Publicado originalmente em Agência Bori. Para acessar, clique aqui.
Por Elisabetta Recine
Já ao ser anunciada pelo Secretário Geral da Organização das Nações Unidas, no final de 2019, a Cúpula Mundial sobre Sistemas Alimentares, que acontece em setembro de 2021, gerou questionamentos por desconsiderar instâncias existentes e processos em andamento do próprio sistema da ONU. Considerando que os sistemas alimentares impactam direta ou indiretamente em todas as dimensões da agenda de desenvolvimento sustentável para 2030, a Cúpula tem o objetivo anunciado de apresentar uma agenda de ações para impulsionar o alcance dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).
Atualmente, há inúmeras concepções de sistemas alimentares. Para a Cúpula foi adotado que ‘sistema alimentar’ se refere ao conjunto de atividades envolvidas na produção, transformação, transporte e consumo de alimentos. As grandes questões mundiais e nacionais como crise climática, devastação ambiental, fome, obesidade, fazem o tema ganhar importância incontestável. O relatório da revista Lancet sobre “sindemia global” argumenta que os desafios acima têm como determinante comum, justamente, o sistema alimentar agroindustrial. Portanto, nada mais potencialmente oportuno que uma ampla discussão para apontar caminhos de transformação profunda.
No entanto, o processo de organização da Cúpula de Sistemas Alimentares, sua coordenação e composição das diferentes equipes levantam dúvidas quanto aos seus resultados. A coordenação geral está nas mãos de Agnes Kalibata, ex-presidenta da Aliança para a Revolução Verde na África (AGRA) e não são públicos os critérios utilizados para composição do Grupo Científico e dos cinco grupos temáticos responsáveis pelo detalhamento das propostas que comporão o documento final.
Apesar de estar sendo anunciada como a “Cúpula dos Povos”, o Mecanismo da Sociedade Civil do Comitê de Segurança Alimentar da ONU faz duras críticas ao processo por estarem “escolhendo a dedo” as representações deste setor. Os movimentos sociais e organizações que defendem transformações profundas nos sistemas alimentares decidiram não participar do processo oficial e denunciam sua captura corporativa. Esta captura se expressa na própria linguagem, quando as grandes bandeiras da sociedade civil são utilizadas, mas esvaziadas de sentido; no uso de evidências que foram geradas por pesquisadores financiados por aqueles que se beneficiam dos resultados obtidos; nos processos decisórios onde o setor privado e suas fundações têm igual ou maior poder que governos.
A análise dos documentos atualmente disponíveis indica que as propostas a serem apresentadas poderão ampliar as iniquidades e dependência dos povos e países por expandirem processos já em andamento nos sistemas alimentares como concentração, desmaterialização, digitalização e financeirização.
Há um conjunto de visões e propostas que, infelizmente, a Cúpula não irá atender. A alimentação como um direito fundamental e não como uma mercadoria é uma dessas visões. O direito dos povos de definirem suas práticas de produção e consumo e terem as condições adequadas para exercê-las é outra visão não atendida, assim também como a proposta de mudança do paradigma que rege os sistemas alimentares na direção de uma abordagem holística, multissistêmica e agroecológica. A base desta transformação é uma governança que tenha sua centralidade nos direitos humanos, na igualdade de gênero, na autonomia das comunidades, na responsabilização e responsabilidade intergeracional; na democratização da tomada de decisões enraizada no interesse e bem-estar públicos. Com cartas já marcadas, a Cúpula perde a chance de discutir esses processos — e de propor uma mudança no nosso sistema.
Sobre a autora
Elisabetta Recine é docente da Universidade de Brasília e integra o Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutricional (OPSAN/UnB). Integrante de diversos coletivos como Núcleo Nacional da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, Grupo Coordenador do GT de Alimentação e Nutrição da Abrasco e Comissão Organizadora da Conferência Popular pela Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional.