Em meio à pandemia, iniciativas de leitura coletiva em voz alta aproximam mentes e corações

Publicado originalmente em Jornal da Universidade por Lucas Tillwitz. Para acessar, clique aqui.

Cultura | Clubes de leitura virtuais seguem difundindo literatura mesmo durante a crise pandêmica, conectando pessoas independentemente de lugar

*Foto de capa: Sarau de final de ano do grupo Leitura em Voz Alta, no bar Parangolé, em 2018 (Foto: Arquivo de Luiza Ely Milano)

O encontro é iniciado com uma espontânea conversa sobre aflições contemporâneas. “A gente quer espremer uma hora de um minuto”, contribui o aposentado Gilmar José Taufer à discussão, enquanto o restante do diminuto número de participantes na sala de videoconferência acena em concordância ao colega. Emoldurados por retangulares janelas virtuais, os poucos indivíduos desabafam sobretudo acerca de suas agitadas e cansativas rotinas em uma sociedade que supervalorizaria a velocidade e o desempenho ainda que diante de uma pandemia. Em meio ao debate, as ventanas digitais vão encolhendo pela chegada de mais pessoas. Com o crescente brotar de gente, o até então inquieto lugar dá espaço a um sereno silêncio: é chegada a hora de desbravar Guimarães Rosa. Cópias de Grande Sertão: Veredas velozmente assumem o protagonismo das telas e da atenção de seus proprietários, que parecem não mais lembrar sobre seus cotidianos extenuantes.

Concentrados na obra a sua frente, os presentes decidem adentrar em um sertão fértil de letras, tendo como guia a voz de um de seus companheiros. Geograficamente afastados mas virtualmente juntos, os participantes do grupo de leitura Lendo Clássicos em Voz Alta (LCVA/UFRGS) são exemplos da importância da prática de leitura ficcional em grupo na internet durante a crise do coronavírus. Assim como eles, diversos indivíduos encontram em tais iniciativas a possibilidade de continuar compartilhando a paixão pela arte literária em meio ao turbilhão de acontecimentos recentes. Unindo pessoas apesar da pandemia, os clubes transformam literatura em refúgio, incentivando seus participantes a sonharem com o futuro.

Próximos, ainda que distantes

O LCVA/UFRGS ocorre duas vezes por semana, às segundas e às sextas-feiras, a partir das 18h, em uma plataforma de videoconferência. Mas nem sempre foi assim. Antes da pandemia, os membros do projeto de extensão criado em 2017 costumavam ocupar a sala 223 do prédio administrativo do Instituto de Letras (IL), no Câmpus do Vale. A migração para ambientes digitais ocorreu em março de 2020, após a suspensão das atividades universitárias presenciais em razão da pandemia, o que exigiu que a ação fosse reinventada para continuar a existir em meio a uma realidade hoje conhecida.

Segundo Magali Lopes Endruweit, docente no IL e coordenadora da ação, a pandemia impôs desafios à continuidade da atividade, desde a impossibilidade de realizar reuniões presenciais à subversão dos valores que guiam o clube. “No começo da pandemia, a gente pensou em desistir do projeto, porque no presencial era um momento de acolhimento. Quando nós pensamos em fazer pelo meio virtual, achamos que não daria certo”, afirma a professora. Apesar de muitos receios, o clube realizou sua mudança para o meio virtual com sucesso. E ainda hoje, um ano e sete meses depois da exitosa transição, persiste em conectar pessoas por meio da leitura literária.

O grupo já leu, desde o início das atividades online, Crime e Castigo e O Idiota, ambas obras de Fiódor Dostoiévski, e os dois volumes de Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, e está concluindo Grande Sertão: Veredas, do mineiro João Guimarães Rosa. A leitura da obra do autor brasileiro é inclusive exemplo da potência dos encontros do clube em meio à crise. A experiência com o livro tem sido tão marcante que os participantes do projeto avaliam eternizar na pele as palavras do escritor. “A gente brinca muito que vai fazer uma tatuagem sobre Grande Sertão: Veredas quando terminar de ler o livro”, confidencia Magali. “Vamos gravar ‘Nonada’ no braço, ou algo do tipo.”

Participantes do LCVA/UFRGS com suas cópias de Grande Sertão: Veredas, em agosto de 2021 (Foto: Lucas Tillwitz)

De acordo com Gilmar, integrante do projeto desde 2018, a leitura na internet com os amigos de clube é uma experiência valiosa durante a pandemia. Em um modo de vida em que as pessoas estão, por razões sanitárias, impedidas de se encontrarem plenamente e sem qualquer perigo, a reunião virtual mediada pela tecnologia tem sido muito importante para o aposentado. “A pandemia jogou a humanidade em uma atmosfera de muito medo. Esses encontros do grupo são uma forma de enfrentar esse medo, de continuar a vida, de fazer o que tu gostas e de continuar participativo e solidário”, afirma Gilmar.

“A leitura em grupo é um momento de solidariedade entre as pessoas, porque elas estão se solidarizando umas com as outras para que se entenda o que está sendo lido. Essa solidariedade pela leitura se transforma em solidariedade para enfrentar a pandemia”

Gilmar José Taufer

A riqueza dos encontros virtuais também está presente nas experiências do grupo Leitura em Voz Alta – ou Quarentena em Voz Alta, como é chamado o clube desde a sua ida para ambientes virtuais. Segundo Luiza Ely Milano, professora nos cursos de Letras e Fonoaudiologia da UFRGS e coordenadora do projeto, os encontros do “Leitura” contribuem para o bem-estar de seus membros durante tempos tão brutos, formando uma rede virtual de apoio e respaldo recíprocos. “Eu cuido muito para não dizer que a gente é um grupo de autoajuda, algum tipo de salvação”, ressalva Luiza. “Mas a gente acaba partilhando tudo. Partilha voz, escuta, texto literário, ideias, sentimentos.”

“Se falta alguém, a gente sente falta daquela voz que vem antes ou depois da gente, fica preocupado com aquela pessoa. A gente criou uma cumplicidade”

Luiza Ely Milano
Membros do Leitura em Voz Alta no bar Parangolé, em 2017 (Fotos: Manuel Surreaux)
Distantes, ainda que próximos

Além de viabilizar a conexão pela literatura durante a pandemia, a internet também oferece novas possibilidades aos clubes de leitura. É o caso da ampliação dos públicos das iniciativas, consequência da ausência de distâncias geográficas no meio digital. Marília Forgearini Nunes, docente na Faculdade de Educação e coordenadora do projeto Lendo em Roda (Ler/UFRGS), conta que as junções virtuais da ação possibilitam a participação de pessoas de diferentes regiões do Brasil, algo impossível no modelo presencial. “Conseguimos atrair pessoas que acompanhavam o Ler nas redes sociais e diziam não conseguir ir à Faculdade de Educação. Em um momento em que todo mundo está em casa, ligar o computador é fácil”, afirma a professora.

“No presencial tinha o clima do cafezinho, o encontro, o olho no olho. Então, tinha a presencialidade. Mas no virtual a gente conseguiu alcançar pessoas que a gente não conseguia antes”

Marília Forgearini Nunes

Participante do LCVA/UFRGS desde janeiro de 2021, Patrícia Lapot Costa, assessora pedagógica e moradora de Goiânia, em Goiás, conta que conheceu o clube a partir da procura de atividades que contribuíssem com a qualidade de sua saúde mental durante a pandemia. A pedagoga revela que jamais havia participado de um clube de leitura antes da crise pandêmica, ainda que nutrisse o desejo de participar desse tipo de ação. A impossibilidade de estar em grupos literários na capital goiana ocorria, segundo ela, devido à grande distância entre o seu local de trabalho e as livrarias que desenvolviam tais ações. “Eu tinha muito problema com a questão do tempo de deslocamento”, diz Patrícia. “Em Goiânia, tínhamos alguns clubes de leitura, mas era difícil conciliar o horário de saída do trabalho com o tempo que eu levaria para chegar ao lugar.”

“Eu só posso participar [do LCVA/UFRGS] porque é online, porque não dá para eu pegar um avião para Porto Alegre duas vezes por semana para fazer leitura”

Patrícia Lapot Costa

A participação de pessoas de distintas localidades possibilita encontros mais interessantes, de acordo com Cinara Antunes Ferreira, professora no IL e coordenadora do grupo Poesia de Mulheres. Segundo a docente, quanto mais diversos os perfis de pessoas nos encontros do clube tanto mais ricas são as interpretações das obras literárias lidas. Cinara conta que a ampliação do acesso inclusive motiva a equipe do projeto a seguir com o clube no formato online mesmo após o término da pandemia. Nesse caso, a iniciativa ocorreria virtual e presencialmente. “Vai ser difícil não oferecer também de forma virtual. A pandemia, com todos os seus problemas, nos ajudou a ver a possibilidade desse tipo de encontro. Há muitas coisas que nós podemos fazer na internet que são tão fortes, tão interessantes quanto no presencial”, afirma Cinara.

“Teve gente do Rio de Janeiro, de São Paulo, do interior do Rio Grande do Sul, de Pernambuco. E não só estudantes de Letras, mas pessoas de outras áreas, que buscavam a leitura de poesia como uma atividade para o seu prazer, para alimentar as suas necessidades de conhecimento e de contato humano”

Cinara Antunes Ferreira
Integrantes do Poesia de Mulheres durante a primeira atividade online do grupo desde o início da pandemia, em outubro de 2020 (Foto: Arquivo do clube)
Lendo Clássicos em Voz Alta: dar voz à tinta

O exercício do direito à literatura a partir da leitura em voz alta de grandes livros da humanidade é o principal objetivo do LCVA/UFRGS. Magali, coordenadora da atividade, conta que a escolha por tais obras teve inspiração em Dante Gallian, professor universitário e defensor da leitura de clássicos como instrumento de desenvolvimento pessoal. Já a leitura em voz alta é um aspecto desenvolvido pela professora há décadas em sala de aula, onde os alunos são instigados a lerem os próprios textos em voz alta com a turma. Para a docente, a prática resulta em maior proximidade entre quem escreve e quem lê.

“A voz de quem lê imprime um ritmo que é só dessa pessoa. Ler obedecendo ao ritmo do outro, às pausas do outro, ao sentido que o outro dá ao texto faz você sair do seu universo para o universo do outro”

Magali Lopes Endruweit

“No LCVA, não há apenas a leitura”, afirma o participante Gilmar. No clube, segundo ele, há o compartilhamento do que se lê a partir da leitura e também das discussões que o grupo promove. “A gente lê e, no calor da leitura, no impacto que a leitura proporciona, faz a discussão”, revela. Para a integrante Patrícia, a experiência de leitura em grupo difere em muito da leitura solitária. Ler em coletivo, para a pedagoga, “nos aproxima da obra pelo olhar do outro”. “Mas tem que gostar de gente, viu?”, avisa Patrícia. “Tem que gostar de ouvir, de partilhar, de trocar. Mas o bonito é isto: o encontro. Ainda que pela tela, a gente consegue se encontrar e partilhar.”

Leitura em Voz Alta: literatura no coração da boemia

Nascido em 2015 no IL, o “Leitura” permaneceu no Câmpus do Vale durante dois anos. Em 2017, devido ao crescente interesse da comunidade pela atividade, o grupo migrou para o bar Parangolé, no bairro Cidade Baixa, em Porto Alegre. Segundo Luiza, coordenadora da iniciativa, a migração para um espaço alheio à academia permitiu que o clube alcançasse plenamente os objetivos da extensão universitária, como o estabelecimento de relações entre diferentes segmentos da sociedade. “Nos dois primeiros anos do projeto, participava só o pessoal que circulava na Universidade. Quando o clube foi para o bar, começaram a aparecer muitas pessoas de quem que eu nunca tinha ouvido falar”, relembra a docente. “É a leitura chegando às pessoas de uma maneira menos acadêmica.”

Em sete anos de existência, o “Leitura” se dedica a ler prosas de diferentes estilos, como Frankenstein, de Mary Shelley, e Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez. Um livro importante para o grupo é Manuelzão e Miguilim, de Guimarães Rosa, primeira obra lida pelo clube após a ida para o meio digital. Desde então, foram desbravados pela iniciativa títulos como As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino, e Marrom e Amarelo, de Paulo Scott. Afeito a mudanças, o grupo não deixa de sonhar com a sua próxima “aventura” mesmo agora. Luiza revela que pretende, após o término da pandemia, levar a ação para escolas públicas da capital. “A minha ideia é levar núcleos do projeto para essas escolas”, afirma. “Já está mais que na hora de estender esse projeto a pessoas que talvez não tenham tanto acesso à literatura.”

Lendo em Roda: charmosos contos

“Um grupo de pessoas que gostava de ler e se reuniu.” É assim que Marília, coordenadora do Ler/UFRGS, define as origens do clube fundado na Faced em 2019. É com carinho que a docente relembra os encontros do grupo antes da pandemia, os quais aconteciam em meio a cafés e biscoitos levados pelos participantes, que se organizavam em roda para degustar livros diversos. Segundo a professora, o clube sempre priorizou a leitura em grupo em voz alta, de maneira similar ao LCVA/UFRGS e ao “Leitura”, com o propósito de evitar que os membros do grupo não participassem das atividades por não terem lido previamente as obras.

A principal distinção entre o Ler/UFRGS e ações semelhantes é o privilégio dado aos contos, o que permite que a leitura e o debate ocorram em reuniões únicas. De acordo com Marília, em todo encontro do grupo afloram sentimentos distintos conforme as leituras escolhidas, como o conto Maria, de Conceição Evaristo. “Conceição Evaristo nos colocou frente a uma mulher empregada doméstica voltando para casa que presencia um assalto e acaba morta”, rememora emocionada a professora. “Fui eu quem estava lendo no momento, e eu fui às lágrimas. As leitoras tiveram que continuar a leitura. Ao final, o silêncio imperava.”

“Há momentos em que a conversa vem de imediato depois ou durante a leitura. E há momentos em que o silêncio domina, até que alguém o quebre. É bonito ver, na tela, as pessoas partilhando os seus sentidos”

Marília Forgearini Nunes
Poesia de Mulheres: conhecer e reconhecer-se

Fundado em 2017, o projeto Poesia de Mulheres tem como principal intuito a difusão da escrita poética feminina. Segundo Cinara, coordenadora da ação, as poetisas permanecem pouco conhecidas ainda hoje, embora sejam muito produtivas desde sempre. “Os alunos de Letras, os alunos de outros cursos e o público em geral não as conhecem”, diz a professora. “E não as conhecem porque elas são pouco divulgadas. Existe um apagamento histórico da escrita de mulheres.”

“A ideia da atividade é mostrar que elas escrevem, e escrevem muito bem. E que falam de questões muito atuais, cada uma no seu tempo”

Cinara Antunes Ferreira

Além do contato com mulheres poetas, o grupo também oportuniza momentos de reconhecimento entre seus participantes e os temas abordados nas obras, a exemplo das opressões às quais as mulheres são submetidas. Nos encontros, mulheres e homens refletem sobre tais questões, assuntos cujos debates precisam acontecer cada vez mais e serem mais bem realizados pelas sociedades. “O grupo não é só para mulheres”, ressalta Cinara, “é para todos.”

As vivências no projeto, assim como em iniciativas similares, evidenciam a relevância da literatura para o diálogo de temas essenciais à experiência humana. Mesmo durante a pandemia, os clubes de leitura continuam a incentivar seus membros a se transformarem por meio das palavras. Em um momento em que as pessoas são constantemente confrontadas pela fragilidade da vida, ler – e ler em grupo – faz relembrar a força que existe nos encontros com o outro.

Lendo Clássicos em Voz Alta
Segundas e sextas-feiras, das 18h às 19h30, no Google Meet
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Leitura em Voz Alta
Segundas-feiras, das 18h30 às 20h, no Google Meet
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Lendo em Roda (Ler)
Quintas-feiras, das 19h às 20h, no Google Meet
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Poesia de Mulheres
Leitura e debate de Água Viva, de Clarice Lispector – Segundas-feiras, das 19h às 20h15, no Zoom
Debate de obras diversas – Toda a última quarta-feira do mês, das 19h às 20h15, no Zoom
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