância nas relações internacionais. Já para outros, como Michael Pollock, o “… discurso do Brasil oferece um modo diplomático de todo mundo se ajeitar para o que costuma ser a atração principal: o presidente dos Estados Unidos”, já que ele é o segundo a discursar e a sala ser um lugar bastante amplo e ocupado pela delegação de 193 Estados (The New York Times. Answers to question about New York, 04. Set. 2012).
O resultado da fala “de improviso” de Bolsonaro, com todas as mentiras, digo, fake news por ele proferidas, é a reafirmação da perda de credibilidade que o Brasil tem empreendido desde 2018. Empreendido, porque, diversamente do que se esperaria, não se trata de um acidente, mas de um projeto de destruição de reputação internacional. Para ficarmos em algumas mentiras:
- 7 de setembro foi a maior manifestação popular já ocorrida no Brasil, e o foi em apoio a seu governo;
- O Brasil é o país que mais rápido se recuperou da crise econômica decorrente da pandemia de coronavírus;
- A Amazônia não está sendo consumida por trator e fogo, já que nesse ano o desmatamento teve uma redução de 33%;
- Os indígenas brasileiros não correm risco algum, já que o Brasil demarcou seus territórios;
- O Brasil é um dos países que mais vacinou a sua população.
Agora, quem “apostou” num Bolsonaro moderado, equilibrado e ponderado, e que por seu discurso lograria recuperar a imagem externa do Brasil, como sugerido pelo O Globo de 19 de setembro, apostou na possibilidade de a linguagem não refletir a cultura, ou ser um elemento à parte da cultura.
Desde o início de sua vida pública, Bolsonaro demonstrou por gestos, falas e ações que é um indivíduo completamente despreparado para o exercício de qualquer função pública.
O presidente é adorador de Ustra, o torturador que enfiava rato na vagina das presas políticas, ou de Curió, o oficial do exército que torturou, assassinou e desapareceu com os dissidentes políticos presos no curso da Guerrilha do Araguaia; defende a tortura, as milícias, a morte de opositores e o estupro corretivo de mulheres (que sentido dar a um “não te estupro porque você não merece”?). No governo, após ser eleito em razão da dita fakeada, lançou o Brasil numa queda contínua de índices de sociabilidade e políticas públicas, tendo escolhido a dedo os piores assessores que poderia fazer. Com a pandemia, apostou na infecção, negou vacina, quis impedir políticas indispensáveis de distanciamento e uso de máscaras e, uma semana antes de seu discurso de “redenção”, quis proibir a vacinação de adolescentes entre 12 e 18 anos, dentre tantos comportamentos criminosos.
A charge feita pelo cartunista Pietro que identifica muito bem essa redenção esperada pelo O Globo. Agora, não somos nós as Alices, é O Globo que vive num mundo de Pollyana. Mas dizíamos que a linguagem expressa a cultura, que é conformada pela linguagem etc.
Pois bem. Se sabemos que Bolsonaro é uma pessoa sem qualquer qualidade, sendo efetivamente uma humilhação aos asininos a comparação com esse indivíduo, é certo que seus assessores têm a mesma (falta de) índole e cultura belicosa e estupidificante. A cultura popular, sábia em sua (pretensa) simplicidade, nos afirma: quem dorme com porco, come farelo; ou, ninguém nega aos seus, vale dizer: somente se associa ao genocídio quem tem o genocídio incutido em sua própria alma.
A imagem acima nos dá a exata dimensão dessa societas sceleris (associação de celerados). Ela ocorreu no dia anterior ao discurso “redentor” na ONU, e retrata o momento em que a comitiva presidencial chegava ao Hotel. Nela, o Ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, e o Ministro das Relações Exteriores, Carlos França, enfrentam, brava(ta)mente, um grupo de pessoas que protestavam contra a presença de Bolsonaro em Nova Iorque. Nessa foto, Marcelo Queiroga tasca um digitus infamis, e Carlos França fez o símbolo que elegeu o seu chefe, a arminha.
Sabemos pelos relatos históricos, que o digitus infamis é utilizado desde a cultura romana como símbolo ofensivo pelo qual se manda o destinatário saciar a sede em lugares onde não batem o sol, e a arma é o símbolo que elegeu esse governo com a promessa de fuzilar a petezaiada e submeter as minorias ao desejo das maiores.
Se o fruto não cai longe da árvore, Queiroga e França simbolizam um grupo que expressa todo desprezo pela população brasileira e mundial, e que representa uma cultura governamental em que somos tratados como o vírus a que se deve eliminar, e não há dedos nas mãos e nos pés que bastem para explicar, imageticamente, o quão degradante são esses comportamentos.
Precisamos, portanto, resgatar a dimensão indispensável de civilidade de uma sociedade consciente de que, a partir de 2022, precisará reconstruir a própria cultura desse monturo de esterco que lhe quer cobrir a cabeça.
Marcus Oliveira é professor de Direito e coordenador do Jus Gentium na UNIR.