A crise no Afeganistão e nossa necessidade de opinar sobre tudo

Publicado originalmente em Instituto Palavra Aberta por Mariana Mandelli. Para acessar, clique aqui.

Em 7 de outubro de 2001, um domingo, quando o então presidente dos Estados Unidos George W. Bush ordenou os primeiros ataques aéreos contra o Afeganistão, as imagens dos bombardeios tomaram televisões mundo afora. Não havia Facebook,  YouTube, Instagram, Twitter, WhatsApp ou TikTok, e basicamente todas as informações e análises que tínhamos dos conflitos pós-11 de setembro vinham da imprensa internacional.

Novamente num domingo, no último 15 de agosto, o grupo fundamentalista Taleban tomou Cabul, capital afegã, instalando-se novamente no poder do país. A velocidade da ofensiva surpreendeu analistas e jornalistas e fez com que o tema ganhasse escala na imprensa e, consequentemente, nas redes sociais, onde brotou uma infinidade de fotos e vídeos dos combatentes pela cidade.

No intervalo de duas décadas entre a invasão estadunidense e a retomada taleban, as formas pelas quais nos informamos e nos comunicamos sofreram mudanças profundas. Um conceito que apreende essa ruptura é o de pós-verdade, que ganhou força nos últimos anos ao caracterizar uma realidade em que os fatos são menos importantes para a opinião pública, ou para parte dela, do que valores e crenças pessoais pautadas por emoções.

Por essa ótica, um evento da magnitude da crise no Afeganistão não passaria ileso pelos fenômenos que orbitam especialmente nas redes sociais, como a desinformação, popularmente conhecida como “fake news”. Isso porque uma tensão como essa, envolvendo atores estratégicos da política internacional, causa aflição e temor, gerando interesse e engajamento de grandes proporções nessas plataformas.

O problema é que, por mais legítima que seja a preocupação com os afegãos e afegãs, a pressa em acompanhar o conflito em tempo real e a necessidade geral de opinar sobre tudo trazem à tona nossa ignorância sobre temas relacionados ao Oriente Médio e à cultura islâmica, o que pode endossar estereótipos preconceituosos e espalhar islamofobia.

Mais questionável do que o compartilhamento de fotos descontextualizadas de tumultos em aeroportos, como vem ocorrendo com uma imagem de 2013 nas Filipinas, divulgada como se tivesse ocorrido nos últimos dias em Cabul, é o uso indiscriminado de montagens envolvendo mulheres muçulmanas. Sob o regime do Taleban nos anos 90, elas perderam todos os seus direitos e foram oprimidas das formas mais violentas possíveis – por isso, a temeridade de que esse cenário volte é quase palpável.

Tanto é que, segundo levantamento da Bites, agência de análise de dados digitais, do total de 53.320 artigos produzidos nas últimas 24 horas por sites de notícias no mundo todo, 29% tratavam da questão feminina no Afeganistão.

Contudo, o debate sobre os costumes islâmicos e o papel das mulheres nessas sociedades vai muito além de memes que reduzem a sua religiosidade e autonomia. A antropóloga Lila Abu-Lughod, da Universidade de Columbia, discorre sobre isso em um artigo de 2002 intitulado “As mulheres muçulmanas precisam realmente de salvação?”. Ela retoma a origem e os significados diversos dos véus no mundo muçulmano e afirma que seu uso “não deve ser confundido e nem usado como padrão para a falta de agência” das afegãs, como as sociedades ocidentais costumam apontar. “Talvez seja hora de desistir da obsessão americana com o véu e focar em questões mais sérias com as quais as feministas e outras deveriam de fato estar preocupadas”, reforça a antropóloga.

Não se trata, de forma alguma, de minimizar os riscos a que a população feminina está sujeita a partir de agora sob um regime extremista, mas sim de compreender suas reais demandas. Como lembra Abu-Lughod, não foi o Taleban que inventou a burca.

Simplificar questões complexas como conflitos históricos confunde, manipula e desinforma, podendo gerar inclusive discursos estigmatizantes. Um meme com duas imagens da jornalista Clarissa Ward, correspondente da CNN, mostra bem isso. A montagem traz um “antes e depois” da tomada de Cabul, com fotos dela sem e com véu, respectivamente. A própria Ward apontou a imprecisão dessa ideia, dizendo que sempre cobriu a cabeça quando gravava externamente no Afeganistão.

É muito fácil para nós, ocidentais, lermos determinados contextos orientais com a lente colonialista. É preciso muito mais para que a nossa empatia pela situação dos afegãos e principalmente das afegãs faça sentido. Não compartilhar desinformação e discursos totalizantes é um caminho. Buscar fontes nativas, como pesquisadores e influenciadores locais, que se debruçam sobre o tema e vivenciam esses contextos há décadas, é outro. Conhecer e informar-se sobre culturas distintas da nossa, mesmo que tão distantes, é sempre melhor do que compartilhar achismos e narrativas enviesadas.   

*Mariana Mandelli é coordenadora de comunicação do Instituto Palavra Aberta

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