Portal de notícias propaga condenação de pastores na Nicarágua como perseguição religiosa

Publicado originalmente em Coletivo Bereia por Gabriella Vicente e João Pedro Capobianco. Para acessar, clique aqui.

Nos primeiros dias de abril de 2024, diversos portais conservadores e religiosos divulgaram a notícia de que líderes cristãos foram condenados pela Justiça da Nicarágua. O atual presidente Daniel Ortega, depois de um passado ligado a grupos revolucionários, assumiu o poder em 2006 e se reelegeu sucessivas vezes, após reformas judiciais criticadas pela comunidade internacional. 

Os atos de governo implementados pela administração Ortega foram mobilizados por grupos extremistas, durante a campanha eleitoral de 2022 no Brasil,e continuam sendo utilizados para propagar o discurso de perseguição contra cristãos. Bereia checou informações relativas ao caso.

Imagem: reprodução Revista Oeste

A repercussão da prisão de pastores por sites gospel

A Revista Oeste, veículo alinhado a grupos políticos extremistas,publicou matéria com a manchete “Ditadura da Nicarágua condena 11 pastores”, em que destaca a detenção dos líderes religiosos por mais de dois meses sem acesso a advogados e a familiares, e condenações que vão de 12 a 15 anos de prisão.

O portal Folha Gospel, por sua vez, publicou matéria com a manchete “Nicarágua condena 11 pastores ligados ao ministério dos EUA por ‘acusações falsas’ de lavagem de dinheiro”. O conteúdo destaca que a sentença judicial foi proferida “a portas fechadas”.

Já o site Gospel Prime veiculou matéria com o título “Ditadura de Ortega condena 11 pastores sob falsas acusações”. O texto alega, de início, que Daniel Ortega é “amigo do petista Luiz Inácio Lula da Silva” e dá detalhes sobre o caso.

Imagem: reprodução Folha Gospel

Todos os portais que divulgaram o ocorrido dão voz à tese de que há, em curso, perseguição religiosa contra cristãos, discurso amplamente reproduzido com alegações falsas no caso brasileiro.

O regime liderado por Daniel Ortega tem sido criticado internacionalmente por suas ações contra grupos religiosos. A comparação do que ocorre no país da América Central com o cenário brasileiro, no entanto, não se sustenta, conforme Bereia demonstra em matéria sobre desinformação em espaços religiosos e no artigo A mentira que não quer calar: sobre perseguição a cristãos no Brasil.

Imagem: reprodução Gospel Prime

A prisão dos líderes religiosos

A Polícia Nacional da Nicarágua prendeu, em dezembro de 2023, 11 pessoas acusadas do crime de lavagem de dinheiro, com a utilização deorganizações religiosas como fachada, conforme noticiado pelo site Nicaragua Investiga.

O texto afirma ainda que o grupo estaria associado, desde 2013, aos americanos John e Jacob Britton Hancock, presidente e membro da organização Puertas de la Montaña, que enviavam dinheiro para o país para enriquecer ilicitamente, e eram financiados por Bruce Wagner, fundador do ministério evangelístico Sacudiendo las Naciones. 

Os 11 acusados foram Walner Omier Blandón Ochoa, Marisela de Fátima Mejía Ruiz, José Luis Orozco Urrutia, Álvaro Daniel Escobar Caldera, Juan Carlos Chavarría Zapata, Marcos Sergio Hernández Jirón, Juan Luis Moncada, Orvin Alexis Moncada Castellano, Harry Lening Ríos Bravo, Manuel De Jesús Ríos Flores y César Facundo Burgalín Miranda.

Segundo a nota da Polícia Nacional à imprensa, o representante legal da Puerta de la Montaña Walner Blandón, e sua esposa, a gerente financeira da organização Marisela Mejía foram contatados pelos Hancock para registrar a organização no país e os depósitos realizados por Wagner, a partir dos Estados Unidos, eram feitos diretamente às contas pessoais do casal. 

Depois das contas de Blandón e Mejía terem sido bloqueadas, devido ao alto valor das transações, sem justificativas de origem e destino, foram criadas as sociedades Operaciones Blandón Hancock SA., Vertical Bridge Works LLC., Conexion Vertical SA e Puente Plomo SA, em nome do casal, com cargos e participações nas empresas, juntamente com os Hancock. 

As investigações do caso

De acordo com o Ministério Público da Nicarágua, o grupo de pastores evangélicos, membros do Ministério Puerta de la Montaña, praticou o crime de lavagem de dinheiro para adquirir carros de luxo, imóveis e objetos suntuosos, com isenções fiscais. 

O órgão afirmou, em nota à imprensa, que a denúncia surgiu a partir de uma investigação detalhada da Direção de Assistência Judiciária da Polícia Nacional, com base no Código Penal da República da Nicarágua e teve origem nas movimentações financeiras das contas bancárias de ​​Walner Blandón Ochoa e Marisela Mejía. 

“Constituíram sociedades comerciais no nosso país, para que o dinheiro que recebiam do estrangeiro (de origem desconhecida), em vez de ser utilizado para cobrir supostos fins altruístas do Ministério Puerta de la Montaña, fosse desviado para atender aos interesses particulares dos acusados, como a compra de imóveis, veículos de luxo e outros objetos suntuosos, valendo-se das isenções fiscais que as leis do país conferem a organizações sem fins lucrativos”, diz trecho da nota. 

Em 20 de março, os pastores da Puerta de la Montaña, acusados de lavagem de dinheiro, foram considerados culpados, durante julgamento no Complexo Judicial Central de Manágua. Os americanos Jacob Britton Hancock e John Britton Hancock também foram condenados e são considerados foragidos, pelas autoridades nicaraguenses.

O que diz a organização Puerta de la Montaña

De acordo com o site oficial da organização Mountain Gateway, a instituição opera na Nicarágua como Puerta de La Montaña e realiza, sobretudo, treinamentos de pastores e líderes nos Estados Unidos. Há uma área do site destinada às manifestações da instituição quanto às atualizações do caso dos pastores no país centro-americano.

A Mountain Gateway nega as acusações de lavagem de dinheiro e afirma ter seguido todos os requisitos legais nos Estados Unidos e na Nicarágua que se aplicam a organizações sem fins lucrativos e religiosas. A instituição declara, em sua página no Instagram, enfrentar a “mesma perseguição que tantas outras organizações cristãs enfrentaram na Nicarágua desde 2018”.

Imagem: reprodução Instagram

A ADF International (Aliança em defesa da Liberdade, em livre tradução), organização religiosa de defesa jurídica, apresentou um pedido de medidas cautelares à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em nome dos pastores e líderes da Mountain Gateway. 

A organização alega que os religiosos estão presos há mais de dois meses e proibidos de contactar representantes legais ou familiares, que foi negado aos advogados o acesso ao processo e documentação relevante contra os pastores, que houve um julgamento simulado, e o governo não apresentou provas de lavagem de dinheiro por parte dos acusados. 

Daniel Ortega e perseguição religiosa na Nicarágua

A carreira política de Daniel Ortega é marcada por dois momentos muito distintos. Na juventude, nos anos 1960, lutou à esquerda contra a ditadura de Anastasio Somoza, que governava a Nicarágua desde a década de 1930.

Em 1979, com o triunfo da Revolução Sandinista, Ortega destacou-se como líder político e foi eleito primeiro, em 1981, coordenador do Conselho de Administração (espécie de governo provisório) e, depois, em 1984, presidente da Nicarágua.

Com uma gestão marcada por fracassos econômicos e duras críticas por parte do governo estadunidense, Daniel Ortega perdeu as eleições de 1990 e afastou-se do cargo de presidente até meados dos anos 2000.

Em 2006,  distanciou-se do passado de revolucionário comunista e lançou-se novamente à corrida presidencial. Nesse novo momento, vitorioso, Ortega defendeu a aproximação da Nicarágua ao capital estrangeiro e fez acenos ao eleitorado religioso. Em campanha, chegou a dizer que Jesus Cristo era seu herói.

A alegação de perseguições políticas e religiosas

Novamente alçado ao poder, Ortega introduziu um regime marcado por mudanças constitucionais que permitiram mandatos consecutivos, impedimento de candidaturas de opositores à presidência e perseguição a desafetos políticos.

Em 2018, em meio a grandes manifestações contra sua presença no poder, o governo reprimiu violentamente os manifestantes, o que desnudou a nova forma de Ortega comandar seu país.

As denúncias de assassinatos por parte do governo se alastraram, com denúncias de organizações de direitos humanos sobre mais de 300 mortes ligadas às manifestações daquele ano.

De lá para cá, avolumaram-se as denúncias de perseguição, inclusive de grupos e lideranças religiosas críticas às políticas do governo.  Desde 2018, a Igreja Católica sofreu mais de 740 ataques do governo Ortega, sendo 275 apenas em 2023, conforme contagem da advogada Martha Patricia Molina, autora do relatório “Nicarágua, uma igreja perseguida”.

Entre esses ataques, há a ordem de prisão contra padres e outros membros da Igreja Católica, bem como o banimento de líderes religiosos do país. Um dos casos mais célebres é o do bispo Silvio Báez, que se notabilizou pela luta em prol da liberdade e da paz e foi duramente perseguido. 

As autoridades católicas têm dado repercussão aos casos de perseguição religiosa em seu portal de notícias. Além de posicionar-se contra os atos do governo Ortega contra a Igreja Católica, o Vaticano tem acompanhado e denunciado outros casos de perseguição religiosa, e assim o fez em relação aos 11 pastores evangélicos condenados recentemente.

***

Bereia classifica o conteúdo checado como enganoso. A notícia propagada pela Revista Oeste, e repercutida por sites de notícias gospel, contém informações verdadeiras, como a condenação dos líderes cristãos, no entanto, a apresentação associa o fato a outras informações consideradas enganosas. 

O texto omite informações do processo de investigação e as acusações de enriquecimento ilícito por parte dos líderes religiosos, mas apresenta as prisões como resultado de uma perseguição religiosa, ao apontar a expressiva atividade da organização Mountain Gateway na Nicarágua, e indicar a posição do país no ranking de ações perseguidoras de cristãos. 

O tema da perseguição religiosa é vastamente usado por políticos religiosos no Brasil e propagado por sites conservadores como o verificado nesta checagem, para difundir pânico moral, evocar sensacionalismo e conquistar audiência por meio de desinformação. Portanto, Bereia destaca a importância de buscar conteúdos que apresentem informações contextualizadas para que os fatos sejam compreendidos corretamente. 

Referências de checagem:

DW
https://www.dw.com/pt-br/daniel-ortega-assume-quarto-mandato-consecutivo-na-nicar%C3%A1gua/a-60388452 Acesso em: 8 abr 2024

Nicaragua Investiga

https://nicaraguainvestiga.com/nacion/138012-policia-nacional-captura-y-acusa-a-sujetos-de-utilizar-organizaciones-religiosas-para-delinquir/ Acesso em: 2 abr 2024

https://nicaraguainvestiga.com/nacion/139433-fiscalia-afirma-que-pastores-evangelicos-detenidos-compraban-inmuebles-autos-y-objetos-suntuosos/ Acesso em: 2 abr 2024

https://nicaraguainvestiga.com/nacion/142623-miembros-puerta-montana-culpables/ Acesso em: 2 abr 2024

Mountain Gateway

https://www.mountaingateway.org/update-march-28-2024.html Acesso em: 2 abr 2024

ADF International 

https://adfinternational.org/news/mountain-gateway-nicaragua Acesso em: 2 abr 2024

BBC

https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62598789 Acesso em: 3 abr 2024

https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62598789 Acesso em: 9 abr 2024

El País

https://brasil.elpais.com/brasil/2014/01/29/internacional/1390955364_046642.html

Acesso em 9 abr 2024

IHU

https://www.ihu.unisinos.br/categorias/633112-nicaragua-pesquisadora-denuncia-a-prisao-de-cinco-padres-em-uma-semana Acesso em: 3 abr 2024

https://www.ihu.unisinos.br/categorias/188-noticias-2018/578703-nicaragua-silvio-baez-o-bispo-que-enfrentou-o-comandante-ortega Acesso em: 3 abr 2024

Vatican News

https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2023-02/nicaragua-bispos-celam-mundo-rejeitam-perseguicao-injusta-igreja.html Acesso em: 3 abr 2024

https://www.vaticannews.va/en/world/news/2024-04/nicaragua-11-evangelical-pastors-sentenced.html Acesso em: 3 abr 2024

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