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Rogério Christofoletti
Professor de jornalismo e pesquisador do objETHOS. Twitter: @christofolettis
Se você for parar pra pensar, o programa de ontem à noite deveria ter passado na sua televisão há quatro anos, afinal, o embate entre Lula e Bolsonaro era uma atração da disputa de 2018. Por isso e muito mais havia grandes expectativas em torno desse encontro que acabou acontecendo no debate que Band, TV Cultura, Folha de S.Paulo e UOL realizaram no domingo, 28. Se havia um capítulo prometido da novela nacional, a dívida foi saldada, mas o que assistimos também permitiu perceber com mais nitidez que os debates eleitorais na televisão não são mais o que costumavam ser.
Em pleitos anteriores, pra muita gente, esses debates eram capazes não só de definir os votos dos indecisos como também poderiam promover viradas históricas. Desta vez é possível arriscar que tenham menos peso, pois as condições são bem diferentes. Primeiro: embora a televisão continue sendo um poderoso meio para alcançar eleitores, nossa atenção está dividida entre muitas opções de informação: há sabatinas em vários meios, entrevistas em podcasts e canais do YouTube, e as redes sociais fervilham. Segundo: pesquisas mostram que 75% dos eleitores já decidiram em quem votar e que estão indispostos a mudar. A maioria dos votos parece consolidada, o que torna o contingente de indecisos uma parcela mais limitada e sensível ao que se fala nos debates televisivos. Terceiro: a atmosfera nacional está saturada de debate político, pois a impressão é que estamos em permanente campanha eleitoral desde 2018. Somados os três aspectos, temos menos atenção para os debates na TV, menos indecisos curiosos para assisti-los e a sua realização em si não é propriamente uma novidade na arena pública.
Chega disso?
É claro que essas condições não esvaziam de valor os debates, mas é preciso encarar a coisa com franqueza: eles não são mais tão essenciais quanto antes. A conclusão pode fazer os afoitos apostarem que esses programas devam acabar, mas isso é um erro. Os debates têm funções sociais e cívicas que não desaparecem apenas porque deixaram de ocupar a centralidade no processo de comunicação entre candidatos e eleitores. Junto com a propaganda eleitoral no rádio e na TV, com as campanhas de partidos, coligações e federações, e com as coberturas jornalísticas, os debates alimentam e energizam o ambiente coletivo em torno da necessidade de escolher representantes. E pra que mais servem?
Debates na TV permitem eventualmente extrair uma ou outra declaração polêmica, arrancar alguns compromissos de campanha, e testar a capacidade comunicativa dos oponentes. Sim, desde sempre, política não é só uma arte de acomodar contrários, de privilegiar interesses e definir agendas. É também uma arte de convencer pessoas a aderir a um projeto de comando. Os filósofos gregos já falavam da necessidade de aprimorar a oratória e de envolver as massas com discursos bem feitos.
Debates também podem trazer à tona assuntos importantes e que são ignorados muitas vezes, como foi com o machismo e a misoginia que eclodiram com força!
Em alguma medida, os debates na TV permitem também promover justiça e equilíbrio à medida que garantem tempos de fala e condições de aparição iguais entre os participantes. Isso não se vê, por exemplo, na propaganda eleitoral, onde a distribuição de tempo é proporcional à presença no Congresso Nacional. Partidos com mais cadeiras no Parlamento soterram candidatos das legendas nanicas. Os debates na TV democratizam a vitrine, embora nem sempre todos os candidatos sejam convidados a participar…
Em tempos de redes sociais, debates desse tipo têm outra função também: inflamar a militância, gerando material para “cortes”, memes e conteúdos de mobilização. Para disputar na gritaria das redes e fazer prevalecer a própria narrativa, é um prato daqueles.
E o jornalismo?
Há razões de sobra para manter os debates televisivos na “dieta cívica” nacional. Custam menos que a propaganda eleitoral, que de gratuita só tem o nome, pois está apoiada em renúncia fiscal de mais de R$ 737 milhões este ano. Geram mais interesse e audiência que as propagandas, e alimentam o debate público – basta ver o engajamento nas redes sociais antes e depois dos programas.
Os debates eleitorais vitaminam nossas pretensões democráticas, mas poderiam trazer outras oportunidades, inclusive para o jornalismo, incentivando emissoras e profissionais a experimentar novos formatos e linguagens. O realizado por UOL, Band, Folha e TV Cultura recorreu ao monitoramento de temas em tempo real na internet, com apoio do Google e YouTube. Na verdade, isso não é inovador nem jornalístico, pois exibir infográfico com a lista dos assuntos mais procurados num motor de busca não exige qualquer esforço de apuração; é só publicidade travestida de serviço…
Mas há caminhos a percorrer. Quem sabe um dia contemos com fact-checking em tempo real com mediador desmentindo candidato antes do intervalo? Quem sabe, nas próximas vezes, não tenhamos só entrevistadores brancos? Quem sabe as emissoras criam formas mais efetivas de interação e participação do público? Aliás, é possível pensar em formatos menos engessados, com uma programação mais lúdica e atraente, sem abdicar do valor informativo?
Nunca é fácil planejar e promover esses programas. A tarefa envolve centenas de profissionais durante meses, e é resultado de negociações quase infinitas. Para além dos desafios técnicos, há ainda o manejo dos interesses partidários e a administração de egos gigantescos. Mas sejamos francos mais uma vez: isso se repete em todas as eleições, independente de quem esteja disputando, e não temos pistas de que possa mudar. Talvez se possa mexer no estreito espaço em que ainda sobrevive a imaginação.
É fato que os debates eleitorais não são mais os mesmos, mas a arena pública e a política também não são. Jornalistas e meios poderiam aproveitar esses ventos de mudança para se arriscar. Há quem esteja disposto a modificar o tom e os formatos das coberturas, mas – grosso modo – elas ainda parecem acanhadas, presas a modelos pouco convidativos para os mais jovens, e incompreensíveis para grandes parcelas da população. Mudar requer coragem, é verdade, pois implica riscos e eventuais prejuízos. Mas talvez o jornalismo tenha menos a perder que os candidatos que disputam os nossos votos…