Casal de pastores é preso acusado de maus-tratos em Comunidades Terapêuticas de sua propriedade

Publicado originalmente em Coletivo Bereia por Viviane Castanheira e Naira Diniz. Para acessar, clique aqui.

Durante o mês de setembro circularam notícias e comentários em mídias sociais sobre a prisão de um casal de pastores, envolvido em caso de maus-tratos contra internos em Comunidade Terapêutica de sua propriedade. Bereia checou o caso. 

Em 29 de agosto passado,a Polícia Civil de Goiás resgatou 50 pessoas, todos homens, entre 14 a 96 anos, incluindo pessoas com deficiência intelectual, dependentes químicos, um cadeirante e um homem com espectro autista. Segundo a Polícia, em nota oficial, o local onde as vítimas foram encontradas era uma clínica clandestina, situada na zona rural do município de Anápolis (GO), de propriedade do casal de pastores evangélicos Ângelo Mário Klaus Júnior e Suelen Klaus . 

Ainda de acordo com a nota da PC de Goiás, os pacientes eram levados ao local de maneira ilegal e era cobrado um salário mínimo por mês de cada paciente. Muitos foram encontrados pelos policiais com sinais de confusão mental, sedação, desnutrição e lesões graves. 

Após desarticular essa primeira clínica clandestina, a Polícia Civil goiana encontrou mais 43 pessoas em condições semelhantes, em uma outra unidade, também de propriedade do casal, no dia 31 do mesmo mês, após denúncias de familiares que não encontraram seus entes entre os pacientes já resgatados

Imagem: Reprodução do site da Polícia Civil de Goiás 

 Os pastores foram indiciados por crimes contra 73 pacientes, além deles, outras quatro pessoas que trabalhavam no local também foram acusadas. Todos responderão por tortura, sequestro e cárcere privado. Suelen foi presa durante a operação na primeira clínica. Klaus Júnior fugiu dos policiais na ocasião, mas se apresentou na delegacia, em 02 de setembro. Ao se entregar, ele tentou inocentar a mulher das acusações e disse que eles estavam divorciados e ela apenas trabalhava no setor administrativo, portanto nada sabia do tratamento aplicado aos pacientes. 

No entanto, a Polícia Civil indiciou Suelen Klaus por afirmar ter provas do envolvimento dela no crime. Em 19 de setembro, o Tribunal de Justiça de Goiás concedeu alvará de soltura para a pastora. Conforme a decisão, ela deverá cumprir prisão domiciliar com a utilização de tornozeleira eletrônica. A Pra. Suelen ocupava um cargo comissionado, com salário mensal de R$ 5 mil, na Prefeitura de Anápolis e foi exonerada no dia seguinte à primeira operação policial. 

Imagem: Reprodução do site do Portal Notícias Goiás

Imagem: Reprodução do site G1

Suelen e Angelo Mario Klaus Júnior são pastores da Igreja Batista Nova Vida de AnápolisBereia tentou contato com a denominação em um número que constava na página da igreja no Facebook, e a própria Pra. Suelen Klaus atendeu a ligação. Entretanto, disse não ter nada a declarar, apenas pediu, chorando muito, solidariedade em oração, mas se recusou a falar. Ao fundo da ligação, foi possível ouvir que havia uma reunião de oração. 

Dois dias depois, Bereia tentou um novo contato, desta vez por WhatsApp. Todavia, ao visualizar a mensagem, a pastora bloqueou o número utilizado, sem dar retorno. Uma foto do casal de pastores é utilizada no perfil do número contactado.

Imagem: Reprodução da página da Igreja Batista Nova Vida no Facebook

Suelen Klaus foi candidata a vereadora, pelo município de Anápolis (GO), durante as eleições de 2020. A pastora também era conhecida por realizar campanhas para arrecadar verbas em apoio a causas sociais. Uma delas foi a campanha online para arrecadar fundos para trazer Emma, uma menina de 8 anos que vive em Luanda, capital de Angola, para perto da família que mora no Brasil.  (Suelen Amaral Klaus – Perfil de usuário | Vaquinhas online). 

Imagem: Reprodução do site Vakinha.com

Em entrevista à TV Anhanguera, afiliada à Rede Globo no estado de Goiás,  um dos pacientes resgatados na clínica dos pastores descreveu o lugar como “o inferno” e “o pior lugar que já estive na minha vida”. “Tinha gente para bater nos outros. Lá é um inferno. Eu nunca vi um trem daquele. É o pior lugar que já estive na minha vida”, disse o entrevistado.

As vítimas foram acolhidas pelos serviços de saúde mental e assistência social da Prefeitura de Anápolis. Alguns dos resgatados precisaram ser hospitalizados e foram conduzidos pelo Serviço Móvel de Urgência (Samu). Um outro  grupo foi conduzido para o estádio de futebol de Anápolis, onde recebeu alimentação, higiene e primeiros socorros. As vítimas foram identificadas e iniciou-se uma investigação para localizar seus familiares..

Comunidades terapêuticas: definição, estatuto e base no Brasil

Segundo o  governo federal, Comunidades Terapêuticas são entidades privadas, sem fins lucrativos, que realizam gratuitamente o acolhimento de pessoas com transtornos decorrentes do uso, abuso ou dependência de substâncias psicoativas, em regime residencial transitório e de caráter exclusivamente voluntário.  O período de acolhimento varia de 3 meses a 12 meses, conforme o projeto terapêutico da entidade. O principal instrumento utilizado nas Comunidades Terapêuticas durante o tratamento é a convivência entre as pessoas.  As CTs integram o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD).

Imagem: Reprodução do site do Governo Federal

 De acordo com a pesquisadora do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA)  Beatriz Brandão, a primeira comunidade terapêutica do Brasil, surgiu em 1968, na cidade de Goiânia (GO), denominada Desafio Jovem, oriunda de um movimento evangélico. Já em 1978, foi fundada a Comunidade Terapêutica Fazenda Senhor Jesus, em Campinas, fruto de um movimento católico,coordenado pelo Padre Haroldo Rahm, jesuíta norte americano. A partir daí, , afirma Beatriz Brandão, houve um boom de CTs em todo o Brasil, durante os anos 80, já que o SUS tinha apenas os manicômios para o tratamento dos dependentes químicos, que se estendeu por outras décadas.

No governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (2019-2022), no entanto, esse modelo de tratamento ganhou visibilidade e foi a principal política pública de combate e tratamento à dependência química, de acordo com um estudo realizado pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e pela ONG Conectas Direitos Humanos, publicado em abril de 2022. A pesquisa foi baseada em dados oriundos da Lei de Acesso à Informação (LAI), e analisou o financiamento público às chamadas CTs, principalmente pelo governo federal, mas também sobre verba investida por prefeituras, governos estaduais e emendas parlamentares. 

Esta realidade começou a tomar forma a partir do Decreto Nº 9.761, da Nova Política Nacional sobre Drogas, assinado por Bolsonaro, em 11 de abril de 2019. Com isso, o foco saiu da redução de danos para a abstinência, reconhecendo as Comunidades Terapêuticas como a forma de cuidado, tratamento e acolhimento do dependente químico. 

Pontos de vista 

Questionado pelo Bereia a respeito das Comunidades Terapêuticas e o caso da clínica ilegal em Anapólis, o secretário da Confederação Nacional de Comunidades Terapêuticas (CONFENACT) Egon Schlüter afirma não ter tido conhecimento do caso. E que, para evitar que acontecimentos como este se repitam, deve haver mais fiscalização. 

“Para que a legislação que regulamenta as clínicas e que regulamenta as CTs seja efetivamente aplicada, o poder público precisa avançar na fiscalização. E a nós cabe denunciar estes desserviços para as Vigilâncias Sanitárias fazerem o mesmo”, propôs Schlüter, que também é diretor da Cruz Azul no Brasil (entidade cristã evangélica interdenominacional sem fins lucrativos, voltada para a promoção da vida sem drogas). 

Bereia também ouviu o vice-presidente do Coletivo de Luta Antimanicomial Nacional (CLAN) e militante do Movimento Pró-Saúde Mental Kleidson Oliveira Bezerra Ele é sobrevivente de uma clínica clandestina como a que foi fechada em Anápolis e fugiu de uma comunidade terapêutica, em Minas Gerais. O acolhido havia sido forçado pelo pastor a capinar, mesmo estando com a mão ferida em um acidente sofrido antes da internação. 

Após essa experiência traumática, demorou muito para Kleidson Bezerra  confiar de novo em um tratamento para dependência química, doença que o acometia desde os 12 anos, quando fugiu de casa. À época, ele estava com 43 anos. Hoje, livre das drogas há nove anos, após tratamento em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), ligado ao SUS, Bezerra atua na luta pela popularização deste tipo de tratamento no país. 

O militante do Movimento Pró-Saúde Mental qualificou as CTs e suas ações de combate ao uso de drogas como desumanas, e defende a autonomia do paciente para deliberar sobre o próprio tratamento e um trabalho em parceria para que seja adequado. “Não existe entidade religiosa no mundo capaz de tirar o indivíduo do vício a não ser por meio da vontade pessoal de cada um com um trabalho de rede”, acredita. 

Kleidson Bezerra também afirmou não conhecer qualquer Comunidade Terapêutica que siga as normas estabelecidas por médicos, psicólogos e especialistas em dependência química. “Estas clínicas são depósitos de pessoas, não cuidam da saúde mental e geral dos indivíduos, ainda  impõem regras que violam vários direitos humanos dos acolhidos a começar pela liberdade religiosa”, conclui.

Bereia verificou, por meio da análise do conteúdo apurado, referentes ao resgate das vítimas de maus-tratos nas clínicas clandestinas fechadas em Anápolis (GO), que os estabelecimentos em questão são, de fato, do casal de pastores Ângelo Mário Klaus Júnior e Suelen Klaus e que os pacientes sofriam maus-tratos, segundo os registros policiais. 

A checagem levantou um problema maior em relação às diversas Comunidades Terapêuticas, ligadas às diferentes entidades religiosas em todo o território brasileiro. A falta de fiscalização adequada desses espaços e dos tratamentos implantados é um fato identificado na pesquisa. É necessária a verificação permanente das condições de salubridade, alimentação e recursos humanos como médicos, psicólogos, bem como a realização de pesquisas e relatórios anuais que demonstrem se há eficácia no tratamento preconizado pelas CTs. 

Outro problema é o uso político-religioso da questão, que favorece a proliferação de clínicas sem condições de funcionamento, como se verificou, de forma dramática, em Anápolis.

Referências de checagem: 

Polícia Civil de Goiás.

https://www.policiacivil.go.gov.br/delegacias/regionais/pcgo-resgata-50-vitimas-de-carcere-privado-e-tortura-em-clinica-clandestina-na-zona-rural-de-anapolis/ Acesso em 27 set2023

https://www.policiacivil.go.gov.br/delegacias/regionais/policia-civil-resgata-mais-43-pessoas-confinadas-em-clinica-clandestina-de-anapolis/ Acesso em 27 set 2023

G1. https://g1.globo.com/go/goias/noticia/2023/09/14/casal-de-pastores-dono-de-clinicas-clandestinas-e-indiciado-por-crimes-contra-pacientes.ghtml – Acesso em 27  set 2023

Metrópoles. https://www.metropoles.com/brasil/saiba-quem-sao-pastores-donos-de-clinicas-suspeitas-de-tortura – Acesso em 27 set 2023

Portal de Notícias de Goiás. https://portalnoticiasgoias.com.br/justica-concede-alvara-de-soltura-a-pastora-dona-de-clinica-clandestina/ – Acesso em 27 set d 2023

Linkedin. https://www.linkedin.com/in/suelen-amaral-klaus-4a127a1a0/ – Acesso em 27 set 2023

Facebook. https://www.facebook.com/IgrejaBatistaNovaVidaAnapolis/ – Acesso em 27 set 2023

Diário da Cidade –  https://www.diariocidade.com/go/anapolis/eleicoes/2020/candidatos/vereador/pastora-suelen-klaus-77000/ – Acesso em 27 set2023

Vakinha.com – https://www.vakinha.com.br/usuario/4586074 – Acesso em 27 set 2023

G1.https://g1.globo.com/go/goias/noticia/2023/08/31/paciente-de-clinica-clandestina-onde-50-pessoas-foram-resgatadas-com-desnutricao-e-graves-ferimentos-fala-das-condicoes-do-local-la-e-um-inferno.ghtml – Acesso em 27 set 2023

Wiki Favelas.  https://wikifavelas.com.br/index.php/Comunidades_Terap%C3%AAuticas – Acesso em 27 set2023

Conectas. https://www.conectas.org/wp-content/uploads/2022/04/Levantamento-sobre-o-investimento-em-CTs-w5101135-ALT5-1.pdf – Acesso em 27 set 2023

Portal do Governo Federal – http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/decreto/D9761.htm – Acesso em 27 de setembro de 2023

https://www.gov.br/pt-br/servicos/acessar-comunidades-terapeuticas#:~:text=Entende%2Dse%20por%20Comunidades%20Terap%C3%AAuticas,car%C3%A1ter%20exclusivamente%20volunt%C3%A1rio%20(espont%C3%A2neo). – Acesso em 27 set 2023

Folha de S. Paulo. https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/01/governo-lula-e-criticado-por-criar-area-para-comunidades-terapeuticas-apos-pressao-de-religiosos.shtml – Acesso em 27 set 2023

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Foto de capa: site da Polícia Civil de Goiás

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