Cemitérios traduzem mudanças sociais na capital paraense

Publicado originalmente em Jornal Beira do Rio. Para acessar, clique aqui.

Por Adrielly Araújo, com edição de Rosyane Rodrigues Fotos Acervo da Pesquisa

Em todas as sociedades que conhecemos, há formas diferentes de lidar com os mortos. Em algumas partes do mundo, velar e sepultar os corpos de entes queridos não é a prática mais comum. Diferentes comportamentos podem ser justificados pela relação estabelecida entre os grupos sociais, os territórios e a religião.

“Quando consideramos a cidade como território e a religião como um fenômeno cultural, evidenciamos que essa analogia é recíproca, visto que, assim como essas sociedades interferem em suas cidades, a cidade também vai interferir nas estruturas sociais desses grupos”, afirma a arquiteta Amanda Roberta Botelho Menezes. A morte é vetor transformador de estruturas sociais e, de acordo com a pesquisadora, os cemitérios materializam a visão de mundo dos grupos que os idealizam.

Amanda Botelho Menezes investigou as transformações dos espaços fúnebres na cidade de Belém no século XIX em sua dissertação Santa Izabel e Soledade: O eterno e o mutável nas alterações dos espaços cemiteriais na Belém do Século XIX, apresentada no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU/ITEC), da Universidade Federal do Pará, orientada pela professora Celma Vidal.

“As mudanças nos espaços cemiteriais podem ser interpretadas pelo paradigma que a morte gera na consciência do indivíduo: que, apesar de fingirmos que ela está longe da nossa realidade, em algum momento, ela retornará para nos mostrar que sempre esteve ali”, explica a arquiteta.

De acordo com a pesquisadora, a morte na Belém do século XIX era uma ferramenta educadora do ritual católico, manifestando em todo praticante a preocupação com uma boa morte, o qual se preocupava com zelo para a chegada dela. “Estas condições faziam com que o cristão preferisse que sua inumação fosse perto ou até mesmo dentro das igrejas, pois tinha a crença de que quanto mais próximo do solo sagrado, maior seria a proteção divina da alma”, relata Amanda Menezes.

Influências das cidades oitocentistas europeias

Ainda no século XIX, as relações com os rituais religiosos mortuários mudaram em Belém quando aconteceu uma terceira tentativa de construção de um espaço destinado unicamente para o enterramento, o cemitério Nossa Senhora da Soledade, que se mantinha afastado do núcleo urbano. “Essas novas práticas e posturas foram possíveis graças ao processo civilizador herdado da nova forma de idealizar as cidades oitocentistas na Europa, e, consequentemente, uma nova forma de ver a morte”, esclarece Amanda Menezes.

Em Belém, a apropriação do espaço cemiterial não ocorreu de maneira espontânea. Imposições legais foram necessárias para que o enterramento no cemitério de Nossa Senhora da Soledade tivesse início. A pesquisadora conta que a nova concepção do morrer e enterrar com viés racional significava um rompimento com as crenças religiosas que cercavam os cristãos da época.

“Após absorção desse novo costume, entre os séculos XIX e XX, o cemitério se tornou um lugar elitizado e hierarquizado, principalmente nos períodos de epidemias, quando os custos fúnebres eram altos para grande parte da população da capital”, conta a pesquisadora.

O problema das epidemias continuou a alarmar o governo e a população, clamando por novos espaços de sepultamento na capital paraense. Assim, foi inaugurado o cemitério de Santa Izabel, localizado distante do centro urbano, mantendo os ideais de modernidade preconizados na época.

“É importante ressaltar que o processo de modernização de Belém, na virada do século XIX para o XX, toma sentidos opostos à localização do bairro Guamá. A planificação do bairro Marco possibilita avanços expansionistas da cidade em sentido norte e leste, mantendo, assim, o significado de arrabalde do bairro em que o cemitério se situa até meados do século XX”, explica Amanda Botelho.

A arquiteta entende que, apesar de os espaços cemiteriais serem locais renegados pela sociedade oitocentista, eles inevitavelmente retornam para as dinâmicas sociais, pois se tornam uma “caixa de memórias congeladas” daqueles que tiveram entes enterrados no seu solo.

Representação do eterno e do mutável num só tempo

“A arquitetura é o reflexo espacial do ser que a habita e, assim como ocorre no espaço habitado pelos vivos, a dinâmica permanece na morada final. Essa foi a premissa inicial e mais forte para a decisão de dedicar minha vida acadêmica aos estudos cemiteriais”, conta Amanda Roberta Botelho Menezes sobre a escolha do tema.

Amanda explica que, durante a pesquisa, ficou claro o quanto as sensações subjetivas em relação à morte não geram somente consequências individuais, mas modificam sociedades inteiras, que tendem a alterar espaços internos dos cemitérios, de seus entornos e até as dinâmicas de expansão das cidades.

“Quando nos voltamos para a cidade real e para o aspecto de territórios visíveis do espaço em Belém, vemos que o centro urbano possui todas as atividades que uma cidade moderna se orgulha de ter, como o comércio e o lazer. Entretanto o subúrbio só foi englobado nos planos urbanísticos de transporte no fim do século XIX, ou seja, o pouco habitado bairro Guamá ficava restrito às atividades que não eram consideradas higiênicas, como os cemitérios e os asilos”, explica a autora do estudo.

O Cemitério de Nossa Senhora da Soledade é inaugurado no início de uma fase de desenvolvimento econômico local, o que explica a sua presença na área central urbana. Seu fechamento ocorre 30 anos após a inauguração. Diferente do Cemitério de Santa Izabel, situado em área considerada subúrbio da cidade, mantido afastado do núcleo urbano por propostas urbanísticas de expansão que percorreram sentidos territoriais opostos aos bairros do sul de Belém.

“Por fim, verificamos a dualidade temporal dos cemitérios: se apresentam como ‘eterno’, pois são cápsulas temporais e espaços impossíveis de serem apagados da paisagem urbana física, ao representarem o passado e a história de uma sociedade; e como ‘mutável’, pois sofrem mudanças internas e no seu entorno de acordo com as crenças, os rituais e as representações da morte na sociedade. Ou seja, figurativa e literalmente, os cemitérios são o passado e o futuro de todas as sociedades”, conclui a arquiteta.

Beira do Rio edição 161

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