Publicado originalmente em Jornal da UFRGS. Para acessar, clique aqui.
Ciência | Em um momento crucial para a preservação de ecossistemas marinhos devido às mudanças climáticas, modalidade enfrenta dificuldades de investimentos e formação de mergulhadores cientistas
*Foto: ICMBio/Governo Federal
Os humanos representam uma fração minúscula diante da quantidade de seres vivos marinhos. A biodiversidade do universo das águas é vasta e muitas espécies ainda não foram descobertas. Mares e rios são extremamente populosos, vivos e organizados em estruturas similares a cidades. No entanto, a maior parte das espécies marinhas ainda são ignoradas. De acordo com o Census of Marine Life, um projeto internacional que registrou a distribuição e abundância de seres marítimos, 89% das espécies marinhas ainda são desconhecidas.
A vastidão do oceano global engloba 97% da hidrosfera e se estende por cerca de 71% da superfície terrestre. Outros 3% se localizam em águas doces. Nesse imenso planeta azul, há muito a ser investigado pela ciência. Para trazer à tona descobertas, o mergulho científico emerge como uma ferramenta indispensável para desvendar as formas de vida e as singularidades no imenso laboratório natural submerso.
Essa modalidade especializada de pesquisa científica emprega técnicas meticulosas e adaptadas para compreender os intrincados ecossistemas aquáticos. É por meio do mergulho científico que os pesquisadores buscam desvendar as profundezas do oceano e suas formas de vida, coletando dados e comportamentos.
No Brasil, mais de 50 instituições acadêmicas e de pesquisa utilizam o mergulho científico como ferramenta para estudar desde microorganismos até ecossistemas inteiros, entre elas a UFRGS e a Univali (SC). Nesta reportagem do Jornal da Universidade, analisamos as principais dificuldades para a realização das pesquisas marinhas e o quanto o impacto das mudanças climáticas nas comunidades submersas pode significar para os seres humanos.
Formação e segurança
O Brasil possui uma das maiores extensões de oceano do mundo, com um território marítimo de aproximadamente 5,7 milhões de km². Trata-se de uma extensa costa de litoral e ilhas oceânicas rica em diversidade de ecossistemas e biomas marinhos. Estes ambientes incluem recifes, manguezais e bancos de algas calcárias cujas estruturas abrigam uma infinidade de organismos. Apesar do potencial científico dessas áreas, são locais de difícil acessibilidade a embarcações, o que limita a exploração detalhada e aprofundada.
O mergulho científico surge como uma ferramenta valiosa para estudos e pesquisas nesses ambientes, a fim de coletar dados e amostras em áreas submersas remotas. Menos invasiva para a fauna e flora, a modalidade possibilita registros e observações diretas do meio físico e biológico, como processos ecológicos in situ e estudos de comportamento, incluindo animais em risco de extinção.
O mergulho científico é realizado em diversas regiões e territórios nacionais, como as costas de águas rasas, recifais, bancos de algas calcárias, ilhas oceânicas, cavernas inundadas e locais gelados, como a Antártica. No entanto, no Brasil o mergulho científico ainda carece de uma regulamentação que ofereça segurança física aos profissionais e salvaguardas institucionais para as organizações que utilizam a prática em seus projetos de pesquisa.
Para tratar dessas e outras importantes questões atuais do mergulho científico e servir de referência e incentivo para o desenvolvimento das atividades de pesquisa marinha no Brasil, mais de 30 docentes de diversos institutos científicos do país publicaram o artigo ”Scientific diving in Brazil: history, present and perspectives”, recém-publicado no periódico Ocean and Coastal Research, reunindo décadas de estudos sobre o mergulho como uma prática científica essencial.
Conforme os autores, a regulamentação da modalidade no Brasil ainda requer diversas ações normativas. Uma das maiores limitações atuais é a formação do mergulhador científico, que não possui normas ou protocolos padronizados. Isso torna a formação do cientista mergulhador um desafio, já que ela depende de uma formação técnica e também da formação científica acadêmica formal. Além disso, é uma qualificação elitista e cara, conforme explica a bióloga Carla Menegola da Silva, professora do Centro de Estudos Costeiros, Limnológicos e Marinhos (Ceclimar) da UFRGS e uma das autoras do artigo.
“A família tem que manter esta pessoa em outra cidade. Esta é a realidade em nosso curso aqui no litoral, pois muitos alunos vêm de fora, inclusive de outras regiões, como Sudeste e Nordeste. Os alunos precisam ser mantidos com moradia, alimentação, os gastos do dia a dia de um curso superior, e também comprar os equipamentos. A meu ver, o custo é o maior entrave que vivenciamos para dar essa formação”, afirma. Segundo a professora, o valor de um curso básico de mergulho fica na faixa de R$ 2.000 a R$ 2.300 mensais para um aluno de graduação.
“Sem sombra de dúvida, a formação é a grande limitação que temos no Brasil. E isso inclui a falta de uma normatização, um protocolo formalizado para a área de mergulho científico”
Carla Menegola
Por exemplo, as escolas de mergulho possuem um protocolo normatizado: no mergulho recreativo, há o curso básico, curso avançado e Dive Master. Para um cientista mergulhador, isso não existe. “É uma grande lacuna que precisa ser desbravada. Todo mundo sabe que se quiser ver peixinho, recifal ou anêmona, vai fazer as etapas do protocolo que é reconhecido, normatizado e seguido pelas escolas. Por isso, diante da importância de pensar sobre isso agora, criamos o Grupo de Trabalho [GT Mergulho] e publicamos este artigo, colocando a necessidade de ter perspectivas de formação de pessoas da ciência no mergulho”, acrescenta Carla.
Por estar submerso, o mundo do mar é pouco conhecido do público, dos meios de comunicação social e dos decisores políticos. De acordo com os autores do artigo, “as restrições ao conhecimento dos ambientes marinhos estão, pelo menos em parte, relacionadas com restrições tecnológicas, logísticas e financeiras, incluindo equipamento de mergulho, protocolos e metodologias científicas subaquáticas”. Justamente para disseminar a importância do mergulho científico e trazer à tona estas e outras questões ainda restritas às ciências do mar, o artigo dará origem a um livro.
Menegola destaca que há poucas universidades no Brasil com formação adequada de cientistas mergulhadores, como a Univali (SC). “Lá tem laboratórios específicos de mergulho científico, onde os profissionais que são formados e têm a formação técnica fazem parte do quadro de professores da instituição”, afirma.
“Mas isso é uma exceção, não acontece nas demais universidades. Por exemplo, nós [do Ceclimar] somos mergulhadores porque fizemos a graduação e utilizamos esses conhecimentos ao longo da vida profissional, mas não temos autonomia nem informação para dar cursos de mergulho, porque a formação é parte da fisiologia do mergulho”, completa.
Em outras palavras, a fisiologia inclui conhecimentos de segurança e detalhes físicos que precisam ser estritamente observados quando a pessoa está no fundo d’água. Segundo a bióloga, são noções que devem ser transmitidas por um mergulhador credenciado, com a devida formação em mergulho básico e avançado, de preferência com o curso de Dive Master e de instrutor.
“Esse não é o nosso caso. Como professora do curso de Biologia Marinha, me deparo com esse desafio todo semestre. Como mostrar aos alunos as práticas sem colocá-los em risco, sabendo que muitos ainda não têm formação em mergulho certificado? Para aprender, é importante estar na água. Temos a disciplina de Prática Integrada de Campo II, que ensina a parte biológica, estuda a biota de um determinado local. O objetivo é aprender e praticar.”
De fato, uma vez no fundo d’água, é preciso cautela e saber lidar com os ambientes e instrumentos. Conforme conta a professora do Ceclimar, os cenários são variados e complexos. Por exemplo, em ambientes de água doce, propícios a pesquisas sobre arqueologia, pode haver grutas, como ocorre nas chapadas brasileiras. Além do conhecimento de mergulho, tais ambientes exigem também técnicas elaboradas de diagnóstico do local, porque às vezes o ambiente tem apenas uma única entrada e saída. São espaços restritos e obscuros, com fluxo e refluxo provocados pela força das ondas. Logo, é preciso saber evitar choques contra as paredes ou pedras.
Assim, é muito importante que um mergulhador já tenha todo um know-how para saber lidar com cada entorno. “Para se ter uma ideia, há espaços em que o mergulhador não consegue passar com o colete; é preciso tirá-lo para passar e, ao mesmo tempo, não cortar o recebimento do ar pelo cilindro. São locais de muito risco e que exigem também uma formação muito apropriada para isso”, assinala a professora.
No mergulho científico, a segurança é uma prioridade. Mergulhos mais profundos, como até 70 metros ou 100 metros, são realizados por mergulhadores experientes, geralmente alunos que já têm uma formação sólida. “A pressão aumenta com a profundidade, o que exige uma subida cuidadosa e com paradas para descompressão. Durante a subida, é importante lembrar que o mergulhador nunca deve subir mais rápido do que as bolhas que ele está produzindo, para evitar problemas de descompressão”, diz a bióloga.
Além disso, há equipamentos especiais para garantir a segurança do mergulhador e a disponibilidade de ar durante a subida prolongada, incluindo rebreathers e cilindros adicionais. “Mesmo em mergulhos rasos, a atenção à segurança é crucial. É por isso que o mergulho científico demanda profissionais capacitados e precaução constante”, reforça Carla.
Desbravando as águas na escassez de recursos
Além da falta de normatização para a formação de cientistas, a pesquisa em mergulho científico no Brasil enfrenta a limitação de recursos associada à urgência para desbravar os oceanos antes que algumas espécies desapareçam. Ou seja, é mandatório que as descobertas sejam realizadas em um nível superior ao que existe hoje, o que demanda mais pessoas dedicadas para atuar em toda a extensão da costa brasileira.
Apesar das dificuldades, mergulhadores cientistas são obstinados e às vezes se deparam com descobertas surpreendentes. Foi o que ocorreu próximo à Praia do Forte (BA), nas chamadas Piscinas do Papa-Gente (batizadas assim devido a relatos de afogamentos). Lá, foram encontradas nada menos que três novas espécies de esponjas marinhas. O local, um santuário ecoturístico, fica próximo à orla e é rico em vida aquática. Com profundidade de até 6 metros, basta colocar máscara e nadadeiras e mergulhar.
Através desse exemplo simples, Carla enfatiza a importância de investir em financiamento e promover parcerias científicas para estudar de forma mais intensa a natureza marítima: “Ainda temos muito a descobrir no século 21, mas a pesquisa nesse campo é onerosa, exige mergulhadores bem equipados e uma abordagem institucionalizada, pois estamos perdendo muitas espécies antes mesmo de conhecê-las”.
As parcerias também incluem as operadoras de mergulho e a academia, ampliando o espaço para a disseminação do mergulho científico e do seu aprendizado. Essa lógica seria capaz de proporcionar mais acesso ao mergulho científico, tornando-o menos elitista, e abriria caminho para mais descobertas sobre seres vivos e ecossistemas pouco conhecidos.
Por ser uma atividade de alto risco para o corpo humano, o mergulho científico exige muito treinamento. Para manter o desempenho em dia, a pessoa não pode parar de mergulhar — ou seja, é necessário a prática contínua para garantir a segurança, autonomia e evitar a ansiedade pré-mergulho. Outro grande desafio é formar equipes aptas e treinadas para as expedições.
“Apesar dos esforços por obter mais recursos, a área ainda carece de formação de cientistas mergulhadores, treinamento e equipamento. Além disso, uma expedição exige investimento em equipamentos para pesquisas submarinas e de segurança, embarcação adaptada para o mergulho, etc. Tudo isso exige verbas específicas que ainda estamos longe de alcançar na maior parte das instituições”, avalia a professora do departamento de Ecologia e Zoologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Tatiana Leite.
“Também estamos sem nenhuma empresa que ofereça seguros específicos para mergulhadores científicos no Brasil, já que a DAN (Divers Alert Network) deixou de atuar no nosso país”, complementa Tatiana.
“A relativa escassez de pesquisas científicas envolvendo arqueologia subaquática, mergulho em cavernas e mergulho em profundidades superiores a 50m no Brasil reflete o pequeno número de cientistas com formação técnica para fazê-lo”, escrevem os autores do artigo, corroborando a realidade de dificuldades para se tornar cientista mergulhador no Brasil. Além desses aspectos, citam ainda a complicada burocracia para obtenção de licenças de pesquisa.
Atualmente, cerca de 150 pesquisadores realizam mergulhos científicos no país, enfrentando problemas como falta de financiamento, infraestrutura e formação contínua. A defasagem no processo de regulamentação tem levado a atividade a ser realizada sem a devida formação, arriscando a vida de estudantes e pesquisadores, ou mesmo comprometendo a qualidade dos resultados de investigações subaquáticas no país.
O típico mergulhador científico no Brasil é um jovem pesquisador do sexo masculino, geralmente com doutorado, que realiza pesquisas relacionadas às ciências biológicas em águas costeiras de até 30 m de profundidade. A pesquisa em biologia marinha é a principal aplicação do mergulho científico. Embora o questionário não tenha avaliado os aspectos socioeconômicos dos mergulhadores científicos, parece razoável pensar que o perfil dominante seria da classe média aos estratos mais ricos.
Colapso climático já interfere no ecossistema das águas
O Brasil possui um dos maiores litorais tropicais do mundo, com características oceanográficas e históricas únicas e uma rica biodiversidade. Todos os ecossistemas subaquáticos brasileiros influenciam drasticamente no comportamento do clima do planeta. No entanto, os graves fatores de estresse a que as regiões costeiras e oceânicas foram sujeitas no último século têm consequências apenas parcialmente conhecidas até o momento.
Apesar da clareza das evidências científicas sobre os impactos devastadores das mudanças climáticas na vida na Terra, muitas empresas e governos continuam negligenciando essas consequências. A exploração indiscriminada de recursos naturais, a queima de combustíveis fósseis e as práticas industriais poluentes são apenas alguns dos exemplos de atividades que contribuem para o agravamento acelerado da degradação de ecossistemas em terra e mar. Neste cenário em que o termo “catástrofe climática” não é mais uma expressão alarmista, mas realista, torna-se ainda mais crucial investir em pesquisas oceânicas por meio do mergulho científico.
“As mudanças climáticas irão impactar prioritariamente as áreas mais rasas dos ambientes marinhos, justamente onde o mergulho científico tem maior atuação. Ecossistemas como, por exemplo, os ambientes recifais e bancos de algas calcárias já estão sendo monitorados e estudados para avaliar os impactos no branqueamento de corais, mudanças da distribuição da fauna, alterações de comportamento das espécies, além de avaliações físicas e químicas da água”
Tatiana Leite
O branqueamento dos corais citado por Tatiana é apenas uma das reações de fotofisiologia de organismos vivos ao calor dos mares. Quando um coral branqueia, é porque ele está morrendo; uma morte lenta por calor e falta de comida. Atualmente, o aumento da temperatura média global é um dos problemas climáticos mais urgentes: estudos recentes mostram que os oceanos estão 2ºC acima da sua temperatura normal. Recente relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) conclui que os compromissos atuais no âmbito do Acordo de Paris colocam o mundo no caminho para um aumento da temperatura de 2,5°C a 2,9°C.
O Climate Transparency afirma em seus estudos que no fim deste século a temperatura média da Terra estará ao menos 3,2º Celsius acima da registrada no início da Revolução Industrial no século XIX. Cientistas já afirmam que esta crescente deve chegar a 3ºC acima até 2030, quando 90% dos corais estariam extintos. Tal como uma pessoa com febre de 38ºC, os mares estão queimando por dentro, causando derretimento de geleiras, extinção de espécies, aumento do nível de oceanos e mudanças nos padrões climáticos.
Dados citados no artigo “Scientific diving in Brazil: history, present and perspectives” e outros estudos globais indicam que aumento de temperatura dos oceanos tem impactos significativos nos ecossistemas submersos, incluindo o branqueamento de corais e outras alterações no comportamento e na vida de espécies marinhas. Outro sintoma do aquecimento é a acidificação dos oceanos: com a absorção de dióxido de carbono (CO2), o pH médio da superfície do mar diminuiu em cerca de 0,1 unidades, representando um aumento de aproximadamente 26% na acidez. A acidificação prejudica os organismos marinhos, especialmente na formação de conchas e esqueletos de organismos calcários, como os corais, moluscos e alguns tipos de plâncton.
Hoje, o percentual de danos já afeta aproximadamente 30% das espécies calcárias, ameaçando a saúde dos ecossistemas marinhos e a estabilidade da cadeia alimentar oceânica. Trata-se de uma grave ameaça à biodiversidade marinha, cujo impacto é direto no fornecimento de alimentos e a regulação climática na terra firme. Nesse contexto de deterioração causado pela minoria humana, o mergulho científico é uma ferramenta essencial para monitorar, documentar, descobrir e entender a fauna aquática antes que ela seja extinta.