E se as variantes do Sars-CoV-2 chegassem em Hogwarts?

Publicado originalmente em Rede Análise COVID-19. Para acessar, clique aqui.

Autora: Melissa Markoski (@melmarkoski)

Revisores: Rute Maria Gonçalves-de-Andrade (@rutemga2); Mateus Falco (@mateuslfalco)

Imagem: https://www.sciencemag.org/news/2021/01/new-coronavirus-variant-scrambles-school-risk-calculations?utm_campaign=news_weekly_2021-01-15&et_rid=244528632&et_cid=3632011

Palavras-chave: volta às aulas; alunos como vetores; variante mais infecciosa; clusters; sequenciamento; rastreamento; testagem;

Os bruxos estão preocupados com a volta às aulas em Hogwarts depois do recesso escolar. Está complicado ir à escola através do Expresso Hogwarts. Na estação 93/4, os estudantes comentam com seus pais, bruxos ou trouxas, que estão cientes de que precisam usar máscaras, até mesmo no trem, mas nunca usaram uma máscara antes! A Hermione fica avisando a todos que o professor Flitwick já havia ensinado o feitiço Idoneam persona (que faz surgir uma máscara que fica bem ajustada ao rosto) e falado de sua importância, mas Draco Malfoy e sua turma da Sonserina insistem que não querem usar! E a preocupação de que Aquele-que-não-deve-ser-nomeado havia criado um novo feitiço chamado de Covideos desenovium, quase tão letal quanto o “Avada kedavra”, pairava sobre todos. Porém, Voldemort não ousava colocar seus pés (com unhas sujas e encravadas) em Hogwarts, pois os protocolos de higiene jamais permitiriam isso, e todos os bruxos se sentiam muito protegidos quando a história do novo feitiço surgiu. Com o passar dos dias, uma vez ou outra, aparecia algum estudante na enfermaria da Madame Pomfrey com sintomas de uma doença desconhecida; uma vez ou outra, algum estudante sumia misteriosamente… Não se sabia quem poderia ser suscetível ao feitiço ou não. Dumbledore logo instituiu que os estudantes não deviam ficar perambulando pela escola depois de certo horário, que fossem para suas casas mantendo certo distanciamento uns dos outros, coisa que até Harry, Ronny e Hermione cumpriram de prontidão… Afinal, ninguém estava entendendo muito bem o que acontecia, mas uma coisa era certa: alguém estava conjurando feitiços Covideos desenovium na escola! Teria algum comensal da morte, disfarçado de estudante ou professor com a poção polissuco, aprendido o novo feitiço?

A nossa crônica aqui hoje é para descrever o efeito da nova variante, B.1.1.7, não em Hogwarts, mas na escola Willibrord, Holanda. Até novembro, pela ausência de surtos, as crianças, que frequentavam as aulas em tempo integral, só eram obrigadas a usar máscaras em corredores e áreas comuns, não em suas classes, que ficavam distanciadas umas das outras. Nessa escola, de 818 pessoas, incluindo professores, funcionários, alunos e familiares, 123 (quase 15%) foram infectadas apenas um mês após a identificação do primeiro caso na escola, onde a nova variante foi responsável por uma grande fração desses casos. Esta semana, as autoridades de saúde pediram aos mais de 60.000 moradores da região da escola, ao norte de Roterdã, que fossem testados para o vírus, em um esforço para entender o quanto ele se espalhou na comunidade. Esse texto resume as informações prestadas pela correspondente Gretchen Vogel para a revista Science e que podem nos auxiliar em tomadas de decisão aqui no Brasil. 

A nova variante, B.1.1.7, surgiu pela primeira vez na Inglaterra, terra de J. K. Rowling e de Harry Potter, e os primeiros relatórios encontraram as maiores taxas de infecção em crianças, levantando temores de que elas poderiam ser especialmente suscetíveis. Mas análises mais recentes mostram que a distribuição etária das infecções por B.1.1.7 se parece com a das variantes anteriores, com muito menos casos diagnosticados em crianças menores de 13 anos do que em adolescentes ou adultos. Ou seja, Harry, Hermione e Ron estariam mais “protegidos”, mas poderiam pôr a professora McGonagall e o professor Dumbledore em risco. 

No início de dezembro, o médico Ewout Fanoy, do Departamento Regional de Saúde de Roterdã (órgão do Ministério da Magia da Holanda), que atendia os bruxinhos de 4 a 12 anos da escola Willibrord, se espantou com o número de casos que estavam surgindo. Ele rapidamente comunicou o Ministério da Magia: “Ficamos intrigados por haver um surto tão grande entre as crianças mais jovens. Normalmente vimos surtos significativos apenas em escolas de ensino médio e universidades”. O Dr Fanoy, inclusive, enviou uma coruja informando Hogwarts sobre isso.

Um bruxo chamado Müge Çevik, especialista em doenças infecciosas da Universidade de St. Andrews (uma escola amiga de Hogwarts, que inclusive já venceu o torneio Tribruxo), analisou os casos e constatou que a nova versão era até 50% mais infecciosa do que as variantes anteriores. Ele se preocupou com o fato de que quando a pandemia da COVID-19 se instalou na Inglaterra, o país havia fechado muitos setores da economia, enquanto as escolas permaneceram abertas. Çevik alertou a todos os bruxos que mais clusters (ou seja, grupos em outras escolas e comunidades) iriam surgir. 

Em 16 de dezembro, a Holanda fechou todas as escolas como parte de uma paralisação mais ampla. Até então, 40% dos estudantes e quase metade da equipe da Willibrord relataram sintomas respiratórios, analisados pelo Dr. Fanoy. Os casos também surgiram em outras duas escolas. No final de dezembro, uma professora de Willibrord que havia sido infectada faleceu.

Nas vésperas do Natal, com os bruxinhos já retornando às suas casas, em Lansingerland, município da escola Willibrord, um paciente acometido pelo feitiço Covideos desenovium teve sua amostra de sangue coletada para sequenciamento das partículas virais. Assim, o professor Severo Snape, especialista na Defesa Contra as Artes das Trevas, foi requisitado pelo Dr. Fanoy para decifrar a sequência do vírus e observou que ela era pouquinho diferente daquela que ele já havia  visto em Hogwarts. A nova variante foi “batizada” como B.1.1.7. O rastreamento de contactantes, ou seja, todas as pessoas com quem esse paciente esteve próximo, revelou uma conexão com a escola. No dia 26 de dezembro, o professor Snape, a pedido do Dr. Fanoy, solicitou que todos os funcionários, alunos e suas famílias fizessem testes e, três dias depois, testou 818 pessoas, identificando 123 casos. Todas as sequências de amostras de professores e alunos infectados, 46 até agora, correspondem à variante B.1.1.7. E dez membros de algumas famílias foram infectados com outras variantes do vírus também. Hogwarts imediatamente cancelou o torneio Tribruxo e as partidas de Quadribol, o que causou um grande alvoroço entre os estudantes, pois muitos haviam se preparado para os jogos… Mas, por fim, os bruxos acabaram entendendo que aquilo era necessário para diminuir o número de alunos expostos ao feitiço.

No início de janeiro, uma segunda chamada foi realizada para famílias ligadas às duas outras escolas e também a seis creches que compartilhavam suas instalações. Foram chamadas 3.000 pessoas no total, onde mais de 1.300 já foram testadas e, até agora, 2% delas são positivas. A equipe do Dr. Fanoy está sequenciando as amostras para determinar quantos carregam a variante B.1.1.7. Até agora, mais de 80% dos casos de B.1.1.7 na região estão ligados à escola, incluindo avós de alunos. Isso deixou o professor Horácio Slughorn, que tem idade avançada, bem preocupado, o que fez com que ele voltasse para o disfarce de poltrona em Budleigh Babberton… Os pesquisadores estão agora tentando descobrir quem infectou quem, usando sequências e dados sobre quando os sintomas parecem associar pistas genéticas sobre o caminho do vírus pela população.

Para entender o quanto mais longe a nova variante se espalhou, as autoridades do Ministério da Magia decidiram tentar testar toda a comunidade — todos os 60.000 moradores. Para isso, pediram ajuda a aurores de outros lugares, como os da Universidade Duke, na Carolina do Norte (Estados Unidos). A bruxa Kanecia Zimmerman e seus colegas rastrearam surtos escolares entre 100.000 alunos e funcionários nas escolas da Carolina do Norte nos últimos meses. Porém, até o momento, mesmo com a nova variante se espalhando, esses aurores acreditam que as escolas possam permanecer em risco baixo de transmissão, pois as escolas adotaram requisitos rigorosos para as aulas, como obrigatoriedade do uso de máscara, turmas com tamanho reduzido e bruxinhos frequentando as escolas apenas duas vezes por semana.

Na Noruega, onde as taxas de infecção são relativamente baixas, os surtos também são raros, mesmo com crianças frequentando aulas em tempo integral. Entretanto, os estudantes são orientados a ficar em casa se estiverem doentes. Contudo, ainda paira a dúvida se variantes mais transmissíveis prejudicarão a segurança escolar. E o que eles estão fazendo em contraparte? Testagens! Testar as crianças, os contactantes e realizar o sequenciamento das amostras de indivíduos infectados são medidas que têm contribuído muito no controle da disseminação das variantes do SARS-CoV-2. 

Aqui no Brasil, onde o nosso torneio Tribruxo (ENEM) e as partidas de Quadribol não foram suspensos, as preocupações são grandes, pois independentemente da entrada de novas variantes no país, não conseguimos fazer a contenção da disseminação da forma original do vírus. Além disso, nossos estudantes continuam a sair para Hogsmead, para tomar a cerveja amanteigada no pub Três Vassouras, onde deixam máscaras e distanciamento de lado. Depois, voltam para casa pondo em risco familiares e outras pessoas da comunidade. Por fim, o nosso Ministério da Magia precisa ajudar os aurores brasileiros em suas buscas de contra-feitiços, através de maior suporte de verba para pesquisa. Do mesmo modo, toda a sociedade, bruxos e trouxas, precisam se unir contra o feitiço Covideos desenovium. Somente com medidas rígidas de prevenção, como máscara, distanciamento e higienização, enquanto ainda não aprendemos o Vulnera sanentur (ou, Veni vacinum), contra-feitiço primordial que age para bloquear o Covideos desenovium, para fechar feridas e remover os piores efeitos da maldição, só assim poderemos nos proteger contra ela.

Melissa Medeiros Markoski

Bióloga, mestre e doutora em Biologia Celular e Molecular pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com estágios pós-doutorais em Imunologia na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA); docente da UFCSPA na área de Biossegurança e pesquisadora na área de Imunoterapia e Processos Regenerativos por células-tronco (link para o Lattes: http://lattes.cnpq.br/1872859400316329).

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