A crise na cultura em meio à catástrofe climática

Publicado originalmente em Jornal da UFGS por Rafaela Bobsin. Para acessar, clique aqui.

Cultura | Setor é um dos atingidos pelas cheias que afetam o Rio Grande do Sul e trabalhadores da área demonstram preocupação

*Foto: Flávio Dutra/JU

No dia 03 de maio o lago Guaíba bateu recorde de cheia e inundou Porto Alegre. Entre esse dia e a última sexta, 17 de maio, o engenheiro de som Olimpio Machado não conseguia chegar ao seu estúdio localizado entre os bairros Menino Deus e Cidade Baixa. Foram duas semanas de incerteza sobre o quanto o local de trabalho, localizado no segundo andar de um prédio, tinha sido atingido.

“[Antes de alagar] Eu vi que estava muito forte a chuva. Eu fui no estúdio, peguei pouquíssimas coisas só para conseguir trabalhar de casa – mas tipo assim, três, quatro itens – e o resto todo ficou lá”

Olimpio Machado

Olimpio e sua companheira também precisaram sair do apartamento em que moram, localizado no Menino Deus, no dia 6 de maio, para onde puderam retornar na última sexta, 17. “Tive acesso ao estúdio na sequência: nada foi danificado para além de alguma coisa de estrutura do prédio, como portas e painéis de energia. Só tem muita umidade no ambiente, aí estou removendo as coisas de lá”, conta.

A principal fonte de renda de Olimpio vem do trabalho em shows e eventos ao vivo. Ele tinha 13 eventos marcados no mês de maio – todos foram cancelados. O trabalho no estúdio era uma renda complementar. Com isso, pediu ajuda a amigos através das redes sociais. Para ele, seria importante a realização de um auxílio emergencial, como o que ocorreu na pandemia.

Os efeitos das enchentes na cultura

As chuvas que atingiram o Rio Grande do Sul afetaram diversos trabalhadores que, como Olimpio, fazem parte do setor cultural. Uma enquete realizada pela Matinal Jornalismo, Voz Cultural, Festipoa Literária e Instituto de Cultura da PUCRS que obteve 1357 respostas de profissionais da cultura demonstra que 99,3% dos respondentes tiveram suas atividades prejudicadas. O levantamento também aponta que 81,7% desses profissionais têm a cultura como sua única fonte de renda.

Trabalhadores de diferentes áreas da cultura enfrentam problemas parecidos: cancelamento de eventos e projetos que estavam em execução; perda de investimento na divulgação de atividades adiadas ou canceladas; dano ou perda de equipamento e figurinos. Também há dano em espaços culturais e problemas de acesso devido às rodovias bloqueadas. O setor literário foi outro atingido, com estoques de editoras e livrarias severamente impactados.

Prédios históricos e museus de Porto Alegre também foram afetados. O Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS) conta com mais de 5.700 obras em seu acervo. Quando a água começou a subir na cidade o museu estava com a exposição “MARGS 70 — Percursos de um acervo”, que precisou ter as obras retiradas para andares superiores. A Casa de Cultura Mário Quintana é outro ponto conhecido do Centro Histórico. O acervo do local estava em andares superiores, entretanto, as lojas do térreo foram afetadas (como a Livraria Taverna, que foi completamente alagada).

De acordo com matérias de O Globo e CNN Brasil, as obras de arte e acervos desses locais não foram danificadas. Todavia, ainda é preciso mapear o estrago físico nestes e outros espaços e acervos de instituições públicas.

Foto: Flávio Dutra/JU
O baque econômico no setor cultural

Crises como essa acabam gerando impacto na economia. O professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS Carlos Eduardo Schönerwald explica que nestes momentos de crise aparecem estudos e números tentando entender e prever a situação econômica, entretanto é difícil ter certeza sem mensurar as perdas.

Carlos exemplifica falando que, na crise financeira de 2008, a primeira perspectiva que se tinha era que a situação econômica mudaria em formato “V”. Dessa forma, ocorreria uma queda brusca na economia que retornaria com a mesma força. Na mesma época, outros economistas alegavam que poderia existir uma queda na atividade econômica, passar por um período de estagnação e depois ela iria se recuperando. Ou que a crise poderia ter o formato “W”, passando por momentos de melhora e piora.

Para Carlos, fica claro que no Rio Grande do Sul o momento é de queda econômica e a situação pode ser mais próxima de um “U”, passando por uma retomada econômica mais lenta. Isso porque a melhora da economia depende da reconstrução das cidades. Quanto mais cedo os recursos forem remanejados para isso, mais cedo as atividades poderão retomar.

Outro agravante são as dificuldades de acesso causado pela degradação de estradas e do aeroporto. Carlos e Olimpio comentam sobre as dificuldades geradas pelo fechamento do aeroporto por um período prolongado, pois impede ou dificulta a chegada de recursos.

A importância da reconstrução

O setor cultural, assim como outros serviços, depende da reconstrução dos espaços de trabalho e rodovias para retomar as atividades. O professor traça paralelos entre o cenário do Rio Grande do Sul e o de Nova Orleans, nos EUA, cidade atingida pelo Furacão Katrina em 2005 e que até hoje ainda sofre as consequências. A crise climática gera incertezas semelhantes nas pessoas: não saber a situação de suas casas ou se terão seu trabalho quando a água baixar.

Em Nova Orleans, as perdas físicas e emocionais (como casas, recordações e pessoas) geraram a saída de cerca de 20% da população da cidade. Por isso, reestabelecer os espaços é tão importante. Carlos diz que “não é simplesmente a questão do crédito ou do recurso diretamente pra pessoa, mas ela precisa ter um fluxo de renda.” Ou seja, as pessoas precisam ter perspectiva de que é viável continuar vivendo nestes locais.

Olimpio observa que ele e diversos outros profissionais da cultura são autônomos e estão “prejudicados em diversos níveis: seja de locomoção, a ter onde morar e até o que comer. E sem uma perspectiva, de meses, do que pode ser feito dentro da cidade.” Ele salienta que é preciso entender que o setor cultural não é composto apenas de shows em estádio ou da grande indústria de entretenimento, mas de muitos trabalhadores independentes.

“A cultura sempre acaba sendo o último lugar [a ser visto], porque ela é tratada como esse processo de entretenimento descartável”

Olimpio Machado
As propostas do Conselho de Cultura

Conselheiro de Cultura do Rio Grande do Sul e representante da Sociedade Civil pelo Segmento Música, Bruno Nascimento diz que a percepção é de um “retorno da pandemia”. Naquele momento, a indústria de entretenimento foi a primeira afetada e a última a retornar, e o receio é que isso ocorra novamente. O Conselho de Cultura do RS é responsável por colaborar na elaboração de diretrizes e políticas estaduais, fiscalizar a execução de projetos, entre outras funções.

De acordo com Bruno, desde o início da crise estão sendo realizadas sessões extraordinárias para elaborar propostas. Porém, ele esclarece que “o conselho sugere, se vai ser acatado ou não, isso sempre depende [da Secretaria de Cultura do Estado]”.

Na plenária do dia 10 de maio, o conselho elaborou um documento com propostas de ações para a Secretaria de Cultura do Estado (Sedac). Uma das constatações é a necessidade de ações emergenciais de curto a longo prazo. Entre as propostas estão: a criação de um comitê de crise envolvendo diferentes entes do sistema público; flexibilização de editais, execução de projetos e prestação de contas; uso de verbas para premiações ou criação de novos editais; contratação de profissionais para preservação de acervos; assim como a restauração de espaços de patrimônio público.

O que diz a Sedac

De acordo com a Sedac, as normas de projetos e prazos envolvendo editais da Lei de Incentivo à Cultura (LIC) foram flexibilizados pela resolução 01/2024. Já o edital em andamento da LIC deve ter o resultado publicado dentro do cronograma (com prazo final em junho): o processo terá continuidade assim que os sistemas eletrônicos do Governo do Estado forem reestabelecidos. Além disso, há a tentativa de adiantar os repasses de recursos da Lei Paulo Gustavo (LPG) que estão contemplados em nove editais, disponibilizando R$90 milhões para 328 projetos.

Em relação aos patrimônios, a Sedac afirma estar buscando informações e mapeando a situação de bens culturais e acervos. Entretanto, ainda não se sabe ao certo a quantidade de acervos atingidos. Também há dificuldade de comunicação devido à impossibilidade de chegar aos locais e problemas nos sistemnas telefônicos. Ainda, a pasta destaca uma lista de ações planejadas ou em execução:

  • Vistoria e avaliação de espaços e acervos;
  • Distribuição de cartilha de orientação ao resgate de acervo para rede de museus cadastrados;
  • Credenciamento de voluntários para atuarem na recuperação de espaços de leitura e atuação em museus;
  • Orientação remota de especialistas para resgate de acervo (está sendo realizado em três museus);
  • Orientação a prefeitos e secretários municipais de cultura para que nada seja descartado;
  • Atendimento à sociedade civil por meio dos institutos vinculados à Sedac, buscando canalizar a comunicação e mapear as demandas para linhas de fomento e auxílio;
  • Desenho de linhas de editais para os setores das artes;
  • Mapeamento de espaços/instituições da Sedac para criação de zonas de acolhimento cultural.

A Sedac afirma que “outras ações estão em andamento e serão informadas em momento oportuno.” Todavia, o site da Secretaria de Cultura, assim como outros serviços do Estado, está fora do ar. É possível acompanhar atualizações pelas redes sociais (@sedac_rs) ou no Diário Oficial do Estado.

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