Publicado originalmente em Agência Bori. Para acessar, clique aqui.
Highlights
- Relatório inédito mostra que estudos com falhas metodológicas foram amplamente citados na CPI da Covid
- Didatismo e relevância pública foram os principais critérios para convite de cientistas depoentes
- Ciência brasileira precisa se organizar para ter impacto em políticas públicas
Estudos com falhas metodológicas e referências científicas enviesadas foram amplamente utilizados por depoentes negacionistas durante a CPI da Pandemia, em 2021, o que confundiu a qualidade do debate público sobre as evidências científicas. É o que revela o relatório inédito “Evidências em Debate”, elaborado pelo estúdio de inteligência de dados Lagom Data em parceria com o Instituto Serrapilheira e com a Agência Bori, divulgado na quinta-feira (16).
O documento mostra que os cientistas convidados para depor foram escolhidos com base na sua relevância pública e didatismo e não exatamente por serem referência científica direta na área. A maioria desses convidados, inclusive, não havia publicado estudos relevantes sobre Covid-19 em 2021.
O estudo se debruçou sobre a transcrição dos debates, compostos por mais de três milhões de palavras, ditas em 69 sessões da CPI da Covid-19 ao longo de seis meses. A análise do material se valeu de métodos quantitativos e qualitativos para localizar trechos que indicavam referências científicas nos discursos dos depoentes e, em seguida, identificar a que estudos, pesquisadores e instituições eles se referiam. “Também procuramos caracterizar os estudos mobilizados nos debates para entender o que estava tendo impacto”, explica Marcelo Soares, editor do relatório e diretor do Lagom Data.
Uma das estratégias comuns dos negacionistas levantada pelo relatório foi o uso de uma retórica de quantidade de estudos científicos para comprovar sua tese. A chamada “tropa de choque” governista chegou a publicar um voto em separado listando centenas de estudos com evidências sobre a eficácia de medicamentos como a cloroquina – classificadas como duvidosas. “Quando se vai olhar, boa parte está em preprint (ou seja, não passou pela revisão por pares), incluindo até cartas do leitor enviadas para revistas científicas para criticar outros estudos”, aponta Soares.
A centralidade no debate de evidências científicas de baixa qualidade, feito de forma mais intensa por negacionistas, mas também utilizadas por depoentes da oposição do governo Bolsonaro, geralmente para criticá-las, empobreceu o debate público sobre a Covid-19. “Poucos bons estudos foram debatidos, passando ao largo da maior parte da produção científica sobre a Covid feita no Brasil. Pesquisas sobre os efeitos da omissão do governo no combate à pandemia foram pouco citadas ou, quando o foram, mobilizaram pouco os integrantes da CPI”.
Essa é a primeira tentativa de se construir uma metodologia para avaliar como as evidências científicas aparecem ou não no debate público. Para Soares, ao mostrar como a ciência ainda interage pouco com a esfera política, o relatório reforça a necessidade da comunidade científica se organizar para que a ciência de qualidade tenha mais impacto em políticas públicas – ainda mais no contexto atual de reconstrução política.